Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 2/09/02

"O jornalismo de dossiês da ?Folha de S. Paulo?

A Folha dedicou uma página inteira de sua edição deste domingo a um dossiê acusando o governador do Mato Grosso do Sul, ?Zeca do PT, e integrantes do núcleo de poder no Estado de ligação com uma quadrilha de policiais especializada em roubo e receptação de veículos.? A reportagem da sucursal da ?Folha? em Campo Grande é um dos exemplos mais nítidos do jornalismo de dossiês, quem vem marcando a imprensa brasileira desde o início do segundo mandato do governo FHC. Por isso, vale a pena examinar de perto esse tipo de jornalismo.

A pauta que vira matéria final

A características central do jornalismo de dossiês é de transformar uma pauta jornalística, que deveria ser investigada para ser corroborada ou não, na própria matéria final. Invariavelmente, a narrativa parte da presunção da culpa, violando o direito constitucional da presunção da inocência até prova em contrário. A narrativa transforma suspeitas em ilações, e as ilações em culpa do acusado, sem que essa culpa precise jamais ser provada. Em geral, como é o caso também desta matéria da ?Folha?, não há acusação formal de nenhum delito capitulado em lei, porque esse delito não existe. É uma culpa sem delito.

As três ?acusações? do dossiê da ?Folha?

Zeca do PT é ?acusado? pela ?Folha? de ter citado como testemunha num processo um tal Adão Edemilson, posteriormente suspeito de ter ligações com uma quadrilha. Esse Adão, aliás, já está morto há quase um ano e meio. Isso não é crime. A segunda acusação é de o Departamento de Operações de Fronteira (DOF), ao qual estavam ligados a maioria dos membros da quadrilha de ladrões de carros, ser diretamente subordinada ao governador. Isso também não é crime. É do organograma da administração estadual. A terceira acusação é a de Zeca ter se defendido em declarações à imprensa pelo fato de ter nomeado o coronel Sebastião Garcia, comandante do DOF, sem saber que ele havia respondido a processo por agiotagem. Isso também não é crime.

Mas a verdade que se recusa a desaparecer

Uma da mais paradoxais características do jornalismo do dossiês é que ele sempre revela sua própria inconsistência. Isso porque, para nos convencer da suposta culpa da vítima do dossiê, o jornalista conta casos verdadeiros, e escabrosos que vão se misturando às ilações. Assim, no dossiê contra Zeca do PT, para demonstrar a periculosidade da quadrilha de ladrões de carros, a reportagem revela que 29 deles, dos quais 19 eram lotados no DOF, foram condenados em primeiro instância a penas severas. O coronel Garcia, por exemplo, pegou 24 anos de cadeia. Um major, Marmo Arruda, pegou 20 anos. Foi ?a maior condenação de policiais em um só processo na história do Mato Grosso do Sul?, diz a ?Folha?.

Ora, a quadrilha foi investigada, julgada e condenada e, no entanto, no decorrer do processo, nenhuma acusação apareceu contra Zeca do PT. Essa é a verdade dos fatos, que o jornalismo dos dossiês não consegue esconder. Em vez de estigmatizado pelo jornalista, Zeca do PT tinha mais é que ser elogiado, por se manter limpo, apesar de herdar uma máquina estatal corrompida e infiltrada pelo crime organizado, boa parte dela, felizmente, expurgada durante sua administração.

Jornalismo de dossiês como modalidade de justiça sumária

O objetivo do jornalismo de dossiês não é verificar a veracidade de eventuais acusações para levar o acusado aos tribunais, e sim o de linchar a vítima no espaço público da mídia. Não havendo julgamento formal, o acusado não precisa se dar ao trabalho de se defender e nem de recorrer a advogados. Por isso, o jornalismo de dossiês também não se preocupa em ? ouvir o outro lado?, como manda o manual de redação do próprio jornal. No jornalismo de dossiês, a vítima é ouvida apenas pró-forma, em nada modificando o que já esta montado.

O jornalismo dos dossiês é assim uma modalidade de justiça sumária ministrada diretamente pela imprensa, segundo seus próprios ritos. A imprensa define quais são os crimes – que como vimos não são necessariamente os capitulados em lei – e qual a punição: quase sempre a difamação da vítima, a destruição de sua imagem.

A geopolítica do jornalismo de dossiês

A ?Folha? não escondeu os objetivos político-eleitorais de seu exercício de difamação. A começar pela manchete mentirosa, feita para melar a imagem do PT: ?Elo de Zeca do PT com quadrilha é investigado?. Não existe elo, muito menos investigação em curso. A ?Folha? também não teve pudor em chamar a reportagem de dossiê e a editou no caderno especial de eleições.

Ao mesmo tempo, a ?Folha? mantém silêncio quase total em torno da cassação da candidatura do governador petista do Acre, Jorge Viana, um dos campeões da luta contra o crime organizado. Enquanto os mais respeitáveis órgãos de imprensa se solidarizam com a luta de Jorge Viana contra o narcotráfico, a ?Folha? prefere dizer que o PT está feliz em ter Jorge Viana como vítima, como afirmou o Painel de domingo (1?). Será que pelos critérios do jornalismo de dossiês da ?Folha?, já não teríamos aqui alguns indícios interessantes para um dossiê ligando a política editorial do jornal aos interesses do crime organizado, que quer derrubar os dois governadores do petistas, Jorge Viana e Zeca do PT?"