Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bernardo Ajzenberg


Nota do OI: Os Ouvidores de jornais europeus Diário de Notícias, Jornal de Notícias, El País, La Vanguardia e Le Monde estão em férias.


FOLHA DE S.PAULO

"Caixas-pretas", copyright Folha de S.Paulo, 18/8/02

"A Folha brindou seus leitores com quatro sabatinas a que aceitaram se submeter na semana passada os principais candidatos ao Planalto.

Foi o último lote de entrevistas com eles antes do início da propaganda eleitoral gratuita.

Numa iniciativa inédita, também leitores puderam lhes dirigir perguntas, e as regras, mínimas e básicas, garantiam ampla liberdade para entrevistados e entrevistadores.

Com poucas exceções, rádio, TV, internet e jornais cobriram os eventos. Muita curiosidade existiu em torno deles.

Ponto, portanto, para a imagem do jornal, seja em relação a seus leitores, seja ao público de mídia em geral.

Mas é preciso ir mais fundo na avaliação política e jornalística dessa série de encontros. Até que ponto se cumpriram as expectativas depositadas nela? Qual foi sua contribuição singular, em comparação com outras iniciativas semelhantes?

Na reportagem que apresentava as sabatinas, domingo passado, o leitor Eduardo Guimarães sintetizou, de modo pessoal, o que, no fundo, animava a idéia:

?Tenho a expectativa de que se consiga produzir mais do que se vê nas TVs. Espero ver respostas mais objetivas, menos genéricas, voltadas a um público mais exigente. Espero ver, também, a politicagem de fora, pois a nós cidadãos ela pouco interessa?.

Quem acompanhou a íntegra das entrevistas na Folha Online ou suas versões impressas pôde se atualizar um tanto com relação aos presidenciáveis. Mas é difícil afirmar que se tenham concretizado as expectativas resumidas pelo leitor.

Ao contrário, demonstrou-se que os candidatos, com seus assessores profissionais e seus marqueteiros, estavam muito mais preparados para lidar com a Folha do que o jornal estava para efetivamente sabatiná-los.

Entrevistar não é agredir, humilhar, muito menos submeter alguém a um interrogatório do tipo policial ou a uma espécie de ?sessão de tortura?.

Jornalista não é candidato; não pode nem deve encarar o entrevistado como se fosse um adversário a ser derrubado.

No entanto, ao mesmo tempo em que possibilita a um político expor propostas e idéias, precisa, sim, ser capaz de extrair algo além das generalidades, fazer revelarem-se para os leitores as diversas ?caixas-pretas? (expressão já empregada, nesse sentido, pelo jornalista Boris Casoy) que todo homem público esconde.

Momento nobre do jornalismo, a arte da entrevista consiste justamente nisso. Um jogo formal, profissional, com liturgia própria, princípios e técnicas cuja relevância e caráter de serviço público se acentuam quando na roda, em vez de um escritor ou um popstar, há um candidato.

E, aqui, as sabatinas, jornalisticamente, malograram.

Lula, na segunda-feira, parecia tão à vontade como se estivesse na sala de sua casa. Até aí tudo bem. O problema foi que, na maior parte do tempo, também a Folha parecia estar na casa dele, para uma espécie de bate-papo amigo em torno de um chá.

Nas questões programáticas, o jornal foi incapaz de romper a couraça de formulações abstratas que o candidato, por opção política, vem mantendo até agora ao longo da campanha.

Inexistiram questionamentos sobre assuntos considerados delicados, como reveses em administrações petistas ou o caso do suposto esquema de propinas em Santo André, o qual, no entanto, consome há tempos páginas e páginas do próprio jornal.

Perguntas em tese embaraçosas (obrigatórias), sem serem por isso mal-educadas, partiram mais, na verdade, dos leitores -como aquela sobre como o líder petista ganha dinheiro para sobreviver. A rigor, como escreveu o colunista Marcelo Coelho em análise na própria edição do encontro, terça-feira, não houve bem uma sabatina.

Mesmice

Os eventos com Ciro Gomes, terça, e com Garotinho, quarta, não tiveram esse ar de conversa informal. Houve tensão, atritos.

O resultado, para o leitor, porém, foi igual: respostas previsíveis, mesmice, superficialidade, ataques aos alvos de sempre.

Evidenciou-se, nesses dois casos, que não se trata de um problema de grau de agressividade ou da armação de ?pegadinhas? surpreendentes. Dessa fase, está claro, o jornalismo já passou.

Trata-se, sim, do preparo técnico do jornal para entrevistar nada mais nada menos do que alguém que pode ser daqui a poucos meses o presidente da República e que, ademais, há muito se prepara para lutar por isso.

Simplesmente, de novo, com raras exceções, o jornal não conseguiu formular questões detalhadas, com abordagens ou argumentos novos, fundamentadas em dados e documentação, reportagens da própria Folha ou pesquisa aprofundada, de modo a obrigar os candidatos a modificar seu articulado script.

Mais uma vez, foi da platéia, no caso de Ciro, que vieram perguntas que, apesar de partirem de um detalhe, fazem emergir traços significativos do entrevistado (como aquela sobre sua afirmação, não verdadeira, de que estudara ?a vida toda? em escola pública).

Mais uma vez, os candidatos deram o seu ?show?.

Presente

Reproduzida ontem no jornal, a sabatina com José Serra teve ?clima? semelhante à de Lula.

De cara, enfatizando a importância de falar mais do futuro do que do passado (balanço do governo FHC), o candidato conseguiu fazer com que se esquecesse também o seu presente no mínimo sufocante.

Foi preciso que um leitor, após quase duas horas de entrevista, fizesse a pergunta cujo conteúdo mais intriga hoje inclusive os eleitores do presidenciável: de onde vem sua dificuldade para decolar nas pesquisas?

A importância política do assunto se expressou ao longo da semana em reportagens sobre a crise na campanha tucana, e basta ler a pesquisa DataFolha hoje neste jornal para atestá-la.

Havia que se discutir programa e futuro, claro. Mas como passar ao largo daquele tema?

Serra, no entanto, tergiversou simpaticamente com uma ?sacadinha? não-inédita (?treino é treino, jogo é jogo?), e ficou por isso mesmo.

Decepção

O leitor que acompanha esta coluna talvez se recorde que em 31 de março abordei as entrevistas dadas pelos candidatos em sequência do programa ?Roda Viva? (Rede Cultura).

A avaliação, então, foi muito parecida com a destas sabatinas.

A diferença é que, ali, eram jornalistas de vários veículos atuando. Diluía-se a responsabilidade. Aqui, trata-se da Folha. Não de jornalistas individualmente, mas da instituição.

Ao contrário dos candidatos -que, não custa repetir, há anos se preparam para essa disputa-, o jornal expôs não se ter armado o bastante para estar à altura da inovadora iniciativa que ele próprio criou. E isto apesar das suas regras flexíveis -sem tempo determinado para perguntas e respostas- e das experiências do ?Roda Viva? ou das entrevistas na Rede Globo, abordadas aqui semana passada, que geraram custos aos candidatos e benefícios à emissora.

Volto ao leitor Eduardo Guimarães. Em e-mail, ele transmitiu as impressões sobre as sabatinas a que assistiu: ?…após ter refletido bastante, não gostei. O que pude extrair de novo… foi muito menos do que esperava?.

Mesmo assim, ainda com otimismo, ele conclui: ?Semana que vem, tem mais: os candidatos a governador?."