Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Trunfo no front", copyright Folha de S.Paulo, 23/3/03

"É cedo para avaliar a cobertura da guerra dos EUA contra o Iraque.

De imediato, chama a atenção a inclinação da mídia norte-americana a apoiar a ação de George W. Bush ou a ela se resignar -ainda que criticamente.

Da mesma forma, com exceção do Reino Unido (onde há divisão), a imprensa européia condena com veemência a operação Liberdade Iraquiana.

Não deixa de ser curioso o fato de que não foi a CNN, mas sim a RTP, TV estatal de Portugal, a primeira rede a exibir a imagem dos ataques iniciais.

No Brasil, os principais jornais têm sido desde o início, em editoriais, contrários ao conflito e ao unilateralismo de Bush.

O ?chapéu? adotado pela Folha para a cobertura ao longo da semana vai nesse sentido: ?Ataque do império?. O do ?Globo?, mais ainda: ?A guerra de Bush?. Resta ver até que ponto essa opinião irá comprometer a isenção jornalística e o equilíbrio nas reportagens e análises publicadas.

A Folha tem, aí, um grande trunfo: é o único diário brasileiro, até o momento, a ter conseguido visto de entrada no Iraque a seus enviados especiais (o repórter Sérgio Dávila e o repórter-fotográfico Juca Varella).

Conforme relato da Secretaria de Redação, o pedido foi feito em 21 de janeiro, mas s&ooacute; em 3 de fevereiro, após vários contatos, a embaixada iraquiana em Brasília aceitou analisá-lo -exigindo o perfil dos repórteres.

Um sinal positivo foi dado em 13 de março, mas o visto só foi concedido em conversa ?ao vivo? com os jornalistas pelo embaixador Jarallah al Obaidy no dia 15.

Dávila e Varella fizeram dois dias de curso de sobrevivência em situações de guerra e embarcaram para Londres, onde compraram coletes à prova de balas, capacetes, máscaras contra poeira radioativa e armas químicas e biológicas, além do equipamento de comunicação.

Chegaram à Jordânia na terça (18). Após 11 negativas, conseguiram que um motorista os levasse, por US$ 200, para o Iraque, pela rodovia Amã-Bagdá, a 140km/h.

Que o jornal, para o bem de seus leitores, faça um bom uso desse trunfo.

Com pito, sem pito

Em duas reportagens, uma na segunda e outra na quarta, a Folha informou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva usaria a reunião ministerial da Granja do Torto, na quarta, para ?chacoalhar? sua equipe, cobrar mais resultados e melhor desempenho.

Uma reportagem sobre os ?bastidores? do encontro, na quinta, noticiava, no entanto, que ?um esperado sermão light aos ministros não foi passado?. Não teria havido, então, o anunciado ?puxão de orelhas?.

O fato poderia significar só uma mudança de rota no comportamento presidencial não fosse o contraste entre a informação da Folha e a do ?Estado de S.Paulo? sobre o mesmo evento.

Sob o título ?Lula pede a ministros mais ação e menos futrica?, o jornal concorrente informava que, ?durante a reunião, o presidente também passou um ?pito? nos colaboradores que não resistem aos holofotes…?.

Qual dos jornais se teria deixado induzir a divulgar notícia errada por uma ou outra versão de participantes da reunião?

Como é que veículos de comunicação sérios chegam a informações tão nitidamente opostas sobre um único evento?

O pano de fundo do desencontro parece estar no modo de apuração das informações, no grau de confiabilidade das fontes e na checagem de suas revelações.

Um dos grupos de leitores (o da Folha ou o do ?Estado?) saiu mal-informado. Quem lê os dois jornais ficou no mínimo confuso.

Assessor repórter

Há muitas queixas de jornalistas sobre a dificuldade de acesso e de obtenção de informações sobre o novo governo.

A esse propósito, um episódio sintomático aconteceu na semana em relação à cobertura do almoço de Lula com o arquiteto Oscar Niemeyer terça-feira.

Embora os repórteres tenham tido acesso a ambos após o evento, o secretário de Imprensa da Presidência, Ricardo Kotscho, redigiu ele próprio uma reportagem assinada, disponibilizada depois aos jornais.

O texto foi reproduzido pelo ?Globo? e, em trechos, pelo ?Correio Braziliense?, dentre os jornais mais conhecidos.

Conversei com Kotscho, e o jornalista diz que não pretende tornar regra tal procedimento, mas que isso pode voltar a acontecer eventualmente.

Temo que a idéia, paradoxalmente, acabe por alimentar aquelas queixas dos jornalistas. Parece-me impróprio reunir numa mesma figura a do assessor de comunicação e a do repórter.

Em todo caso, a responsabilidade por veicular ou não o resultado eventual desse tipo de iniciativa será, sempre, da mídia. Por seu conteúdo, o caso Lula-Niemeyer resultou, em si, em algo inofensivo. Mas se a moda pega…

O juiz, Gaza e a cadela

?A importância simbólica desse assassinato em que o crime parece ter vencido e intimidado a sociedade merece mais do que um anúncio discreto na primeira página (…) Tal fato violento não ocorre diariamente em países civilizados onde as máfias não comandam a sociedade, exemplos em que o Brasil não parece mais se incluir.?

Esses são trechos de um e-mail de um leitor médico ?entristecido? com a cobertura dada pela Folha no sábado (15) ao assassinato do juiz Antonio José Machado Dias, de Presidente Prudente (SP), aparentemente a mando do chamado crime organizado. E ele tem razão.

O caso escandaloso, de impacto internacional, recebeu na capa do jornal apenas uma chamada de uma coluna, à esquerda da parte inferior da página.

Internamente, na edição nacional, foi editado no pé da capa de Cotidiano, virando assunto principal, no alto, apenas na edição SP (fechada às 23h23).

Na Primeira Página, a mudança só veio numa edição ainda mais tardia, encerrada à 1h30 do sábado, com um título maior, em quatro colunas -ainda assim, embaixo da dobra.

Não foi esse, porém, o único exemplo da semana em que a Folha se mostrou pouco sensível à relevância jornalística de um assunto -seja pela força do próprio fato, seja por sua simbologia expressiva.

Na segunda-feira, ao menos onze palestinos, inclusive uma menina de quatro anos, foram mortos na faixa de Gaza em choques entre soldados israelenses e atiradores palestinos.

O ocorrido, no entanto, passou longe da capa da edição de terça. Mais grave: foi registrado apenas numa nota ?Panorâmica? ao pé de uma página de Mundo.

Episódio mais curioso foi o da cadela Michelle, na quinta-feira, quando os principais jornais publicaram a foto da fox terrier de Lula chegando à Granja do Torto -onde havia uma reunião ministerial- em veículo oficial de uso exclusivo em serviço.

A Folha mencionou o fato, registrou que o veículo era de ?uso exclusivo da Presidência?, mas não publicou a expressiva imagem da cadela no carro nem deixou claro ao leitor que poderia haver, aí, irregularidade.

A foto só saiu na sexta, ilustrando um texto sobre o debate suscitado por Michelle na Câmara dos Deputados.

Essa timidez contrasta com o tom abertamente crítico adotado em 1991 quando a mulher do então ministro do Trabalho e da Previdência Social, Rogério Magri, foi ?flagrada? usando uma kombi chapa branca para levar dois cachorros num veterinário.

Em 15 de maio daquele ano, o caso recebeu espaço na capa da Folha e foi a manchete interna da nobre página 4.

Não está claro o grau de irregularidade no caso de Michelle. Mas, no mínimo por seu aspecto simbólico e pelo inusitado, o discreto tratamento editorial a ele reservado sugere ter havido, aqui, um exemplo claro do dito ?dois pesos, duas medidas?."