Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas, Análise diária da mídia nacional", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 6/10/01

8/10/2001 – O Brasil e a nova guerra

O Estadão dedicou as duas páginas centrais de seu caderno especial aos apoios recebidos pelos norte-americanos e ingleses, de todas as partes, e ao discurso de justificativa dos bombardeios. Mas esqueceu-se, curiosamente, de publicar o protesto do líder da comunidade muçulmana de São Paulo, Muhamad Nassib, veiculado pela própria Agência Estado. Nassib repudiou os bombardeios ?da mesma forma? como repudiara os ataque terrorista aos Estados Unidos. O Estadão também destacou o ?apelo à sensatez? na nota de apoio de FHC ao ataque. Mas FHC, como um papagaio, repetiu palavra por palavra trechos da fala de Bush, inclusive a frase de que ?não se trata de um ataque contra o povo, mas contra os terroristas?. FHC quis capitalizar a tragédia, convocando uma reunião de emergência. E apenas no último parágrafo fala em evitar conseqüências trágicas e a morte de civis inocentes.

O bombardeio da cesta básica

Ao mesmo tempo em que despejavam bombas destruidoras contra as seis maiores cidades do Afeganistão, os norte-americanos também atiravam pacotes de um quilo, com comida e remédios, como se uma coisa compensasse a outra. As bombas são para o público interno norte-americano. Os sacos de trigo são para o público externo, que pode não gostar da morte de inocentes.

De olho na opinião pública mundial

Não é apenas uma desestabilização das ditaduras do Paquistão e do Uzbequistão que os norte-americanos temem. Também no Ocidente, parte da opinião pública pode repudiar os ataques, se surgirem na TV cenas de destruição e de mortes de civis. Cenas desse tipo levaram à grande virada da opinião pública mundial contra a ocupação israelense dos territórios palestinos. Mesmo antes do ataque, cenas do sofrimento e da miséria e de colunas de refugiados eram mostradas na TV, dando origem ao recorte temático da ?crise humanitária?.

O discurso da guerra e a guerra do discurso

Bush também fez questão de dizer que a guerra não é contra o povo do Afeganistão. Mas para derrubar o Taleban não era necessário o bombardeio aéreo. O regime já estava se desmantelando quando o Paquistão puxou o tapete. ?Paquistão já discute com Blair o sucessor do Taleban?, era manchete da Folha de sábado. Com o apoio dado pelos russos e norte-americanos à Aliança do Norte, a queda do Taleban era questão de tempo apenas. Para derrotar o terrorismo, que se abrigava no Taleban, o bombardeio aéreo maciço é inadequado. O ataque tem o objetivo principal de satisfazer o moral norte-americano, ainda abalada pelo ataque terrorista ao World Trade Center.

Nas entrelinhas

Escondido nas entrelinhas do caderno especial do Estadão, está o anúncio do embaixador do Taleban no Paquistão, Salam Zaeef, horas antes do ataque, de que o Taleban concordava em iniciar o julgamento de Bin Laden, se recebesse provas de seu envolvimento no ataque terrorista aos Estados Unidos. Guerra e experimentação

No Afeganistão estão sendo experimentadas novas bombas, de penetração profunda. Novas táticas de bombardeio aéreo. À medida que o ataque foi sancionado pelo condomínio que dirige o mundo, incluindo o Japão, poderá sancionar bombardeios semelhantes contra outros países acusados de terem abrigado o terrorismo, entre os quais o Iran, a Líbia e o Iraque. O Estadão de hoje traz a seqüência de 13 ataques norte-americanos em todo o mundo desde 1980.

PT larga na frente

Encerrado no final da semana o prazo para filiação partidária dos que querem concorrer às eleições em 2002, e mídia faz um primeiro balanço de posições e reconhece, com alguma relutância, que o PT está na ?pole position?, uma imagem, aliás, usada pelo seu provável candidato, Lula, uma semana antes. A Folha de domingo pública em sua página A10 uma pesquisa, curiosamente retida durante duas semanas, que mostra a preferência do eleitorado pelo PT. O partido tem 21% de preferência do eleitorado, bem acima do segundo colocado, o PMDB, que tem 12%. Metade do eleitorado declara não ter simpatia por nenhum partido em especial. A pesquisa DataFolha é de importância crucial, porque aponta o PT como partido consolidado e expressivo junto à opinião pública. Mostra também a falência dos partidos de sustentação de FHC. O partido de FHC tem apenas 3% de preferência. Ou seja, apenas um ponto percentual a mais do que a margem de erro da pesquisa.

Os candidatos

A pesquisa DataFolha mostra a posição dos candidatos nos cenários mais prováveis. Mas é preciso decodificar a tabela da Folha, e o resultado é o seguinte: com Serra, candidato da aliança PSDB-PFL, Lula tem hoje 35% das intenções de voto, Ciro Gomes 13%, Garotinho 10%, e Serra apenas 7%. Com Roseana no lugar de Serra, Lula fica com 31%, Ciro com 16%, Garotinho com 10%, e a própria Roseana 14%. Com a adesão do prefeito de Belo Horizonte, Célio de Castro, ao PT, ficaram asseguradas boas chapas em três importantes colégios eleitorais; São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Na sua edição de domingo, o JB mapeia o tabuleiro sucessório nos Estados; e na de hoje, revela que Jungman filiou-se ao PMDB e pode ser a última carta de FHC para impedir que Itamar seja o candidato do partido.

As razões do eleitor

A Folha atribui a preferência pelo PT a um ?efeito eleição?, referindo-se às eleições municipais, distantes já quase um ano. Mas deveria ter invertido a relação de causalidade: foi a preferência pelo PT que levou ao resultado das eleições do ano passado. O que a pesquisa mostra é que a preferência se mantém. As verdadeiras causas devem estar muito mais relacionadas à corrupção política que marcou fundo a maioria dos partidos do governo. Só neste fim de semana, a mídia revelou meia dúzia de novos focos de corrupção: no Estadão de domingo, um diretor do Banco Central conta como se deu a ruína do Banespa, nas mãos do PMDB; na Folha do domingo, está a história dos mais de 20 mil casos de fantasmas, inclusive bebês,que receberam dinheiro do Sebrae; na Veja, a reportagem completa de como empresários brasileiros fizeram uma caixinha milionária para ajudar Luiz Antonio Medeiros a criar a Força Sindical, com o único objetivo de combater a CUT. Mas deu problema, porque parte do dinheiro foi desviada por Medeiros. Lula diz, na Folha de hoje, que não se surpreendeu com a revelação.

Tucanos caem no buraco negro

A mídia praticamente ignorou a importante reunião do alto tucanato em Goiânia, na qual discutiram a sucessão. A Gazeta Mercantil diz que foi decidido adiar a discussão para abril, uma decisão estranha e mal explicada. Abril é muito tarde. Outros jornais limitaram seu foco na decisão do banqueiro Henrique de Campos Meirelles, do Banco de Boston, de se filiar ao PSDB. Uma filiação emblemática.

Retrato do Brasil

?Pobreza confisca 2,5 milhões de telefones?, é a manchete do caderno Dinheiro da Folha de domingo. Foram mais de dois milhões e quinhentos mil brasileiros que perderam a linha porque não podem sequer pagar uma conta telefônica. As privatizações das teles vinham sendo apresentadas pelo discurso único como uma histórica de sucesso, tendo instalado 21,2 milhões de novas linhas fixas. Agora, as teles querem um subsídio para o telefone do povão, revela a reportagem da Folha. É uma boa reportagem porque além dos dados gerais, conta histórias de pessoas que esperaram a vida toda para ter um telefone, mas quando ganharam o telefone, perderam o emprego.

Não deixe de ler (I)

Entrevista com o grande empresário e senador José Alencar Gomes (PL-MG), na página A6 da Folha de hoje, em que ele critica duramente os empresariado brasileiro por insensibilidade política e social, e explica porque apóia Lula para a presidência. Alencar discute também o conceito de competência em política. E argumenta que só uma mudança política pode por fim ao processo corrente de transferência de renda da produção para os bancos.

Não deixe de ler (II)

Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho, na página 14 do JB de domingo. Concedida antes do ataque ao Afeganistão, tornou-se ainda mais interessante depois do ataque e da fala de Bin Laden, conclamando todo o mundo islâmico a lutar contra os americanos. Antigo membro do MR8, banido em 1970, com outros 39 presos políticos em troca do embaixador alemão Von Holleben, Daniel reage contra artigo do ex-dirigente do PCB, Renato Guimarães, publicado anteriormente também no JB, que comparara o seqüestro de Von Hollben ao ataque ao World Trade Center. Daniel Aarão, com toda a autoridade de um ex-militante da luta armada e até hoje fiel ao pensamento de esquerda, classifica Bin Laden de ?fascínora (…) comprometido com o pensamento sectário e o genocídio?. Distingue a luta armada e o direito legítimo de rebelião contra a tirania, como o exercido pelos norte-americanos ao se libertarem da coroa inglesa, do terror de Bin Laden, que não tem propósito claro e mata indiscriminadamente. Daniel Aarão acredita que tanto os norte-americanos quanto Bin Laden fazem o jogo da polarização do conflito: ?Polarizar interessa (…) a Bin Laden, pois assim ganhará todo o mundo islâmico?.

Não deixe de ler (III)

A série do JB, iniciada no domingo e com continuação hoje, sobre as atividades terroristas da CIA no Brasil.

5/10/2001 – A esperteza política de Itamar Franco

O governador de Minas infligiu uma dupla derrota a FHC, ao inverter o jogo no PMDB, tornando-se agora o mais provável candidato do partido à sucessão, ao mesmo tempo em que inviabiliza os planos tucanos de manter unida, já no primeiro turno, a aliança tripartite que elegeu FHC. Itamar jogou magistralmente com o fator ?candidato presidencial de peso?, que toda a hierarquia do PMDB precisa para se eleger ou reeleger em 2002, já que as eleições serão casadas. A mídia, ainda muito governista, evitou tratar o episódio como uma vitória de Itamar sobre FHC. O Painel da Folha de hoje chega a dizer que com sua vitória, Itamar conseguiu condições melhores para negociar sua participação na aliança governista de 2002. Nada mais longe dos fatos e mais próximo de uma ?torcida jornalística? a favor de FHC.

Itamar e a autonomia da imagem

A imagem é uma coisa, o objeto é outra. Essa é a própria definição de imagem. Mas poucos políticos em anos recentes foram tão prejudicados por uma imagem deformada, construída pela mídia, quanto Itamar Franco. Foi pintado como bobo, provocador, infantil e volúvel. Essa imagem, insuflada nos colunistas de plantão pelo Palácio, pegou. O episódio desta semana mostra que o que parecia volubilidade, era capacidade de iludir o adversário. Alguns colunistas já começam a corrigir suas posições, admitindo, por exemplo, que Itamar deu um golpe de mestre ao impedir a privatização de Furnas. Em Valor de ontem, Ricardo Amaral mostra que Itamar conquistou tudo o que queria do PMDB e ?só não será candidato à presidência se não quiser?.

A deturpação da notícia (I)

Foi assim que o deputado Bispo Rodrigues, do PL do Rio de Janeiro, definiu a história explorada intensamente pela mídia de que Lula tinha um jantar marcado com Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus. ?Lula disse que queria jantar comigo, e eu respondi que sim, se fosse na minha casa… Nunca foi cogitada a participação do Bispo Edir Macedo?, afirmou o deputado. A correção de Rodrigues está no Estadão de hoje.

Causou constrangimento na mídia a autocrítica dos evangélicos, depois da filiação do senador José Alencar, um admirador de Lula, ao PL. O JB de hoje dá grande destaque ao tema. Disseram com todas as palavras que foram preconceituosos em relação ao PT e à Lula. Para não destacar a importante autocrítica dos líderes evangélicos, a mídia apelou para a intriga. Quis instilar no inconsciente coletivo um uso político da religião pelo PT. Rápido no gatilho, mesmo estando na Europa, Lula enfatizou o caráter laico do PT.

A deturpação da notícia (II)

Pratini de Morais propiciou aos jornais um segundo pretexto para manchetes nocivas a Lula, ao acusá-lo de ?quinta-coluna?. Mais uma vez, deturpando declarações de Lula. Primeiro foi a Folha, que deu manchetinha atribuindo a Lula a defesa dos subsídios franceses à agricultura. O que Lula defende é a tese, desenvolvida pelos franceses, de que agricultura hoje não é só produção, ela é multifuncional, é também fixação no campo, preservação ambiental e do tecido social, e emprego. Por isso, deve receber algum grau de proteção. E que os franceses estão certos ao protegerem a sua agricultura e nós estamos errados ao não protegermos a nossa. Pratini já perdeu o apoio do empresariado rural ao sabotar a campanha de combate à aftosa no Rio Grande do Sul, com o objetivo político de desgastar Olívio Dutra. Tornou-se ainda mais agressivo em relação ao PT, dando munição ao processo midiático que agora se intensifica, de desgaste e desqualificação de Lula, através da deformação de suas declarações.

Um desafio para as oposições

A oposição não tem como cooptar editores e jornalistas. À medida que se intensifica o processo de deturpação das declarações de Lula, para produzir manchetes hostis – e isso vai acontecer agora todos os dias -, coloca-se para o PT o desafio de trabalhar o espaço da notícia e não apenas o espaço da propaganda, para o qual já tem Duda Mendonça. Não vai ser fácil.

Não deixe de ler

A autocrítica do importante intelectual palestino Edward Said, professor da Columbia University, de Nova York , ocupando toda a última página do caderno especial da Folha de hoje sobre a guerra ao terrorismo. ?Árabes precisam de uma nova política secular?, é o título do ensaio. Depois de analisar detalhadamente a onda de perseguições a árabes nos Estados Unidos, Said denuncia a tolerância da intelectualidade árabe frente ao terrorismo e o uso da religião com propósitos políticos. Diz que não adianta apenas ?queixas contra o sionismo e o imperialismo: temos que pensar em nós mesmos como responsáveis pela pobreza, ignorância, analfabetismo e repressão que dominam as sociedades árabes?. E pergunta: ?Quantos de nós nos manifestamos a favor de uma política laica?? (…) ? Quantos de nós denunciamos todas as missões suicidas como imorais (…)?? Também no ensaio ?Liberdade Roubada?, de Ricardo Calil, publicado no caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil de hoje, são discutidas, por Said e outros, as agruras dos 7 milhões de muçulmanos que vivem nos Estados Unidos.

Se você deixou passar, não deixe de ler nos jornais de ontem: ?Um retrato do sistema elétrico?, de Joaquim Francisco de Carvalho, na página A2 da Gazeta Mercantil, em que ele historia o fracasso do modelo elétrico tentado por FHC; e ?O fim da globalização?, de Anthony Giddens, na última página do caderno especial da Folha dedicado à guerra ao terrorismo."

    
    
                     
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