Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

"11/3/2002 – Aos leitores das Cartas Ácidas:

Nas próximas três semanas, serei substituído por meu amigo e colega Flávio Diegues, que redigirá as Cartas Ácidas nos mesmos dias, segundas, quartas e sextas, como redator interino. Estarei de volta no dia 5 de abril.

Balanço da Operação Roseana

Não deu muito certo a primeira etapa da ?operação massacre? de Roseana. Lula foi quem mais recebeu os votos perdidos por Roseana segundo a pesquisa Vox Populi; e Serra, quem menos recebeu. Também deu errado o rompimento com o PFL, que foi além do desejado, provocando ódio e sede de vingança do clã dos Sarneys. A Folha de domingo diz que o maior objetivo de Roseana agora não é vencer a eleição e sim derrotar Serra. Fica mais difícil a recomposição e aumentam os riscos de retaliação.

E se FHC pretendia rachar o PFL, como fez com o PMDB, parece que ocorreu o contrário, um movimento forte de unidade do PFL em torno de Roseana, como mostra a demissão anunciada hoje até do presidente da Caixa Econômica Federal, exigida pelo mais ?fernando-henriquista? do PFL, Marco Maciel. Apenas Jaime Lerner e Siqueira Campos divergem da cúpula do PFL, informa o painel da Folha de hoje. Entre os tucanos, surgem tensões internas, como o comportamento de Tasso Jereissati, dizendo candidamente, depois de condenar o uso de dossiês, que ?não acredita no envolvimento do presidente?, e nas queixas de alguns tucanos aos métodos do ?grupo serrista?, como relata a Folha de domingo. Roseana, segundo a Folha chama-os de ?grupo motoserra?.

Primeiro relatório detalhado de baixas

A melhor informação sobre os primeiros resultados está na coluna de Sonia Racy na página B2 do Estadão do domingo em que ela relata o informe dado a FHC por Ney Figueiredo, o grande articulador político dos empresários. A pesquisa qualitativa feita por Ney em 16 grupos de discussão, oito no Rio e oito em São Paulo, revelou: (a) a sociedade acredita que houve motivação política na ação da PF, mas (b) quer investigações até o fim; (c) o nível de conhecimento de Jorge Murad foi mais alto do que o esperado até mesmo na classe D; (d) Lula ganhou mais votos porque sempre foi identificado com a idéia da transparência e honestidade e (e) Serra não ganhou porque foi identificado como partícipe do episódio.

Segunda ofensiva a caminho

A primeira página do JB de hoje noticiando que será pedida a prisão preventiva de Jorge Murad sugere que o governo está disposto a ir até o fim na guerra contra Roseana, para alavancar a candidatura Serra. É o que se lê também nas entrelinhas do artigo de hoje de Carlos Sardenberg, em que ele diz que há 38 inquéritos em andamento só na procuradoria da Sudam no Maranhão, vários deles envolvendo Roseana.

Mídia parte para o linchamento de Roseana

Ficou claro nas revistas semanais, especialmente em Época e Veja, que a imprensa foi municiada pela Polícia Federal e pelos Procuradores, com farto material que deveria estar sob sigilo. Os procuradores ainda têm a desculpa de que uma operação mãos limpas só funciona com apoio da mídia. Mas eles tinham que ter se perguntado se essa operação era para limpar o país ou para eleger Serra. ?Segredos revelados?, confessa a capa de Época. Sua reportagem dá detalhes do conteúdo de cada um dos envelopes numerados de 1 a 10, montados pela polícia na operação. Jornalisticamente, um furo. Juridicamente, uma violação do sigilo. Politicamente, uma confirmação do jornalismo de rabo duplamente preso: ao governo e a dossiês.

O crime do dinheiro em caixa

Repórteres também foram despachados para o Norte e Nordeste com o objetivo de reiterar as acusações contra Roseana. Mas é em cima da imagem repetida (ad nauseam) do monte de dinheiro encontrado no cofre que a mídia de massa, especialmente a TV Globo, promove o linchamento de Roseana e que o governo ainda espera derrubar logo sua candidatura. Fernando Rodrigues avalia na Folha de hoje que ?Roseana foi abatida? pelo monte de dinheiro. O Estadão de hoje vincula parte do dinheiro a uma construtora que venceu concorrências no Maranhão, a Sucesso.

Nem todos participam do linchamento

O linchamento é um dos mais escabrosos comportamentos de massa e infelizmente se manifesta com certa regularidade no jornalismo brasileiro. Alguns jornalistas importantes mais sensíveis perceberam a armadilha e estão se recusando a participar do linchamento, o que abre um flanco na ofensiva de Serra. Elio Gaspari foi o primeiro – ao mesmo tempo destas Cartas Ácidas – a se recusar a participar do linchamento de Roseana e na coluna deste domingo reafirma a posição, recapitulando com novos detalhes os lances do envolvimento do tucano Márcio Fortes com o Dossiê Roseana. Clóvis Rossi, na Folha de domingo compara o episódio à ?sórdida campanha? contra Lula em 1989. Jânio de Freitas junta esse lance ao da nova norma do TSE e denuncia tramas anteriores do mesmo Márcio Fortes. Até Fernando Pedreira, tucano roxo e amigo de infância do presidente, chama a operação no O Globo de hoje de ?mão do gato?, dizendo que ela pode até ter respaldo judicial, mas é igual a outras em que entram a polícia, escutas telefônicas e principalmente os ?vazamentos deliberados para a mídia?. O Estadão não deu hoje o comentário do seu querido ex-editor Pedreira. Seria também a ?mão do gato??

FHC recua na guerra do aço

Os jornais de hoje deixam mais claro que Celso Lafer tem medo de se queixar contra as restrições impostas por Bush ao aço brasileiro e prefere negociar. A abordagem mais completa do problema está na página A6 da Gazeta Mercantil de hoje. A Folha fala numa ?formula coreana?, que tiraria da cota a parte do aço brasileira reprocessada por siderúrgicas instaladas nos EUA.

Mas os entendidos do setor mostram que a decisão de Bush é um golpe sério contra a siderurgia brasileira, e não se resolve por mudança da cota. A própria sobrevivência da nossa siderurgia poderia estar em jogo. De imediato, terão de cortar investimentos ainda não iniciados de ordem de US$ 1 bilhão, conforme a manchete do Estadão do domingo. Mas reações em cadeia na Europa e outras regiões poderão agravar ainda mais o quadro. Na entrelinhas da matéria do Estadão, há a percepção de que o governo está dividido.

Propaganda indevida 1

Um pouco defasado, depois do anuncio de Bush, Jorge Gerdau publica em pagina inteira nos jornais o que deve ser uma nova modalidade de propaganda nada subliminar para Serra. Fala do Avança Brasil e tudo o mais. Isso deveria ser proibido.Um leitor da Folha já reclamou.

Propaganda indevida 2

Elio Gaspari denuncia em sua coluna de ontem que o site da Receita Federal está fazendo propaganda aberta do governo. Isso também deveria ser proibido.

Manchete enganos

Depois que a Folha deu a manchete mentirosa ?Secretário petista lança comitê de apoio a guerrilha colombiana?, foi a vez do Estadão. Só que o Estadão se corrigiu no domingo e a Folha não. O tal secretário não é petista, é do PSB. Mas não pensem que os Mesquita são mais éticos que os Frias, apenas são mais espertos. Os Mesquita admitiram o erro no Estadão, porque pode dar processo. Enquanto isso, o Jornal da Tarde inventou toda uma fantasiosa ?crise? no PT por causa do caso do comitê pró-Farc. A crise só existe nas páginas do próprio jornal, já que o PT não tem nada a ver com esse comitê.

Não deixe de ler:

?O consenso mostra fadiga?, comentário de Darlan Moreira, na página A4 Gazeta Mercantil de hoje, em que ele relata o clima de pessimismo na reunião do BID em Fortaleza.

8/3/2002 Continua em marcha acelerada a operação anti-Roseana

Jânio de Freitas traz novas informações hoje, reforçando a percepção de que uma operação mais ampla de espionagem havia sido organizada pelo tucano Marcio Fortes, para desmontar a candidatura Roseana. Os jornalões continuam sua campanha de acusações contra as empresas de Roseana e Murad, não com base em investigações próprias e autônomas de seus repórteres, e sim em documentos vazados pela Polícia Federal ou pelo Ministério Público, num processo que em tese deveria ser sigiloso. Também estão fazendo um belo carnaval com o dinheiro vivo encontrado na empresa de Roseana Murad. Mais do que o caso judicial, o que vai valer na campanha eleitoral e, portanto, na disputa pelo eleitor é a postura da imprensa. E a imprensa, decididamente, embarcou na campanha contra Roseana.

A síndrome da Escola Base

Entre as muitas contradições das pretensas reportagens, está a justificativa de que a PF procurava provas da ligação da empresa Lunus, de Roseana e Murad, com a Usimar e a Agrima, acusadas de fraude na Sudam. Isso significa que essas provas ainda não existem. Se não existem, o coro de acusações da imprensa tem a cara de um linchamento político. Mas a Folha de hoje traz uma pequena entrevista com o advogado Saulo Ramos em que ele explica a existência de papéis da Usimar na Lunus. Foram documentos pedidos por ele para dar um parecer jurídico. Não é muito convincente, mas e se for verdade?

Manchete enganosa

Um ex-vereador do PSB que faz parte da administração petista de Ribeirão Preto está liderando um movimento de criação de um comitê em apoio às Farc, da Colômbia. Tem mais gente apoiando, inclusive um vereador do PDT e outro do PT. Mas a Folha preferiu dar a manchete: ?Secretário petista lança comitê de apoio a guerrilha colombiana?. Ora, o secretário não é petista. O prefeito é que é petista. A administração, a rigor, também não é petista, é multipartidária. E mais. Ao lado, ao jornal traz nota oficial do secretário de relações internacionais do PT, Aloizio Mercadante, reiterando que o PT não apóia a guerrilha colombiana. A manchete, portanto, é enganosa e tem a finalidade de sujar a imagem do partido. Os editores da Folha tem reiteradamente forjado manchetes enganosas contra o PT. Não seria isso um crime de imprensa continuado?

O milagroso lucro dos bancos

Até o conservador Estadão está chiando contra o lucro dos bancos, numa era de crescente empobrecimento dos brasileiros. Em sua nota editorial de hoje ?Distorção econômica? o jornal chama a atenção para o salto do lucro dos 31 bancos com balancetes já divulgados, de R$ 5,1 bilhões, em 2000, para R$ 11,1 bilhões, em 2001. A rentabilidade do patrimônio chegou a 20,5%, uma maravilha não conseguida em lugar nenhum do mundo. O editorial estabelece a relação entre esses lucros altos dos bancos e os juros exorbitantes dos sistema financeiro que asfixiam nossa economia: em janeiro, 44,2% em média, para pessoas jurídicas, e 72,8% em média, para pessoas físicas.

De assaltados a assaltantes

Graças a seus lucros generosos, os bancos podem pagar uma milícia privada para proteger suas agências, além de sistemas de segurança eletrônicos. Assim, foi deixada para trás a época em que o crime organizado assaltava bancos. Hoje são os bancos que assaltam a população. E o crime organizado optou pelos seqüestros. A população, assaltada pelos bancos, é depois seqüestrada porque que não pode pagar uma segurança privada.

Retrato (retocado) do Brasil

Deveria se chamar ?O triste perfil da mulher brasileira? o balanço sobre a mulher divulgado pelo IBGE. Mas o Estadão preferiu ?O novo perfil da mulher brasileira?, um título triunfalista que abriu as três páginas dedicadas pelo jornal, hoje, ao estudo liberado pelo IBGE para comemorar o Dia Internacional da Mulher. O adjetivo ?novo? tem a função mistificadora de dar conotação otimista aos resultados da pesquisa, como se tivesse havido uma tremenda mudança na situação da mulher brasileira e no quadro social como um todo, que teria propiciado esse avanço.

Decantando os dados, resta uma realidade dura e triste: a renda média mensal da mulher brasileira, hoje, é de R$ 410, ou cerca de US$ 152. Isso dá uns US$ 3,00 por dia. Mesmo entre as mulheres chefes de família, cada vez mais numerosas, a renda média é de apenas R$ 591, ou cerca de US$ 250. E mais: uma em cada cinco mulheres brasileira ainda não sabe ler nem escrever. Na Folha, mais um dado triste, retirado da mesma pesquisa: uma em cada dez crianças de zero a seis anos vive em casas chefiadas por mulheres pobres. São 2,3 milhões de crianças nessas condições. Há dez anos, antes da era FHC, eram 1,7 milhões.

A pequena melhora em alguns indicadores, diluídas em dez anos, é o mesmo que nada. O Estadão tenta passar a idéia de que a situação da mulher melhorou muito, dizendo que a renda média das mulheres chefes da família era antes de R$ 365, tendo se elevado em 60%. Só que não foi descontada a inflação do período, e nem a taxa de desvalorização cambial. Não houve melhora coisa nenhuma. Em dólares ou reais deflacionados, a mulher brasileira hoje deve estar pior do que estava há dez anos.

Agências do governo com máquinas de propaganda oficial

O falseamento das estatísticas de renda da mulher partiu do próprio IBGE, que no seu release à imprensa omitiu o qualificativo ?nominal?. Quem for à base de dados do IBGE (www.ibge.gov.br) vai ver que são salários nominais. Mas o IBGE tem atuado sistematicamente como uma agência de intervenção propagandística do governo, soltando releases cuidadosamente maquiados, que a imprensa reproduz acriticamente.

O movimento feminista e os partidos de oposição perderam uma boa oportunidade de combater a guerra de propaganda otimista das agências do governo. Poderiam ter soltado ontem seu próprio quadro estatístico, já pronto em documentos como ? Cairo +5, o caso brasileiro? , publicado em 1999 pela Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, com o perfil sem retoques da mulher brasileira. A mulher é um protagonista central de todo quadro estatístico sobre a sociedade, porque ainda cabe principalmente a ela as tarefas da saúde e da educação da família, além de seu papel cada vez mais presente como provedora."