Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"O controle", copyright Folha de S.Paulo, 4/8/02

"Em conversas reservadas muita gente de peso avalia que o país está derretendo, que Argentina e Uruguai são vizinhos não só geográficos. Os EUA pressionam para controlar novo acerto com o FMI. Há no ar um cheiro cada vez mais forte de deterioração econômica e social.

Nessa situação dramática, poucas vezes se viu tão nitidamente exposta a importância de uma cobertura jornalística crítica da disputa eleitoral.

Embora de modo indireto e pelo avesso, coube a Nelson Biondi, coordenador de marketing da campanha de José Serra (PSDB), chamar a atenção para isso.

Conforme reportagem de quarta na Folha (veja abaixo), a uma ?platéia? apreensiva ante o desempenho pouco estimulante de seu candidato nas pesquisas, o publicitário afirmou:

?Vocês estão criticando a campanha antes de ela começar?.

Avaliou, segundo o texto, que a campanha não tem hoje o ?controle da comunicação? e que ?a imagem que aparece do candidato é a que a mídia transmite?.

?A partir de agosto (começo do horário eleitoral gratuito), vamos ter o controle novamente?, disse Biondi.

Embora seu formato e a preponderância da visão marqueteira ainda precisem ser questionados, a propaganda eleitoral gratuita é um direito, dos partidos e da sociedade.

Mas a argumentação de Biondi expõe uma disputa não declarada entre ela e a imprensa. E ele, no fundo, tem razão.

Até aqui, a cada onda de exposição de um candidato na mídia correspondeu uma ascensão nas pesquisas, e a cada subida seguiram-se reportagens que, mais ou menos, a contra-arrestavam.

Exemplo maior foi o de Roseana Sarney e sua frustrada candidatura. Mas cada candidato teve (ainda tem) pelo menos um ?dossiê? ou ?caso? a lhe pesar nas costas.

Se o controle da comunicação de que fala Biondi não ficou, até aqui, totalmente na mão dos marqueteiros, foi porque a imprensa criou algum contrapeso.

Nota dez para ela? Não necessariamente, pois boa parte dos tais ?dossiês? foi fruto, na verdade, da atualização de acusações antigas que, por ?esquecimento? da própria imprensa, haviam ficado, em seu nascedouro, bastante circunscritas em investigação e divulgação. Novo mesmo, até agora, quase nada.

Além disso, por mais que desta vez, diferentemente do ocorrido em 89, 94 e 98, proclame-se a existência de uma isenção maior, há muita oscilação na ?imparcialidade? e não têm sido poucos os momentos de sufoco declarado do pluralismo (alguns apontados nesta coluna).

Houve atritos entre os candidatos e parte da imprensa. Pergunto, no entanto, se o ideal não seria que eles fossem ainda maiores e mais numerosos.

Até o momento, nada se vê sobre as eleições legislativas, num país em que o jogo de forças no Congresso tem papel fundamental na aplicação de qualquer programa de governo.

Nada se vê sobre o financiamento das campanhas, enquanto os jatinhos voam à toda, publicitários e assessores faturam como nunca e as ruas já se encontram lotadas de cartazes, banners e faixas.

Nada se vê sobre o balanço dos oito anos do atual e governo.

A partir do dia 20, com o horário eleitoral, o desafio será ainda maior -e a ?provocação? de Biondi ganhará densidade.

A vigilância terá de se multiplicar diante do bombardeio diário de publicidade. O contrapeso deverá ser simultâneo, se não antecipado, não posterior ou reativo.

Cresce a obrigação de desembrulhar com didatismo os pacotes obscuros vendidos na propaganda; estimular o debate de propostas (ponto frágil da cobertura) para além da retórica; impedir que a agenda dos candidatos prevaleça em detrimento do direito que o (e)leitor tem de obter informação esmiuçada.

O debate de hoje à noite na TV Bandeirantes, por exemplo, é teste, como as sabatinas com os candidatos anunciadas pela Folha e a nova rodada de entrevistas no ?Jornal Nacional?.

Testes são também os episódios imprevistos, só aparentemente inofensivos, como o bate-boca entre Marta Suplicy e Rosinha Matheus após entrevista ao ?Globo? de quinta na qual a prefeita criticou (referindo-se a Patrícia Pillar, segundo o jornal, ou a Rosinha, de acordo com nota posterior de Marta) a exploração das mulheres pelos maridos na vida política. A Folha deu mal este caso em que uma estrela do PT meteu os pés pelas mãos.

Biondi falava por si, aludindo ao fato de que Serra terá muito mais tempo na TV do que os demais. Mas seu ?desafio? indireto à mídia é, na verdade, o mesmo que a sociedade faz a ela.

Principalmente quando o país afunda -e o faz-de-conta publicitário se distancia dessa realidade explosiva-, na hora decisiva da disputa pelo poder."

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"Omt… o quê?", copyright Folha de S.Paulo, 4/8/02

"Participei quinta-feira de seminário na Universidade Federal da Paraíba sobre ?Mídia, Governo, Cidadania e Ensino?.

Em meu painel (?Crítica à Mídia Brasileira Contemporânea?), houve três expositores.

Primeiramente, resumi um quadro da imprensa no Brasil, enfatizando a importância de discutir instrumentos de responsabilização social da mídia. Dei exemplos de outros países, falei da relação entre direito à informação e democracia.

O professor que me sucedeu no microfone traçou um panorama crítico em relação ao ensino da comunicação, defendeu a necessidade de evolução nas grades de currículos, com destaque para a valorização da pesquisa.

O terceiro painelista, também docente, propôs uma revisão da crítica, fez uma crítica à ?crítica totalitária? da mídia, citando diversos autores renomados (nomes como Durkheim, Adorno, Habermas, entre outros) e escolas sociológicas.

Vieram, então, as perguntas por escrito do auditório, formado por cerca de 250 pessoas entre estudantes e professores.

Ao ler uma delas, pisquei os olhos várias vezes. Em letra caprichada, provavelmente feminina, dizia assim:

?O que é omt… sdulman? Desculpe a ignorância, é que somos do primeiro ano de jornalismo?.

Ora, eu falara de ?sistemas de responsabilização da mídia?, entre outras coisas, a um auditório que, ao menos em parte, até ali nem sequer sabia em que consistia a minha função. E eram, já, universitários, estudantes de jornalismo.

Felizmente tive tempo de remediar, responder à legítima interrogação. A partir daí, imagino, facilitou-se a compreensão do que eu mesmo dissera antes.

Em minha cabeça ficou, também, muita dúvida quanto à compreensão que boa parte do público possa ter tido das interessantes, porém complexas, exposições feitas pelos meus colegas de mesa. Espero estar enganado.

De todo modo, o episódio chamou-me a atenção para a possibilidade permanente de existir um fosso entre quem escreve (ou fala) e quem lê (ou escuta), fosso bem maior do que o emissor da fala ou do texto possa imaginar. O que leva diretamente a pensar na relação jornalista/leitor.

A esse propósito, são ilustrativas as pertinentes interrogações de uma leitora sobre o seguinte ?texto-legenda? de uma foto publicada em Esporte, na edição nacional da mesma quinta: ?O goleiro Mare Cech, do Zilina, vê seu colega Marian Klago chutar em seu gol e empata o jogo em 1 a 1 com o Basel. A partida de volta da fase preliminar da Copa dos Campeões será quarta?.

Pergunta a leitora:

?Zilina? Basel? De onde viriam esses ?famosos? e conhecidíssimos clubes? ?A partida de volta será quarta?. OK. Na casa de quem? O jogo foi na cidade do Zilina ou do Basel? Ou os dois são da mesma cidade? Aliás, de que continente? Última pergunta: o caderno é só para iniciados??.

Quem dera cada jornalista pudesse passar pelo menos dois dias por ano, intensivamente, no meio de um grupo de leitores ou de estudantes de jornalismo. Seria um aprendizado e tanto."