Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Mão de Deus", copyright Folha de S.Paulo, 1/9/02

"Desde 21 de agosto até a última sexta-feira, não saiu uma única edição da Folha em que não houvesse ao menos uma reportagem ou alguma referência destacada ao filme ?Cidade de Deus?, que estreou, justamente, há dois dias.

Isso sem falar no material intermitente, mas regular, publicado pelo jornal desde que a obra foi exibida em sessões reservadas para o presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva (6/8) e para o presidente Fernando Henrique Cardoso (10/8).

Não foi uma obsessão que teria tomado conta do caderno cultural (Ilustrada), mas uma febre que se espalhou discretamente, aos poucos, por todo o jornal.

Veja no quadro ao lado como isso se deu, por exemplo, ao longo da semana passada.

Domingo: reportagem em Dinheiro sobre um sistema de microcrédito existente na favela Cidade de Deus, com texto à parte sobre o filme.

Na segunda-feira, o Folhateen trouxe capa sobre violência na periferia tomando a obra como ?gancho?.

Terça-feira: um anúncio promovia o concurso ?Ilustrada leva você para assistir Cidade de Deus?. O prêmio: dois ingressos para ver o ?aplaudido filme?.

Quarta-feira, na seção ?Eu Voto em…? do caderno Eleições, o diretor da obra revelava sua preferência eleitoral.

Quinta-feira: o Fovest (suplemento semanal para o vestibular) dá a dica do filme na seção ?Em dia?.

Finalmente, na sexta, capa e página 3 da Ilustrada, mais uma resenha no Guia da Folha, para a aguardada estréia.

Capilaridade

Nada contra o filme, que ainda não vi e tem recebido elogios.

O que chama a atenção, nesse caso, é como uma produção cultural, apoiada no casamento com um tema atualíssimo (violência/miséria) e num marketing hollywoodiano, consegue adentrar um veículo de comunicação por todos os poros, capilarmente, seguidamente, sem que o próprio veículo, por se fabricar de modo em grande parte atomizado, pareça se dar conta.

Quarta-feira, além da seção em Eleições, também a Ilustrada publicou algo sobre o trabalho, mas criticamente, com um rapper da própria Cidade de Deus acusando-o de ser ?preconceituoso?. Na sexta-feira, dia da estréia, uma antropóloga, no mesmo caderno, o considerava ?equivocado?.

Mas nem esse ?afastamento? resolve o problema. De certa forma, apenas legitima a operação, dando-lhe um ar de ?equilíbrio?. E fica difícil explicar para o leitor que não haja aí uma espécie de orquestração entre produção do filme e jornal.

Esse é o fenômeno -e cabe deixar claro que ele não ocorre, nem de longe, apenas na Folha.

E o problema, qual é?

É que essa enxurrada multifacetada de informações sobre um mesmo produto, sem dosagem controlada, expressa a vulnerabilidade do jornal perante um modelo tentacular de divulgação e pressão -sutil e adocicado aqui, agressivo e prepotente ali- adotado com crescente sofisticação pela chamada indústria cultural.

Por melhor ou mais necessária que seja uma obra de arte, faz sentido que um jornal a absorva em suas páginas feito esponja, indiscriminadamente?

Ao fazê-lo, não pode dar a impressão -nefasta para sua credibilidade- de estar instrumentalizado, refém de uma lógica promocional alheia ou de aplaudir o lobby?

Em tempo: se você usa a internet e quer saber ?tudo sobre o filme?, entre na Folha Online, pois também lá -é isso mesmo- há uma página especial só para ele.

***

No último domingo, você foi informado pela Folha de que a apresentação de Caetano Veloso no parque Ibirapuera (São Paulo), sábado, atraiu, segundo os organizadores, 120 mil pessoas.

Outros jornais falaram em 80 mil pessoas, com base na Guarda Metropolitana. Uma diferença de ?apenas? 40 mil cabeças.

Em qual número acreditar?

Em casos como esse, de multidões, é sempre recomendável informar ao leitor, quando houver, os dados de pelo menos duas fontes -algo que não foi feito nem pela Folha nem pelos concorrentes.

Alguém de olho

A foto acima, do traficante Ratinho, preso no Rio por envolvimento na morte do jornalista Tim Lopes, foi publicada pela Folha terça-feira (27), mas apenas na edição Nacional.

Como se vê, nela os policiais forçam o preso a levantar o rosto e exibi-lo à imprensa.

Ao seu lado, editou-se, além da reportagem principal, um texto intitulado ?Policiais obrigam o criminoso a mostrar o rosto?.

Pois essa imagem, que apareceu também nos principais jornais do país, foi trocada, na edição que vai para SP e o DF, por uma mais ?tradicional?, em que Ratinho está em pé, cabeça abaixada, ninguém a importuná-lo.

Quanto ao texto, sumiu, resumindo-se a duas linhas sob a nova foto o fato de que agentes o obrigaram a levantar o rosto para ser fotografado e filmado.

A troca foi uma opção do editor de Fotografia, Eder Chiodetto, achando de mau gosto a imagem inicial e que a prioridade da notícia era a prisão do traficante, não a atitude da polícia. ?Mantive a informação mais importante e poupei o leitor de uma imagem que beirava o repugnante?, explica o editor.

Por problemas de comunicação, segundo informa a Secretaria de Redação, essa decisão não foi discutida com o editor de Cotidiano, Nilson de Oliveira, que, ao contrário, avalia que a foto deveria ter sido mantida ao lado da informação de que a polícia obrigara Ratinho a exibir-se.

Como se vê, é questão polêmica, mesmo dentro da Redação.

Em especial desde a morte de Tim Lopes (junho), estabeleceu-se entre imprensa (ao menos boa parte dela) e polícia uma espécie de cumplicidade perigosa, que faz com que a primeira aplauda e veja até com naturalidade ações claramente irregulares ou ilegais da segunda.

Para Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal e articulista da Folha, com quem conversei sobre o tema, ?o medo da violência tem feito com que a sociedade tolere de um lado ações clandestinas da polícia (como no caso do Gradi) e de outro o espetáculo da publicidade policial (como no caso Tim Lopes)?.

Considero que a foto inicial, mesmo sendo chocante, não atinge o patamar do impublicável. Ao mesmo tempo, retrata com nitidez uma atitude policial irregular -já que, pela lei, o preso não é obrigado a exibir-se.

Lugar de bandido é na cadeia, como se diz. Isso não está em questão. Mas há de haver um limite de tolerância em face de ações ilegais da polícia.

Este é o sentido, por exemplo, das reportagens que o jornal publica desde o final de julho sobre ações do grupo especial denominado Gradi, da PM paulista.

Alguém tem de estar de olho nisso -e uma das funções do bom jornalismo, sem dúvida, passa por aí. Nesse caso concreto, a foto que você vê acima e o respectivo texto -ambos eliminados na edição SP/DF- representavam algo nessa direção."