Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

"DIA 18/02 – Dengue domina a agenda jornalística: A reportagem de capa de Época, ?Tragédia anunciada?, deve fazer um estrago esta semana: revela que o governo FHC engavetou um plano abrangente de prevenção da dengue elaborado por Adib Jatene que teria evitado a tragédia. O Globo de hoje deu na primeira página que só no fim de semana foram registrados mais 2.500 casos. Já são mais de 26 mil casos registrados no Rio, segundo o JB de hoje, que deu manchete forte: ?Dengue avança em sua forma mais grave?. Diz o jornal que 95% dos casos novos são da dengue tipo 3 para a qual não há remédio. A mídia agora está especialmente motivada porque alguns famosos foram picados pelo mosquito.

E tucanos começam a se assustar

Kennedy Alencar revela na Folhade domingo que a dengue é o item número um na agenda tucana elaborada para animar a candidatura Serra. Diz que ?a estratégia de Serra é continuar a dividir a responsabilidade pela epidemia com Garotinho e Maia, mas mostrando interesse em ajudar.? FHC deve se lembrar muito bem das epidemias de encefalite em 1971 e de meningite em 1974 que precipitaram a derrota da ARENA nas eleições de novembro de 1974, um marco importante no processo de esgotamento do ciclo militar e de seu modelo de legitimação eleitoral.

Denuncismo versus discussão séria

As reportagens sobre a dengue continuam marcadas pelo denuncismo. Como se o empobrecimento geral do país, o favelamento acelerado, os cortes orçamentários e o desmonte dos serviços públicos, fatores ligados intimamente ao modelo neoliberal, não tivessem nada com isso. Coube ao sanitarista da Fiocruz, Eduardo Azeredo, no JB de hoje, contextualizar o surto de dengue. Em sobre a musa macabra do verão?, ele explica que a epidemia tem tudo a ver com as distorções introduzidas pelo neoliberalismo no SUS.

Folha tenta por culpa no PT…

Além de superficial, o denuncismo está sendo usado politicamente pelos jornais. A Folha de hoje dá foto legenda de primeira página em que endossa acusação da Funasa contra Marta Suplicy pelo abandono de uma frota de 60 veículos novos de combate à dengue. Mas em sua própria reportagem interna, a Funasa admite que errou ao culpar a prefeitura. A prefeitura deveria exigir reparação da Folha.

…e persevera no jornalismo enganoso

Numa manchete interna de página inteira a Folha de hoje tenta ridicularizar antecipadamente o projeto de Segurança Pública que o Instituto Cidadania vai lançar em Brasília, dando a manchete ?PT tira rota e prisão perpétua de seus planos.? Ora, como o PT poderia ter tirado algo que não havia posto? O correto, se era mesmo para polemizar em torno de detalhes, era dizer: ?PT não inclui rota e prisão perpétua em seus planos?. Além disso, o projeto é do Instituto Cidadania e não do PT. E contou com a participação de entidades e personalidades não petistas.

Demagogia em Buenos Aires

A Folha de hoje deu manchete à recusa de FHC em fazer concessões á Argentina. Na última página do caderno Dinheiro está a base da manchete: Os setores agrários, liderados por Pratini de Moraes, vetaram todas as propostas de redução emergencial de barreiras para os produtos argentinos. Na Gazeta Mercantil a história está mais bem contada. Apesar de faltar um ?só?, na manchete enganosa ? FHC vai dar apoio político à Argentina,? a reportagem na página A4 mostra claramente que o governo abandonou as promessas feitas por Sérgio Amaral de eliminar a curto prazo ?todas as barreiras? aos produtos argentinos. Ou seja: com a visita, FHC tenta usar a crise Argentina para melhorar a sua própria imagem e por tabela a campanha dos tucanos. Não é FHC que vai ajudar a Argentina, é a Argentina que vai ajudar FHC.

A humilhação de Jáder Barbalho

Não deu tempo para a tinta secar nos jornais que noticiaram a prisão de Jáder Barbalho. Temos um caso raro de um fato que ao virar notícia, já não é mais fato. Nem os brilhantes sociólogos da escola pós-moderna francesa, que cunharam expressões como ?simulacro?, para descrever as manipulações da mídia, poderiam imaginar uma situação dessas. O simulacro no caso, foi da justiça e não da mídia. Como um juiz poderia dar a liminar de habeas corpus, depois de outro juiz dizer que eram gritantes os indícios de corrupção e de intimidação de testemunhas? Fausto Macedo, repórter de polícia do Estadão, comenta hoje que prisão preventiva no Brasil só vale para réus pobres.

Uma queima federal de arquivo

A extinção do DNER antes de serem sequer indiciados os envolvidos no esquema de corrupção e falcatruas do órgão, pode ser definida como o equivalente burocrático de uma queima de arquivo. Fecham-se as salas, joga-se muita papelada fora remaneja-se o pessoal, o que era difícil investigar, fica quase impossível. A mídia não teve a coragem de dizer isso com todas as letras, mas insinuou. VEJA deu uma página á história da extinção do que chamou de ?um dos mais ativos nichos de corrupção?. O JB do domingo disse que ?ao extinguir o DNER o governo quis se livrar do rótulo de corrupção associado á sigla?. E revela que o Ministério Público deve anunciar alguns indiciamentos de dirigentes do DNER ainda esta semana. Ora, porque o governo que esperou tanto, não esperou o indiciamento e os julgamentos? Na Folha de hoje está a reprodução completa da carta de ACM a FHC em que ele diz: ? a pura e simples extinção do DNER, como foi a da SUDAN e da SUDENE é insuficiente pois o necessário é pegar os ladrões do erário?.

Pressões vinham de cima

VEJA contou um caso em detalhes: o pagamento a uma empresa privada, a título de aluguel, de R$ 2 milhões a mais do que o devido, por pressão do ministro dos transportes, Eliseu Padilha que por sua vez alega pressão de Eduardo Jorge então ex-secretário geral da Presidência da República. O JB diz que segundo o procurador Pedro Elói Soares, um dos envolvidos, o ministro dos Transportes Eliseu Padilha controlava toda a liberação de dinheiro. E mais: o DNER foi extinto, mas como garantia adicional de que nada saia errado, o ministro Eliseu Padilha ?emplacou o engenheiro Rogério Gonzáles, seu afilhado político? para dirigir o novo órgão que vai herdar a papelada e algumas das funções do DNER. Gonzáles é citado em pelo menos dois dos processos do DNER que o TCU considerou irregulares.

O affair Maluf

VEJA publica esta semana a história de uma engenhosa operação financeira de Maluf repatriando para sua empresa Eucatex, recursos que estavam no exterior através do lançamento de debêntures, depois convertidos em ações que nenhum investidor sensato subscreveria, mas que três fundos estrangeiros compraram. Se as implicações da história de VEJA estiverem corretas, Maluf vai poder dizer não apenas que ele não tem os tais US$ 200 milhões no exterior, como também que os que o acusavam de ter era caluniadores. A Folha de S. Paulo, que furou o resto da imprensa no ano passado, com a informação dos US$$ 200 milhões, tinha a história da operação dos debêntures desde novembro, mas postergou sua publicação e só publicou, mesmo assim pela metade, quando sentiu que ia ser furada. O resultado é que foi mesmo furada por VEJA

Não deixe de ler:

A entrevista do embaixador João Clemente Baena Soares, na página 19 do JB de domingo. Ele diz que os EUA são contrários à união do Brasil com os países do Cone Sul e que a ALCA anula o Mercosul.

Retrato do Brasil

Pesquisa com 50 crianças cariocas que trabalham no narcotráfico publicada na página C3 do Estadão do domingo revela que elas abandonaram as escolas porque acham que escolaridade não dá dinheiro. A reportagem de página inteira mostra que já há uma completa divisão de trabalho no narcotráfico, com sete atividades distintas, começando com o ?olheiro? (vigia), que ganha entre R$ 600 e RS 1.000,00 e terminando no dono da boca, que ganha entre R$ R$ 10.000,00 e R$ 15.000,00. A maioria das crianças que entra no narcotráfico tem 13 e 16 anos."

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DIA 13/02 – Demagogia elétrica – O presidente da República arrisca ser acusado de prevaricação se suspender o racionamento de energia na semana que vem . O JB de terça-feira mostrou (na página 5) que mesmo depois das últimas chuvas, as represas estão com apenas metade de sua capacidade e não tem água suficiente para um planejamento de longo prazo. Numa notinha no pé da página, o alerta de especialistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro: se houver nova seca, a crise vai voltar. A suspensão total do racionamento, prometida pelo governo para a próxima semana, é medida claramente eleitoreira. Tem o objetivo de apagar o apagão da memória dos eleitores.

E a conta de luz vai subir de novo

O anúncio do fim do racionamento vai servir também para ofuscar o verdadeiro drama que atingiu o suprimento de energia no Brasil: devido às falhas do sistema, a conta de luz vai aumentar ainda mais, em cerca de 21,8%, acima da inflação, nos próximos três ou quatro anos. Esse aumento real e seus efeitos nefastos na inflação são discutidos por Sonia Racy no Estadão de terça-feira, com base em estudos do banco BBV.

A democracia segundo Paulo Renato

O ministro da Educação Paulo Renato revelou sua postura autoritária em entrevista à Folha da terça-feira de Carnaval, em que advertiu repetidamente que uma vitória do PT seria uma ?ameaça?. Disse ele: ?Em outros países, como México e Chile, uma eleição significa uma alternância no poder sem mudança radical no sistema… podem mudar as prioridades, mas as compromissos são os mesmos, o compromisso com a estabilidade é o mesmo?. Clóvis Rossi, em seu comentário de hoje na Folha de hoje, lembra que eleições mudaram radicalmente o sistema no Chile, em 1989, pondo fim à ditadura de Pinochet. Rossi chama Paulo Renato de ?ministro da deseducação? e argumenta que é a continuidade do atual sistema que é uma ameaça, como mostra a história recente no Peru de Fujimori e na Argentina de Menem/De la Rúa.

Mantendo a relação de dependência

O mais interessante da entrevista de Paulo Renato é sua ênfase na necessidade de serem mantidos os compromissos externos: os pagamentos da dívida externa e o arrocho monetário e fiscal bolados para assegurar esse pagamento. Ele nem fala das demandas sociais. Só fala em relações internacionais e do risco do isolacionismo. ?Os outros países não iriam aceitar?. A entrevista revela claramente que o papel histórico dos tucanos foi o de domesticar nossa política segundo os interesses do capital financeiro: ?(…) fizemos nesses anos a lição de casa. Um trabalho duro (…) nós equacionamos as dívidas dos Estados, saneamos o sistema financeiro público e privado. Nós privatizamos direito as teles. Uma vitória da oposição trará de volta uma tendência ao isolacionismo do Brasil… seria uma ameaça de botar todo esse avanço a perder.

Insinuações do discurso autoritário

Num trecho da entrevista o ministro diz: ?É mais do que isso: os documentos internos do PT falam claramente numa ruptura radical. Então é algo a ser evitado.? O que são documentos internos do PT? O ministro, com essa construção, quer passar a idéia de que o PT diz uma coisa para o público, mas secretamente planeja outra, como se fosse um grupo de conspiradores.

Paulo Renato seguiu a deixa de Roseana, insinuando que uma vitória do PT levaria o Brasil a uma crise semelhante à da Argentina. É um duplo truque retórico. Explora o temor da desordem, e com isso omite o fato de que a crise Argentina é a manifestação mais aguda de uma crise de todo o modelo neoliberal implantado na América Latina por Menens, Cardosos e Fujimoris.

O PT no poder como prova dos nove da democracia

Coube ao cientista político Fábio Wanderley Reis, em entrevista de página inteira na Folha de segunda-feira, inverter a lógica geral dos tucanos. Diz que o fato de as elites dominantes acharem que uma vitória do PT é uma ameaça é prova de que a democracia não está consolidada no Brasil. Diz ele: ?Se a gente chegasse a viver a experiência pela qual ainda não passamos, de ter Lula ou um outro presidente de esquerda eleito e governando durante um ou dois mandatos, e que ao final de seu período legal transmitisse a faixa ao seu sucessor, aí sim teríamos dado um enorme passo do ponto de vista institucional?.

A questão da governabilidade

Wanderley foi o autor do?paper? encomendando por FHC para distrair a mídia do verdadeiro tema do encontro secreto que manteve com os banqueiros, em julho do não passado. O texto vazou porque esse era o propósito de FHC, e ficou mal para Wanderley. Ele mantém o ponto de vista de que um governo do PT corre riscos maiores de ingovernabilidade do que outros governos. Mas agora ele tira conclusões diferentes, frustrando o jogo da própria Folha, que tem batido demais na tecla do ?risco PT?.

Desregulamentação

Está numa reportagem do insuspeito Wall Street Journal, reproduzida no Estadão de terça-feira: o fracasso de mais uma desregulamentação nos EUA, desta vez a da telefonia. Em vez de aumentar, a competição diminuiu: a SBC Communications, que antes dominava seis Estados americanos, hoje domina treze Estados, controlando um terço de todas as ligações telefônicas americanas.

Retrato do Brasil

Deu na página 7 do Estadão de terça-feira: Pará teve 900 casos de trabalhadores escravos em 2001. A reportagem revela que as fazendas flagradas com trabalho escravo não poderiam receber incentivos fiscais da Sudene, mas continuam recebendo.

Não deixe de ler

Luiz Weiss lamenta que a imprensa não tenha informado adequadamente sobre os importantes debates do II Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Ele discute especificamente a intervenção de Tarso Genro no debate sobre socialismo em ?A esquerda e a barbárie?, na página 2 do Estadão de hoje.

Leia também as reportagens de hoje, no Estadão (Luciano Cavenagui), e de ontem, no Jornal da Tarde (Marici Capitelli), sobre o terror instalado pela polícia na favela Pantanal, em busca (ou não) de informações sobre o caso Celso Daniel. O terror policial é diretamente proporcional ao seu fracasso na elucidação do crime."