Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

"28/6/02

AVISO AOS LEITORES

A partir da semana que vem, quando começam as férias de julho, Cartas Ácidas passam a circular uma vez por semana, às segundas-feiras. Espero compensar a menor freqüência com um acabamento melhor. Qualquer sugestão de mudança para outro dia da semana – que não segunda-feira – será bem-vinda.

Os fatos duros da semana

A fraude da WorldCom é um deles. Só faltava agora dizer que a queda mundial das bolsas, anteontem, foi culpa de Lula. Valor falou em ?efeito WorldCom?. Nossos comentaristas chapa-branca se apressam a dizer hoje que não vai afetar a Embratel, subsidiária da WorldCom. Mais uma faceta das privatizações. Ficamos dependentes em serviços essenciais de falcatruas do centro do capitalismo.

As duas mortes em protestos em Buenos Aires são outro fato muito grave. Aumenta a intransigência dos americanos e a crise na Argentina continua se agravando. Nos jornais de hoje o tom é de aumento da pressão das ruas pela renúncia de Duhalde. Outra informação dura foi a revelação pelo IBGE da queda do PIB brasileiro no primeiro trimestre deste ano.

Santo André: a mídia uma semana depois

A mídia vinha passando a percepção de que o PT não estava se empenhando sinceramente em esclarecer o caso. Foi o tom do comentário de Dora Kramer, assim como de outros comentaristas que pensam isso sinceramente e não por malícia. Mas a Folha e o JT, fazendo mais política local do que nacional, tentam plantar maliciosamente a idéia que a corrupção é generalizada nas prefeituras do PT, com pequenas histórias, a maioria delas requentadas, que tratam denúncias vagas ou relações normais de amizade, como se fossem provas de crime. As matérias são baseadas em ilações e na presunção da culpa até prova em contrário.

O contra-ataque tardio do PT

Nos jornais de hoje, surge a idéia de que ?a cúpula do PT?, inclusive Lula, pressionou pelo fim do sigilo na CPI de Santo André, ao ponto de conseguir a renúncia do presidente da comissão. Se o PT de Santo André resistir à pressão, melhor ainda para Lula: é o noticiário de um conflito concreto entre cúpula e base, o qual passa para o público a idéia de que é um caso isolado, local e que não tem nada a ver com Zé Dirceu ou com a campanha presidencial.

Também foram publicadas na Folha os desmentidos de duas prefeituras contra matérias difamatórias do jornal. Mas o repórter Chico de Gois quis ficar com a última palavra e deu a desculpa esfarrapada de que ?se limitou a dizer que a empresa Rotedalli…?. Isso não é verdade: ele montou as informações num quadro que sugere irregularidades, que de fato não existiram.

O governo se complica e o Estadão adota a auto-censura

A história da espionagem está revelando todo um esquema de malandragens, documentos forjados e falsificações, agora envolvendo diretamente o PSDB. O depoimento do Tenório Cavalcanti, dizendo que suas acusações foram contra o prefeito do PSB de São Bernardo, Mauricio Soares, e não contra Lula, abriram toda uma nova frente. O mecanismo pelo qual as novas facetas vão surgindo e o caso vai se complicando e lembra, de fato, o Watergate.

Extremamente constrangido, o Estadão não publicou o depoimento do Tenório Cavalcanti, apesar de o haver distribuído pela Agência Estado. A Folha deu, mas sem a clareza dos despachos da Agestado.

A mídia comprou a idéia de que é um caso grave. A Folha relatou ontem que FHC está muito constrangido e chegou a especular que uma quadrilha montou o caso para criar fitas e com elas extorquir. O ministro Reale Jr. tergiversou ao dizer que o próprio PT pediu que a PF investigasse Santo André.

A dramática queda do PIB

São muito ruins os números do PIB do primeiro trimestre. O IBGE minimizou o drama, enfatizando o índice dessazonalizado, com crescimento aparente de 1,43% em relação ao trimestre anterior. Por isso o fato não mereceu manchetes de primeira página, apesar do amplo espaço nas páginas internas de alguns jornais, como Folha e Gazeta. O que realmente aconteceu não foi crescimento e sim queda na produção. O valor da produção de bens e serviços, sem a correção pelo número de feriados e outros fatores sazonais, sofreu queda brutal de 7%, a preços de mercado. E medida em dólares, a queda foi ainda maior: 7,5%. Isso, antes da última alta do dólar.

Outros indicadores da conjuntura reforçam a percepção de recessão, puxada por dois fatores; queda na renda das famílias e juros altos. A taxa de formação bruta de capital, por exemplo, caiu 8,4%. Isso aponta para mais recessão à frente. O epicentro da crise é a Grande São Paulo, onde o desemprego atingiu o recorde dos últimos 20 anos. Mais da metade dos trabalhadores desempregados do Brasil vivem na região. A renda média dos brasileiros caiu mais uma vez em maio (-4%). O fator renda pode se modificar para melhor em função dos pagamentos do FGTS. Mas o governo já reviu para baixo sua previsão de PIB, agora para cerca de 1,5%, abaixo do crescimento populacional. A crise é brava.

A volta do coronelismo eletrônico

Saiu com destaque, mas na seção de entretenimento da Folha da quinta, quando deveria ter saído na primeira página: ?marqueteiro de Serra ganha cinco canais?. Saíram no Diário Oficial as concessões de cinco novos canais retransmissores da TV Sul Bahia, comprada ano passado por Nizan Guanaes. No mês passado, Guanaes ganhara uma concessão para canal de retransmissão em Santo André. Nesse ritmo, até o final da campanha, Guanaes vai ter mais canais que o Roberto Marinho. As concessões são uma afronta ao acordo entre governo e oposição para instalar o Conselho de Comunicação Social (em troca da maior abertura do setor ao capital estrangeiro). O papel principal do Conselho seria justamente o de opinar sobre concessões.

A concessão de canais de rádio e TV a amigos e afilhados políticos foi estudada no clássico trabalho chamado ?coronelismo eletrônico?, De Célia Stadnik. Isso começou forte no governo Figueiredo, continuou com Sarney e segue no governo FHC – que trocou concessões por votos pela reeleição e agora está simplesmente presenteando amigos de campanha. Stadnik descobriu que um terço dos congressistas são detentores de concessões de rádio ou TV.

Retrato do Brasil

Em pouco mais de dois anos, entre fevereiro de 2000 e junho de 2002, foram registrados 1631 casos de tortura no Estado de São Paulo. O levantamento inclui apenas casos reportados a entidades de defesa de direitos humanos. O relatório será entregue à Justiça pela entidade coordenadora da pesquisa a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura.

O relatório, terrível, teve grande destaque na página C4 do Estadão da quinta. A entidade estima que para cada caso registrado há mais três não registrados. Isso significa aproximadamente 6,5 mil casos nesse período, ou mais de sete casos por dia. Os torturadores são as polícias. O método básico de investigação policial no Brasil é pendurar o suspeito no pau de arara.

Não deixe de ler:

Na página 2 da Folha de hoje: ?A saúde anda para trás?, excelente crítica de Caio Rosenthal à gestão Serra. Na página 2 do Estadão: ?O buraco nas contas?, texto um pouco cansativo, mas que explica o fracasso de nossas exportações com base em as nossas fraquezas tecnológicas.

26/6/02

Manchetes mentirosas:

? Efeito Lula eleva risco país?

?Serra sobre 7 e chega a 20,9%

? Efeito Serra derruba risco país?

Três manchetes, três mentiras. Nunca foi tão óbvio o uso ideológico das manchetes dos jornais. Lula significa o caos, a crise, o risco Argentina. Serra significa a salvação, a recuperação, a saída da crise. Mas quem disse que o dólar caiu na segunda porque melhoraram as chances de Serra? Nem isso é verdade. A principal causa objetiva está dentro do próprio mercado: o aumento de 10% para 15 % no compulsório sobre os saldos das cadernetas de poupança introduzido na segunda. Com menos caixa, os bancos tiveram que diminuir sua especulação com o dólar. Na terça, o dólar subiu de novo e não havia nenhum pretexto eleitoral.

Jornais torcem por Serra e distorcem os fatos

A manchete mais mentirosa, do Estadão de anteontem, é a do grande aumento na votação de Serra. Pura ilusão. Não houve esse aumento. Há um mês ele está empacado em torno dos 20%, como mostrou na mesma noite de segunda a pesquisa Vox Populi. Sua subida para esse patamar deu-se há quase um mês. No Vox Populi de fim de maio já tinha 20%. Agora deu 21%. A subida de segunda, portanto, não existiu. Foi o resultado de uma ilusão estatística. O mais provável é ter havido um desvio para baixo, intencional ou não, na pesquisa CNT/Sensus anterior, produzindo agora o efeito ?subida de 7 pontos de Serra?. Lula perdeu apenas 2 pontos apesar de todo o ? terrorismo financeiro? e ainda é o candidato com menor índice de rejeição. Na Gazeta Mercantil da terça, que reproduz os gráficos da pesquisa na página A7, o diretor da Sensus, Ricardo Guedes, diz que a pesquisa, terminada dia 20, ainda não captou o efeito das denúncias de corrupção em Santo André. Significa que também não captou o encontro de São Paulo, em que Lula lançou a ?Carta ao povo brasileiro?.

Outras causas da crise financeira

Nos interstícios da mídia começa a aparecer a tese de que a turbulência tem pouco a ver com efeitos Lula ou Serra e tem origem muito mais nos Estados Unidos do que no Brasil. É o que diz o último boletim da Sobeet, uma ONG que estuda as transnacionais, citado no pé da página B5 do Estadão de hoje. A grande quebradeira de empresas americanas obriga empresas e bancos a liquidarem posições no Brasil para fazer caixa. A Folha de hoje revela: ?Fundos e bancos dos EUA perdem até 20%? de seu patrimônio.

Operação Távola Redonda

A denúncia de que dirigentes do PT foram grampeados com base em requerimentos que falavam em narcotráfico repercute hoje nos jornais ainda mais do que no primeiro dia, em parte graças ao fiasco da coletiva convocada pela Polícia Federal para se explicar. Mas poucos jornais mencionaram que se tratava de toda uma operação, com o código de ?Operação Távola Redonda?, dirigida contra ?os amigos do Rei?, no caso, os amigos de Celso Daniel, como sugere O Globo de hoje, e não de uma iniciativa isolada de um delegado de polícia. Este caso mostra uma espionagem política de caráter sistêmico.

O Globo corrobora essa tese citando um trecho que se repete nos vários pedidos de grampo, em que a PF alega ter recebido ?informações e relatórios oriundos de nossas congêneres?. No jargão policial, ?congênere? é Abin.

Mídia dividida

Excelente a reportagem de José Casado, na Gazeta Mercantil de hoje sobre o grampo contra o PT. O melhor comentário é o de Élio Gaspari. Fernando Rodrigues, na Folha, diz que se trata de um escândalo. O Estadão soterrou o assunto, mais uma vez, no meio de uma matéria sobre o encontro de Marrey com Brindeiro. O episódio está acentuando uma profunda diferença de comportamento editorial entre Folha, que fustiga o PT sem clemência, mas tenta um padrão de isenção, e o Estadão, totalmente engajado na campanha de Serra, a ponto de omitir informações relevantes, como estas do caso do grampo.

Os ataques às prefeituras do PT

A Folha dedica nada menos que três páginas hoje a supostos desmandos de prefeituras do PT. Querem construir uma percepção de que o PT é todo ele corrupto. As matérias são baseadas não em fatos, mas em suspeições. Lançam uma suspeição e, a partir daí, vão encaixando fatos que podem perfeitamente ter outras explicações. É como postular que um sujeito é ladrão e dar como prova o fato de que ele está de terno novo. Não prova nada.

Retrato do Brasil: violência

O Brasil é o segundo maior mercado de armas leves no mundo. Morrem no Brasil 47 mil pessoas assassinadas por ano. Os dados estão na matéria ?ONG vê epidemia de violência no país?, na página C4 do Estadão de ontem.

24/6/02

Duhalde propõe união dos devedores

Os jornais evitaram dar manchete de primeira página à iniciativa do presidente argentino Duhalde de convidar o Brasil a se unir à Argentina nas negociações com o FMI. Com isso, teriam mais ?poder de barganha?, conforme matéria discreta da Gazeta Mercantil desta segunda-feira (24), que no entanto, está na primeira página. A reportagem cita a justificativa do ministro da economia Roberto Lavagna: ?Os tremores no Brasil, Uruguai e mais os impactos já visíveis no México e Chile decorrem todos de um coquetel de equívocos, entre os quais está a arquitetura do sistema financeiro na década passada.?

A Folha deu manchete interna, abrindo o caderno de economia com ?Argentina propõe união latina para negociar ajuda?. E revela que neste final de semana o presidente Duhalde telefonou a FHC para discutir a idéia. Duhalde também quer mobilizar o presidente mexicano Fox, como uma espécie de ponte entre o bloco arruinado e os norte-americanos. O Estadão confirma essa movimentação, sob uma manchete interna que discute o conceito de ?contágio?.

Isso é tudo o que os americanos não querem

Uma eventual união dos maiores devedores da América Latina – Brasil, Argentina e México – sempre assustou o governo americano. Por isso o Federal Reserve tomou a iniciativa, desde a primeira crise da dívida, em 1982, de fazer com que os bancos credores formassem um comitê de negociação diferente para lidar com cada país. Assim, uniram os bancos e dividiram os países. A união dos países devedores é objetivamente difícil porque eles raramente se encontram nos mesmos estágios e de articulação política. O desenvolvimento desigual da crise favorece, assim, os desígnios americanos de dividir, para impor as regras da renegociação.

Pode ser manobra tática

O fato de Duhalde procurar agora a união sugere o grau de alastramento, aprofundamento e nivelamento da crise em todo o Cone Sul. Mas pode ser uma manobra tática, um recado para os americanos: desatem logo o nó da negociação conosco, caso contrário posso me unir ao Brasil… O Estadão, na sua longa reportagem desta segunda sobre a crise Argentina, sugere que não há mais razões objetivas fortes para o FMI não assinar um novo acordo com a Argentina.

Terrorismo financeiro se intensifica

Depois da reportagem de Clóvis Rossi na Folha, a partir do Council of Foreign Relations, em que Soros falou o que falou, foi a vez de Sonia Racy, no Estadão de domingo (23), dizer que num tal World Forum, formado por pesos pesados do establishment americano, já se prognostica que o Brasil vai entrar em ?default?. Isto é, vai quebrar. Esse encontro também é ?fechado à imprensa?, como outro, e estranhamente também convida jornalistas, como o outro. No Estadão desta segunda, todos os pruridos foram deixados de lado e Sonia Racy transmite, nomeando, as declarações ameaçadoras de pesos pesados do establishment americano, inclusive Stanley Fischer e Alan Greenspan. O JB reproduziu na primeira página.

Arrogantes, os gringos reclamam, por exemplo, que Lula é admirador de Chávez e de Fidel. Um discurso de guerra-fria. Queriam que Lula fosse admirador de Bush. No sábado (22), o secretario de Tesouro dos Estados Unidos disse que ajudar o Brasil é jogar fora dinheiro do contribuinte americano. FHC reclamou a Bush, segundo Ancelmo Góis, e por isso O?Neill recuou. Mas tudo se encaixa: as pressões não param de aumentar, e assumem o tom de ameaças.

Os medos de Cristovam Buarque

Assustado com a dimensão das pressões, Cristovam Buarque está propondo que Lula nomeie um porta-voz para a economia, de preferência não petista e que expresse apoio formal à emenda que dá independência ao Banco Central. Isso está escrito numa grande reportagem na página A8 da Gazeta Mercantil desta segunda, sob uma manchete um tanto safada: ?Cristovam Buarque diz que PT tem responsabilidade na crise?. A manchete é ruim porque confunde ?ser responsável pela solução da crise? com ?ser culpado pela crise?. Ter responsabilidade na crise não é ter responsabilidade pela crise. A resposta de Lula está no título de numa grande matéria de Valor desta segunda. ?Petistas acham que cederam muito e programa deve ter poucos detalhes?.

A bomba estourou no colo do governo

A mídia está igualmente assustada com a virulência da crise especulativa que ela mesma ajudou a alimentar, e saiu neste final de semana com muitos panos quentes e muita indignação contra esse desrespeito pelo Brasil. ?É justo colocarem o Brasil neste clube?? é a pergunta-manchete da reportagem de Veja, ao lado uma enorme foto da miséria Argentina. Época relembrou a seus leitores o que chamou de ?deslize histórico dos tucanos?, o jingle da campanha tucana que tentou explorar o medo de o Brasil virar uma Argentina: ?O que eu conquistei/ Não vou jogar para cima/ Com todo respeito/ Não sou uma Argentina?.

A resposta dialética de Lula

Por causa do susto, a TV e os jornais de referência nacional, exceto o JB, deram grande destaque à ?Carta ao Povo Brasileiro?, a resposta de Lula à crise, divulgada no sábado durante o encontro do PT que discutiu o programa de governo do partido. Lula conseguiu fugir à armadilha de jurar obediência ao mercado, através da dialética. Superou as contradições entre continuidade e mudança, e entre respeitar ou abandonar o regime de metas de inflação e de superávit fiscal inventadas pelo FMI, propondo uma ?transição lúcida e criteriosa? para um outro modelo econômico. Ou seja, reiterou que se propõe a mudar o Brasil, portanto nada de continuidade, mas que essa mudança deve se feita de modo responsável. Também enfatizou o diálogo e a negociação. O discurso formal, mas lido com sentimento, mostrou um Lula maduro e confiante.

Retrato do Brasil: Os neo-andarilhos

Há 4,2 milhões de ?formigas?, ou trabalhadores andarilhos, na região metropolitana de São Paulo: pessoas que todos os dias vão a pé para o trabalho. São vários os motivos, inclusive a lentidão dos ônibus e a curta distância de alguns trajetos, mas o principal é não podem pagar o preço da condução. Um em cada quatro moradores dessa região fazem suas viagens a pé. O fenômeno dos formigas foi mapeado pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, em pesquisa. Saiu domingo no Diário de S. Paulo."