Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S. PAULO

"Nós e a purgação do ?Times?", copyright Folha de S. Paulo, 3/8/03

"O diário norte-americano ?The New York Times? anunciou na quarta-feira a criação do cargo de ombudsman, após três meses de uma aberta auto-dissecação deflagrada pelo caso Jayson Blair, o célebre repórter-inventor que deixou o jornal mais influente do mundo no início de maio.

Trata-se da medida mais vistosa de uma série de reformulações internas sugeridas pela comissão que esquadrinhou as causas do vergonhoso ?affair?, a organização e o funcionamento da Redação do ?Times?.

A íntegra do relatório elaborado por esse grupo (25 jornalistas do ?Times? e três de fora, estes últimos dedicados especialmente a investigar as falhas que possibilitaram o escândalo Blair), com quase cem páginas e apresentação feita pelo novo diretor de Redação, Bill Keller, foi disponibilizada no site da companhia (www.nytco.com).

Durante décadas, houve forte resistência naquele diário à idéia de ter um ?representante dos leitores?, sob o argumento, principalmente, de que deve caber apenas aos editores -responsáveis pelas seções do jornal- o relacionamento com o público e a vigilância sobre a sua própria produção.

A comissão concluiu, porém, que, após o caso Blair e seus vários desdobramentos (dentre eles, a saída de um outro repórter envolvido em fraude e a queda da dupla que comandava o jornal), faz-se obrigatória uma ?dramática demonstração de nossa abertura para a responsabilização pública?.

O principal alicerce de qualquer veículo de informação de qualidade que se queira sério, ou seja, a credibilidade, fora colocado profunda e ineditamente em xeque.

A partir daí, o raciocínio é de que se tornou imperioso prestar contas efetivamente, de modo sistemático e escancarado, à sociedade, abrindo-se, ao mesmo tempo, para ouvir o que ela tem a dizer sobre o conteúdo daquilo que é publicado a cada dia pelo jornal.

O ombudsman, no ?Times?, informou Bill Keller, será chamado de ?editor público?.

Outras medidas

O jornal anunciou, também, a criação de um cargo de alta chefia dedicado à supervisão da aplicação dos padrões jornalísticos, uma espécie de guardião da qualidade encarregado de cuidar de programas de treinamento em ética, legislação e técnicas jornalísticas e de observar se são feitas e publicadas adequadamente, quando preciso, as correções de erros detectados nas reportagens.

Criou, ainda, um cargo de editor voltado para o recrutamento e desenvolvimento de carreiras, ao qual caberá reformular o sistema de contratações, promoções e a política de treinamento e reciclagem dos profissionais.

O ?Times? informou também que vai reajustar sua política de definição dos créditos dados às reportagens; rever critérios para poder reduzir a quantidade de informações em ?off? (com base em fontes anônimas); mudar a forma de relacionamento entre a sede em Nova York e a principal sucursal, Washington; incrementar mecanismos que fomentem o diálogo vertical e horizontal entre os jornalistas; assegurar a implementação de um sistema de metas e de avaliação individuais; criar uma ?ampla matriz de reuniões? para gerar um ?permanente clima de discussão e colaboração? formal e informal na Redação.

Por fim, na quinta-feira (31), o ?Times? divulgou que, em vez de simplesmente substituir o secretário de Redação (segundo na hierarquia) que se demitira em junho na esteira do caso Blair, desmembrará a função em dois, com um secretário priorizando a produção de notícias e o outro, as operações de fechamento de cada edição.

A lista de medidas, como se vê, é extensa. Implica mudanças profundas e dolorosas numa instituição de 150 anos. Se elas serão realmente postas em prática e terão, de fato, êxito, ou se refletem apenas uma reação de quem sangra em público ou redundarão em mero marketing, n&atatilde;o sabemos.

Mas, não por acaso, o relatório afirma que ?a história de Jayson Blair já não era mais apenas sobre ele, e talvez nem mesmo principalmente sobre ele?.

Reflexão

Indo além: algum estudante de jornalismo, pesquisador, professor, jornalista ou leitor acha que tudo isso diz respeito apenas ao principal jornal dos EUA?

Sempre me perguntam, em palestras, por que tão poucos veículos de comunicação possuem um ombudsman, profissional com ?cara exposta?, nome e sobrenome, sempre acessível, encarregado de fazer a crítica pública e independente do jornal, ouvir as queixas e sugestões dos leitores, encaminhá-las e zelar por sua correta apreciação.

Com efeito, eles são apenas cerca de 30 nos EUA e não atingem uma centena no mundo todo.

Dentre outros motivos, costumo destacar, em minha resposta, que falta à maioria dos veículos, aqui e lá fora, a coragem para reconhecer, com transparência, de modo aberto e permanente, o fato incontestável de que os jornalistas e a imprensa como um todo não são infalíveis -e de que, num jornal diário, eles não são infalíveis diariamente.

Parece simples e pouco, mas, na prática, é muito arriscado e difícil.

É provável e desejável que o histórico gesto do ?Times? (um jornal com século e meio de densa história), fruto de uma ampla reflexão -e também, registre-se, de certa dose justificável de desespero na luta pela sobrevivência- faça órgãos de comunicação do mundo todo revisarem seus procedimentos ou ao menos refletirem, mais uma vez, no assunto.

***

A Folha tem ombudsman desde 1989, atuando com autonomia e independência, coluna pública semanal e críticas diárias internas. Publica a seção ?Erramos? desde 1991.
Desde 1988, aplica um Programa de Treinamento rígido com vistas a recrutar profissionais de qualidade. Organiza seminários internos regularmente e oferece a seus profissionais subsídios para reciclagem.

Possui há muitos anos programa de correspondentes-bolsistas no exterior, metas e avaliações individuais, medições de produtividade e controle detalhado de erros.

A partir de 1996, instituiu formalmente um Programa de Qualidade voltado para vigiar a aplicação de seus princípios jornalísticos, consolidados no ?Novo Manual da Redação?.

Tudo isso constitui uma estrutura e uma cultura louváveis de prevenção, filtragem e correção de erros da qual o jornal -assim como os seus profissionais e os seus leitores- só tem de se orgulhar.

Mas nada disso o torna totalmente imune a falhas, mesmo a grandes e graves falhas.

O relatório do ?Times?, surpreendente na sua profundidade e transparência, rico no detalhamento de imperfeições em procedimentos internos de uma Redação de porte, repleto de sugestões concretas, deveria servir como ?gancho? e instrumento para cada repórter, redator ou editor e para a Folha, no seu conjunto, voltarem a examinar abertamente seu ?modus operandi? ou, no mínimo, alguns de seus aspectos.

Defeitos irmãos que o êxito costuma projetar, a arrogância e a acomodação serão sempre, em toda parte, fatores propícios à frutificação de casos -individuais ou coletivos, mais ou menos graves ou contundentes- como aquele que já martirizou historicamente e que continua a afligir um ícone do jornalismo sério, independente e responsável chamado ?The New York Times?.

***

PS: Peço desculpas ao leitor da coluna por oferecer hoje um texto excepcionalmente longo e detalhado. Julguei, no entanto, que o tema o exigia. Não dá para imaginar que estejamos falando, aqui, apenas de um jornal norte-americano, certo?"