Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Títulos engajados", copyright Folha de S.Paulo, 2/6/02

"Um dos males que costumam atingir o jornalismo é o tratamento unilateral das notícias ou, em seu componente mais vistoso, a velha forçadinha de barra, para um lado ou para o outro, nos títulos das reportagens.

Na semana passada, foi possível reunir na Folha uma fornada de exemplos dessa última prática, bem próxima da distorção. Em ordem cronológica:

?PT de São Paulo já contratou R$ 566 mi sem concorrência?, eis o título de reportagem do domingo passado, segundo a qual a prefeitura paulistana fez até agora contratos pelo menos nesse valor sem concorrência pública para serviços e obras.

O problema não está no texto, mas no título. Por mais que São Paulo seja vitrine do PT -tendo o partido que responder em grande parte pelo que aqui ocorre, aspecto que comentei semana passada-, não é ele o sujeito, não é ele, nem poderia ser, o contratante. Ao confundir partido e administração, o título ganha conotação política anti-Lula.

Em direção semelhante vai o título de uma chamada da capa do jornal da última terça-feira: ?Mortalidade sobe em distritos paulistanos?.

A rigor, não há erro, mas veja o detalhe da notícia: ?O número de bebês de até um ano mortos em cada mil nascidos vivos aumentou em 38 dos 96 distritos administrativos da cidade de São Paulo entre 2000 e o ano passado?.

Ora, o fato ruim diz respeito a uma minoria de distritos. Tudo bem: ao usar ?em? no lugar de ?nos?, o título se resguarda, não pode ser chamado de mentiroso. Mas parece evidente que sua formulação genérica induz a uma primeira leitura igualmente generalizante, neste caso, negativa para a administração da capital paulista.

O PIB

Manchete da quarta-feira: ?PIB cai pelo 2? trimestre consecutivo?. Aqui o jornal jogou lenha na fogueira de quem o considera sempre disposto a realçar ?o lado negativo das coisas?.

Peço licença ao leitor para me alongar no caso a fim de tentar deixar claro o problema.
Segundo o IBGE, a soma dos bens e serviços produzidos no país (o PIB) teve uma queda de 0,73% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2001. Como no último trimestre do ano passado esse dado também tinha sido negativo (-0,69%), daí a manchete.

Mas havia um detalhe: se comparado com os últimos três meses de 2001, este primeiro trimestre na verdade registrou um crescimento (1,34%); além disso, esperava-se uma redução maior, pois no início de 2001 a economia estava, como se diz, bastante aquecida.

Esses dados, na visão de alguns economistas, permitiriam até mesmo certo otimismo. O que explica, por exemplo, o título interno, no caderno Dinheiro (?Economia surpreende e PIB piora pouco?), em cujo texto a idéia de que houve duas quedas consecutivas do indicador não estava nem no ?lide? (a abertura da reportagem).

A inclinação pelo cataclismo adotada pela manchete da Primeira Página da Folha fica mais clara se se considera que, pelos critérios dos analistas do mercado financeiro, uma queda do PIB por dois trimestres consecutivos caracteriza uma recessão (explicação esta dada pelo próprio jornal).

Para complicar mais: em outro texto interno, nenhum dos especialistas ouvidos, apesar de serem analistas do mercado, bancou a idéia de estarmos numa recessão.

Ora, se o jornal sabia disso, por que optou por uma manchete que, apesar de não ser mentirosa, poderia dar a entender justamente que estamos em recessão?

Mesmo na hipótese de que essa fosse a opção correta, por que, então, não inverter as prioridades dentro, no caderno Dinheiro, em nome da coerência?

Ainda sobre esse assunto, cabe anotar a manchete do ?Estado de S.Paulo?, que também fez a sua ?opção?, mas pelo extremo exatamente oposto da informação: ?Para IBGE, PIB dá sinais de retomada?.

Desemprego

O mesmo impulso negativista se revelou, também quarta-feira, no título da reportagem ?Brasil é o 2? do mundo em desemprego?.

O texto mostrava que só a Índia tem mais desempregados, em números absolutos, do que o Brasil. Mas, diferentemente do que o título dá a entender, em nível de desemprego nosso país é o 23? -o que é horrível, claro, mas bem diferente de ser o vice-campeão.

Independentemente do valor que merece ou não esse tipo de estatística (o colunista Clóvis Rossi, por exemplo, o questionou na quinta-feira), o título dado ao assunto pelo ?Globo? era bem mais preciso: ?Brasil: segundo em desempregados no mundo?.

Ocorre-me, fora da ordem cronológica, outro título, de 22 de maio: ?BB e funcionários terão de elevar contribuição para cobrir rombo da Previ?.

Em resumo: diante do buraco do fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, discutia-se, diz o texto, a possibilidade de seus participantes pagarem mais do que pagam hoje para poder garantir a sua aposentadoria.

Na verdade, porém, essa possibilidade era defendida, naquele texto, por um membro do governo, enquanto o representante da Previ, poucos parágrafos adiante, questionava a alternativa.

Ninguém em sã consciência será capaz de dizer que tudo vai bem em administração pública, mortalidade infantil, vida econômica ou desemprego. Mais ainda: parece crescente a parcela daqueles que pensam que tudo já poderia estar bem menos mal do que está.

Da mesma forma, para ficar nos exemplos aqui mencionados, os leitores são capazes, sim, de interpretar politicamente notícias relativas à administração pública.

A realidade fala por si. Se conseguir retratá-la, nua e crua, o jornal cumprirá com sua obrigação. Isso basta. Não há por que ?potencializar? os dados, ou, em palavras mais simples, forçar a barra."

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"Como vai a USP", copyright Folha de S.Paulo, 2/6/02

"A julgar por alguns sinais emitidos esparsamente nos jornais, a Universidade de São Paulo (USP), ou ao menos uma parte importante dela, parece viver uma etapa de significativa deterioração.

Há cerca de um mês começou uma greve de estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), seguida de mobilizações de servidores e docentes. Estes, por salários, aqueles, por mais professores, contra a superlotação nas salas de aula.

Conforme mostrou reportagem da Folha no dia 4 de maio, a FFLCH, que, como é sabido e reconhecido, desde os anos 30 tem produzido ?cérebros? dentre os mais importantes da intelectualidade brasileira, pode estar vivendo a maior crise de sua história.

Um dos movimentos estruturais que estariam por trás dessa grave situação diz respeito à desvalorização das áreas de ciências humanas, em combinação com um ?engajamento? maior da USP no mercado.

Contra uma média padrão de um professor para cada 14 estudantes na universidade, a FFLCH registra um professor para cada 35,2 universitários.

Alternando tapas e beijos, pelo menos desde o final da década de 70, sempre foi estreito e socialmente benéfico o relacionamento entre a Folha e a USP.

Por isso mesmo, é estranho que o jornal tenha limitado a cobertura da atual situação à curta reportagem de 4 de maio e, depois, a pequenos registros de negociações com a reitoria ou de atos públicos dos estudantes.

Abandonou-se praticamente o assunto, relegando-o a um acompanhamento apenas factual e superficial, bem aquém do que a gravidade da crise parece exigir.

A omissão também não deixa de ser uma postura jornalística.

O que está acontecendo na USP? Até que ponto se pode falar em deterioração e/ou em adoção de ?novos caminhos?? Como se chegou a essa situação? Qual é o ?raio-x? dessa universidade hoje?

O leitor da Folha tem o direito de saber."