Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Os acontecimentos de 11 de setembro representam um marco histórico extraordinário, sem paralelo. Compará-lo a outros (a queda do Muro de Berlim, por exemplo) parece ser pouco e precipitado. Impossível prever suas consequências, mas ninguém duvida que elas serão muitas e abrangentes.

?Estamos numa época em que já não se distinguia o real do virtual. Infelizmente foi preciso acontecer algo assim, que atingisse o centro, e não a periferia, para nos darmos conta de que o real existe. Agora entramos efetivamente no terceiro milênio.?

A declaração, dada à Folha pelo ensaísta português Eduardo Lourenço, expressa o que está em jogo desde a última terça-feira e, com clareza, lança à imprensa, nesse novo momento, mais de um desafio. Pois não é o ?real? o objeto do jornalismo?

No mundo todo, uma geração de editores, repórteres, redatores e fotógrafos foi posta à prova nos últimos dias. E o teste, a rigor, apenas começou.

Primeira constatação da semana: em plena era de florescimento de novos meios, o jornalismo impresso tem, sim, um grande papel a desempenhar.

Milhões de pessoas acompanharam as cenas espetaculares pela televisão ou pelo rádio. Outro tanto o fez pela internet. Mas nenhuma dessas alternativas, atadas, por sua natureza, ao roteiro superficial e imediato dos fatos, pôde aglomerá-los e organizá-los simultaneamente de modo seletivo e aprofundado, retrospectivo e prospectivo -algo que aconteceu nos jornais.

E cabe registrar que a Folha ocupou lugar de destaque, em que pesem essa ou aquela falha.

Em especial nos EUA, por razões óbvias, a imprensa demonstrou, também, o peso político gigantesco que tem.

Basta ver o impacto na atuação de George W. Bush do editorial de quinta-feira do New York Times, cobrando do presidente ação e liderança.

Que outro meio de comunicação teria hoje essa capacidade de influenciar em momento tão delicado e decisivo?

É inegável que, até o momento, nesses recentes episódios, os diários impressos funcionaram como ?âncoras de referência geral?. Feito a ser ainda mais ressaltado no caso da Folha, por se tratar de um órgão de imprensa da periferia do mundo.

Segunda constatação: houve uma mobilização inédita.

Na Folha, por exemplo, cerca de 200 jornalistas se organizaram, na terça, para elaborar uma edição com 37 páginas.

A agência Reuters acionou mais de 300 profissionais em Washington e Nova York; a France Presse, mais de 100.

?Operações de guerra? foram montadas, a rigor, conforme suas proporções, em todos os principais jornais, aqui e lá fora, inclusive, em muitos casos, para edições extras.

Em artigo na quinta-feira no Chicago Tribune sob o título ?Um dia de trabalho durante um dia do mais puro terror?, Don Wycliff descreve o esforço da redação daquele jornal para produzir, num só dia, duas edições extraordinárias, além de preparar a do dia seguinte.

Em ocorrências como as de terça-feira, conta Wycliff, enquanto a maioria troca os escritórios pelas casas, ?os jornalistas, como os policiais e os bombeiros, deixam suas casas para ir ao trabalho?.

O Washington Post trouxe 51 páginas sobre a tragédia; o New York Times, 33; o Los Angeles Times, 40. O Le Monde, diário francês contido, publicou 19; o espanhol El País, 28 (tablóide); o Público, de Portugal, 25 (tablóide). São alguns exemplos.

Diante da indiferenciação gerada pela abundância de informações de agências, um dos fatores mais importantes a conferir sucesso às edições da Folha desde a quarta-feira -eis outra constatação- foram as análises e entrevistas com especialistas, num esforço evidente de reflexão. Além disso, as reportagens de seus correspondentes e os depoimentos de pessoas que vivenciaram o pânico.

Tudo isso compôs um diferencial e seria impossível sem um olhar próprio.

A esse respeito, e já que se fala de EUA, vale lembrar declaração feita em 1992 pelo publisher do New York Times, Arthur Ochs Sulzberger Jr., segundo a qual, apesar da recessão que reduzia a receita dos jornais com publicidade, o jornal não iria cortar despesas com a cobertura de notícias nacionais e internacionais.

Seu raciocínio era outro, relata Gay Talese no livro O Reino e o Poder: ?Se você tem informações de qualidade, os lucros virão?. É uma lição -reiterada nesta semana- para quem olha jornais como ?business? e não como órgãos de informação e de pertinência social.

Há, no entanto, um aspecto do qual a imprensa padeceu desde o dia 11: a ausência de imagens cruas. Por exemplo, do drama dos feridos nos hospitais ou de como está sendo organizada a disposição dos corpos para reconhecimento.

Com efeito, depois do espetáculo grandioso das explosões e do desmoronamento das torres gêmeas, o que se viu foram escombros, ação dos bombeiros, gente a chorar, o presidente dos EUA e sua equipe, bandeiras americanas se espalhando.

Como se um pacto houvesse entre governo e mídia para não exibir o mais doloroso.

A foto mais ?pesada? foi a do homem que se atirava de uma das torres atingidas (o ?NYT? a publicou, por exemplo, em sua página A7, em três colunas). As TVs não têm colocado no ar o som dos gritos desesperados.

Ora, teria o Holocausto se infiltrado de modo tão contundente na consciência dos homens não fossem as imagens -?pesadas?- dele difundidas? Quais serão as imagens humanas reais do terrorismo do século 21, além das dos atentados, que chegam a confundir real com virtual?

É cedo para afirmar a existência de tal acordo, ao menos quanto aos jornais impressos.

Bernd Debusmann, editor da Reuters que comandou a cobertura da agência a partir de Nova York, disse na sexta ao ombudsman por telefone que, se há poucas fotos das vítimas, é porque a polícia não permite o acesso. ?Não há pacto nem autocensura?, afirma. Portanto, enfrentam-se restrições, sim, ao trabalho dos jornalistas.

Debusmann menciona, como contraponto, a oportunidade que a Reuters teve, por exemplo, de fazer as fotos da morte do jovem Carlo Giuliani, em Gênova (Itália), dia 20 de julho, durante protesto contra a reunião do G-8. ?Se pudéssemos, faríamos igual aqui?, conclui.

Já os representantes das agências France Presse e Associated Press com quem falei seguem política diferente, de não fazer ou reproduzir fotos chocantes de mortos ou feridos.

A falta de imagens, tal como se dá, remete a outra questão: a liberdade de atuação e de publicação da imprensa.

Reportagem ontem na Folha mostrava que ?as autoridades de Nova York impuseram controles rígidos sobre as informações à disposição da imprensa?.

De fato, um subproduto da nova situação que mais se teme, em face da onda de ?união nacional? e patriotismo que se formou nos últimos dias, é justamente a idéia de que, em nome do combate ao terrorismo, vale a pena abrir mão de certos direitos e conquistas.

?Estamos num novo mundo, no qual temos de rebalancear liberdade e segurança?, declarou ao Washington Post o líder democrata Richard Gephardt.

Aí reside mais um perigo, um desafio para a imprensa – nos EUA e, por consequência, nas suas ?adjacências?- a partir de 11 de setembro.

Entre alguns erros cometidos na semana, o mais grave foi considerar a exaltação dos atos terroristas por grupos de palestinos localizados como se fosse do conjunto das populações árabes.
Em seu texto de primeira página, na edição do dia 12, a formulação da Folha foi infeliz: ?Em países árabes, a população saiu às ruas para comemorar?.

É preciso ir devagar. Quaisquer que sejam as dimensões daquilo que virá – a ?nova guerra americana?-, nada será fácil para os jornalistas. Haverá bloqueios, golpes em sua altivez, censura, patrulhamento.

O episódio 2 da ?nova situação? está só no início."

    
                         

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