Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

8/02/02 – As falácias de FHC – O Estadão dá manchete hoje (8) a mais uma falácia de FHC: o desafio para que o Congresso aprove leis contra o crime. Como se a culpa da crise de segurança não fosse do governo. Sem chamar muito a atenção, a Folha da quinta-feira mostrou a face falaciosa de FHC. Relacionou oito declarações importantes dele, durante os tedioso balanço de seu governo, e listou ao lado oito omissões, que praticamente desdizem o que ele disse. Uma falácia exemplar de FHC é a afirmação de que durante o seu governo o PIB nunca foi negativo. Em 1998 e 1999, porém, esse índice cresceu menos do que o crescimento da população, o que significa que o PIB per capita e, portanto, a renda per capita caíram. O mesmo truque foi usado por FHC ao falar de comércio exterior ou de indicadores de saúde coletiva, sem mencionar a dengue. Este box da Folha está ótimo. Poderia ser ampliado com mais itens falaciosos do discurso e usado na campanha eleitoral. Garotinho certamente fará isso. Outros jornais fizeram o jogo dos tucanos, mas nenhum com o entusiasmo do Estadão…

Jogo pesado

O JB dá destaque ao lançamento hoje do programa ?auxílio-gás?, que pode beneficiar 4,5 milhão de famílias carentes, com uma esmola de R$ 15 a cada dois meses. A Folha de hoje mostra que esse é o terceiro anúncio solene desse programa em dois meses. No dia anterior, o JB revelou que FHC deixou de gastar R$ 13,7 bilhões do orçamento de 2001, para poder gastar em 2002, ano eleitoral. Talvez por causa dessa retenção de dinheiro, para uso eleitoral, tivemos apagões e surtos de dengue. A oposição deveria investigar a fundo essa dança de recursos do orçamento par uso eleitoral. Ou o JB está equivocado, ou a oposição está devagar demais.

Dengue e política

O surto de dengue poderia ter sido evitado através de uma campanha preventiva. Ontem os jornais deram um novo total, de 18 mil casos no Rio e sete mortes. Há surtos em vários Estados. É o caso se instituir uma CPI da dengue, para verificar onde se deu a prevaricação. Pode ser que antes não adiantava denunciar, mas agora estão aí Garotinho e Ciro Gomes para engrossarem o coro das denúncias. Há três dias, Garotinho e Serra trocam acusações pela mídia, um responsabilizando outro pelo surto de dengue. A acusação de Garotinho de que Serra demitiu os 6000 agentes mata-mosquito, apesar de sua advertência, deixou o tucano muito mal. O troco foi a acusação de Serra de que Garotinho deixou de usar R$ 11 milhões de uma verba contra a dengue: destaque no Estadão e manchete de página inteira de O Globo, na quinta-feira.

Duas frentes de uma mesmo bloco político

Mendonça de Barros admite, em seu artigo de hoje na Folha, que Roseana e Serra são duas candidaturas paralelas do mesmo sistema de forças. A prova dos nove veio com o discreto anúncio, ontem, de que o marqueteiro de Roseana, Nizan Guanaes, vai agora trabalhar para Serra, a pedido de FHC. Na última edição da revista República está a declaração de Nizan: ?Quem manda em mim chama-se Fernando Henrique Cardoso, quando o PFL me convidou para fazer a campanha de Roseana, pedi autorização ao presidente. Se ele disser para eu parar, eu paro…?

Nizan trabalhou tão bem que Rosena subiu demais. O propósito de FHC era ajudar Roseana a ocupar espaço de todos, menos o de Serra. Não deu muito certo. Mas no final os dois vão somar.

Geopolítica do drama Argentino

A mídia brasileira não está dramatizando como deveria, especialmente nas manchetes, as pressões dos Estados Unidos para que a Argentina não se aproxime do Brasil, como solução para sua crise, e muito menos as pressões norte-americanas para que a Argentina não imponha um desconto muito grande no pagamento de sua dívida externa.

As pressões americanas sobre a Argentina

Quem conta bem a história é Cristiano Romero, em Valor de quinta-feira, na qual estão claras as condições principais impostas por Bush para permitir que o FMI renove créditos à Argentina. O governo americano exige ?que a Argentina reestruture sua dívida externa estimada em US$ 141 bilhões e querem também que o governo argentino recapitalize os bancos…? Os outros jornais enrolaram-se nas demais condições , tais como ?adotar um sistema tributário voltado ao crescimento?, incluídas no discurso do sub-secretário de Assuntos Internacionais do Tesouro norte-americano, John Taylor, apenas para camuflar seu objetivo central e único de proteger os bancos americanos e seus créditos.

Argentina se apóia no Brasil

?Para Taylor, dolarizar teria sido melhor?, diz a segunda matéria da Folha de quinta-feira, essa bem clara e crítica. Taylor não conseguiu esconder sua decepção com o fato de a Argentina ter fugido da dolarização e, ao contrário, adotar um regime cambial que agora torna possível uma grande aproximação com a economia brasileira e, portanto, a restauração do processo de construção do Mercosul. Isso é tudo o que os norte-americanos não querem. Na mesma edição, o ministro Sergio Amaral anuncia a abertura ampla do mercado brasileiro às mercadorias argentinas. Mas hoje, no Estadão, o mesmo Sergio Amaral diz que o Brasil vai exigir reciprocidade.

A oposição deveria criticar essa exigência. A abertura unilateral do mercado brasileiro não só à Argentina, mas a todos os países latino-americanos, foi proposta com todas as letras pelo ex-embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, durante o II Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

Não deixe de ler

Na página B13 do Estadão da quinta-feira, o artigo de Robert Samuelson: ?EUA perpetuam os subsídios agrícolas?. Entre 700 mil e 900 mil agricultores norte-americanos recebem todos os anos os cheques dos subsídios. Samuelson calcula em US$ 300 bilhões o total de subsídios dados à agricultura dos EUA nos últimos 20 anos. E diz que o Congresso está pronto para aumentar os subsídios. Segundo Samuelson, esses subsídios não resolveram nenhum problema da pequena agricultura norte-americana, que continua desaparecendo e é apenas uma forma camuflada de suborno político. Também ?O futuro da Argentina?, de Washington Novaes, na página A2 do Estadão de hoje, relaciona o drama argentino aos subsídios agrícolas dos países ricos.

Os dois artigos corroboram o de Rubens Ricupero sobre o processo de asfixia da economia argentina pelo protecionismo agrícola norte-americano e europeu, a partir do fim da primeira guerra mundial: ? A traição da história?, publicado na Folha de 22 de dezembro de 2001, e citado por Cartas Ácidas da segunda-feira seguinte.

6/02/02 – O chocante lucro do Bradesco – Tão chocante, no contexto da nossa miséria, que os grandes jornais sentiram o drama e tentaram escamotear tanto seu significado quanto sua carga emblemática, retirando da informação suas implicações éticas e políticas. A Folha jogou a notícia para a última página do caderno de dinheiro da terça-feira, quando deveria ter dado manchete de seis colunas na primeira página.

A pequena análise que acompanha o texto da Folha é notável pela ausência de julgamentos valorativos.Tudo se explica pelo contexto supostamente técnico do mercado. ?No passado os bancos lucravam com a inflação… e em 2001 lucraram com operações de câmbio e com os juros altos?.

Sutil foi o editor de economia do Estadão: ?Mais ágil, Bradesco lucra R$ 2,17 bilhões em 2001?. A explicação também é apenas técnica (mais agilidade administrativa). Mas no campo do imaginário, o adjetivo ?ágil?, um valor positivo, tem o papel de sancionar como legítimo e bom o lucro do Bradesco, pois foi um lucro obtido através de uma virtude, a agilidade.

E a falência da ética jornalística

Sabemos que, no capitalismo, o lucro é uma virtude. Mas nenhum desses jornais criticou o tamanho exorbitante do lucro do Bradesco, que subiu 24,7%, chegando a 22% do seu patrimônio líquido. ?O diretor-presidente da consultoria Austin Asis, Erivelto Rodrigues, considerou muito bom o resultado …? diz a matéria do Estado. E vai nesse tom até o fim. O fio condutor da narrativa do Estadão é o do interesse dos bancos, quando a ética jornalística manda que o referencial valorativo das matérias deve ser o interesse público.

Se atentassem para o interesse público, os dois jornalistas que assinam a reportagem -um deles, aliás, lamentavelmente foi meu aluno- contextualizariam politicamente a informação, contrastando o lucro dos bancos com a estagnação provocada pelos juros altos, e chegariam facilmente à conclusão de que, ao contrário do que dizem os analistas de financeiras, foi muito ruim o Bradesco ter tido todo esse lucro.

Teriam discutido a disfunção dos bancos como fomentadores do investimento produtivo, já que ninguém pode investir em capacidade produtiva com os juros atuais. Teriam relacionado esses lucros à política monetária do Banco Central, teriam discutido a tese da subordinação da economia e da sociedade aos interesses do capital financeiro, teriam mencionado de Malan, ao Banco Central e ao FMI.

Estatísticas sem confiabilidade

A Folha de hoje dá manchete principal de primeira página a um estudo da Simonsen Associados apontando queda nos investimentos de empresas privadas no Brasil de US$ 265 bilhões em 2000 para apenas US$ 156,5 bilhões em 2001. É uma daquelas manchetes ?negativas? que caracteriza o estilo Folha, em contraste com o estilo otimista do Estadão. Á primeira vista, temos portanto um saudável exemplo de espírito crítico no jornalismo da Folha, opondo-se ao triunfalismo do seu concorrente. Toda a série usada para a comparação, todavia, está furada. A realidade é bem pior do que essa série indica. Não é verdade que as empresas privadas investiram no Brasil em 2001 quase 31% do Produto Interno Bruto. As contas nacionais elaboradas pelo IBGE mostram que os investimentos privados no Brasil mal chegam, na era FHC, a 20% do Produto Interno Bruto.

Qualquer economista, estudante de economia ou mesmo curioso da economia sabe que a taxa de Formação Bruta do Capital, que mede o investimento (aquela parcela da riqueza produzida aplicada na ampliação da capacidade de produção), atingiu um apogeu da ordem de 27% do PIB na época do milagre econômico, incluídos os investimentos de empresas estatais, que eram significativos. Desde então eles foram caindo, caindo, caindo. Os investimentos privados não poderiam ser da ordem de 31% do PIB hoje.

Quando o erro é de edição

A compilação da Simonsen associados é baseadas em anúncios, releases e coletivas que as empresas fazem, em geral para se promoverem. Muitos desses anúncios são rompantes: somam investimentos programados para dez anos como se fossem acontecer em um único ano. Todos incluem os investimentos de mera reposição do capital produtivo desgastado, em geral da ordem de 10% cento do capital total. E muitos planos são simplesmente engavetados. O mais curioso é que os repórteres da Folha sabiam tudo isso e explicaram tudo isso num box , no pé da matéria intitulado: ?Empresa investe menos do que anuncia?. Nesse box, o Ipea confirma que os dados da Simonsen não prestam. O erro foi dos editores, que deveriam ter dado o estudo da Simonsen em espaço secundário, e com todas as ressalvas. Nunca como notícia verdadeira numa manchete de seis colunas de primeira página. Essa manchete principal é a rigor uma assertiva falsa, o que é muito grave para um jornal da importância da Folha, e um sintoma sério da deterioração da qualidade técnica de nosso jornalismo.

Retrato do Brasil

Só o Estadão teve a sensibilidade de dar manchete (na pág. 11) ao estudo da Unesco: ?Brasil é campeão de repetência no continente?. Em 1998-99, a repetência no ensino básico brasileiro atingiu 24% , muito acima dos 15% do segundo colocado, a Guatemala. No ensino secundário, a repetência no Brasil chegou a 18%, também muito acima dos 10% dos segundos colocados (Argentina, Costa Rica e Venezuela).

Não deixe de ler

A Folha de hoje traz na página dois um artigo de Boaventura de Souza Santos que obviamente deveria ter sido publicado às vésperas do Fórum Social Mundial e não depois do seu encerramento. ?As lições do último tango? atribui a crise Argentina à impunidade outorgada a ditadores e transnacionais nas transições pactuadas na América Latina das ditaduras dos anos 70 às atuais ?democracias de baixa intensidade?. Boaventura foi uma das mais importantes e atuantes presenças no II Fórum Social Mundial, que teve seu encerramento ontem (05/02)."