Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Kucinski

LULA PRESIDENTE / ELEIÇÕES 2002

“A dimensão épica da vitória Lula”, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 28/10/02

“Na sua primeira edição depois do segundo turno, o ?Estadão? dedicou a capa do caderno eleições a uma única e enorme foto com a seguinte legenda : ?Nas águas do Rio Cumbu, no interior do Pará, as bandeiras do Brasil e do PT são levadas por dois barqueiros a caminho de seção eleitoral?.

A foto é de Paulo Amorim, a serviço, não por acaso, de uma agência estrangeira, a Associated Fance Press. O barquinho dessa foto remete para duas imagens do passado, a dos barquinhos da retirada de Dunquerque, destacada por todos os jornais e cine-jornais da época, e a imagem, nunca publicada, de um pequeno barquinho carregando Lula e um grupo de companheiros numa das caravanas da cidadania da campanha de 1989, cercado de dezenas de barquinhos, de pescadores, oriundos de todas as direções, no meio do Rio São Franciso. O que essas cenas têm em comum é seu sentido épico.

A exceção e a regra

A foto do ?Estadão? é uma das poucas exceções na postura da mídia brasileira. Até o debate da ?TV Globo? da sexta-feira (25/10), nossa mídia ainda não havia despertado para o caráter épico da candidatura Lula. Essa dimensão maior só começou a influir na pauta dos jornais a partir da divulgação das pesquisas Ibope e Datafolha do sábado e domingo que derrubaram a última esperanças de Serra, de virar o voto de 15 milhões de eleitores com base apenas num papo-furado de último minuto.

Mesmo assim, foi preciso a imprensa estrangeira realçar o caráter emblemático da subida de um operário ao poder e o impacto desse fato nos destinos da América Latina, para os jornalistas brasileiros começarem a aceitar que algo histórico estava por acontecer.

A epopéia dos comícios

No ?O Globo? de domingo, em ?Uma emocionada viagem às origens de Lula?, nos deparamos com uma das primeiras narrativas jornalísticas sobre a campanha de Lula de caráter claramente épico. Nessa reportagem Consuelo Lins revela como e porque os cineastas Eduardo Coutinho e João Moreira Salles decidiram filmar a campanha. A narrativa abre com esta fala de João Moreira Salles: ?Às vezes, tenho a sensação de que neste momento não tem ninguém na face da Terra que esteja fazendo alguma coisa mais importante do que a campanha de Lula?

. E é ainda João Moreira Salles que fala: ?… Em cada uma das cidades que fomos, havia 50, cem mil pessoas para ouvir Lula. Em João Pessoa vi um espetáculo que só posso descrever como fluvial: uma cidade inteira escoando lentamente pelas ruas e acompanhando o Lula, com a sensação de que estavam fazendo história…?

Quando o jornalismo ignora a dimensão épica dos fatos

Quem quiser conhecer os detalhes dessa epopéia, não os vai encontrar nos jornais brasileiros. Os futuros pesquisadores da nossa história também vão ter muita dor de cabeça, porque o corpus de pesquisa primário do histriador moderno, o jornal, não registrou os fatos básicos.

Jornais importantes com ?Folha de S. Paulo? omitiram sistematicamente informações que pudessem indicar a escala gigantesca da massa humana que convergia para os comícios, a força carismática do candidato operário e a dimensão mítica de sua imagem, três dos elementos típicos de uma narrativa épica.

Até ?O Globo? do domingo, não sabíamos sequer que Eduardo Coutinho e João Moreira Salles estavam registrando em filme Lula em sua epopéia.

A narrativa épica como forma superior de jornalismo

Não se pode alegar que a linguagem jornalística, tendo que ser objetiva, clara e econômica é incompatível com a narrativa épica. Desde o primeiro minuto, foram tipicamente épicas as narrativas em torno do ataque terrorista ao World Trade Center. Inclusive a repetição infindável, já deslocada no tempo, da mesma cena em que os aviões batem nas duas torres e se incendeiam. Ou as cenas da longa fileira de bombeiros penetrando nas torres, para serem depois dizimados.

Uso político do jornalismo épico

Quase todas as reportagens de guerra são épicas. Destacam heróis, cultivam os valores da comunidade e principalmente seu esforço coletivo e sobre-humano de ação ou de resistência. A resistência em Jenin. A retirada de Dunquerque. Em Dunquerque, os alemães infligiram aos ingleses uma humilhante derrota, encurralando as tropas britânicas junto ao mar. O próprio Winston Churchill chamou os editores de jornais e lhes pediu que dessem tratamento épico ao que havia sido o mais completo desastre militar dos ingleses até aquele momento. Assim surgiu a cena dos barquinhos mobilizados para a retirada dos soldados britânicos.

Em seu livro ?A primeira vítima? (Nova Fronteira, 1978), Phillip Knightley mostra que o tratamento épico de mídia inglesa à derrota em Dunquerque, adotado de combinação com o governo, foi o ponto de partida do formidável espírito de resistência do povo britânico ao longo de toda segunda guerra mundial. Assim a mídia inglesa fez da derrota material em Dunquerque, uma vitória moral. Uma epopéia urdida em cima de uma mentira. Knithley, aliás, relata esse episódio como exemplo de sua tese de que nas guerras a verdade é a primeira vítima (daí o título do livro).

E o sentido político da supressão da narrativa épica

A mídia inglesa atribuiu um sentido forçado de epopéia à derrota em Dunquerque. A mídia brasileira fez o contrário: suprimiu o conteúdo épico realmente existente nas campanhas de Lula. A comparação entre os dois comportamentos é a chave para se entender as razões da opção editorial antiépica da nossa imprensa na cobertura das campanhas Lula, mesmo porque essa política editorial vem sendo adotada desde as primeiras ?caravanas? de Lula, como aquela do Rio São Francisco, imaginadas por Ricardo Kotscho na campanha de 1989.

Se os jornais ingleses queriam criar as bases para a resistência heróica contra o nazismo, a mídia brasileira quis solapar as bases da retomada da auto-estima e do desejo de auto-afirmação e liberação do povo brasileiro, expresso no seu apoio a Lula. A supressão do sentido épico das campanhas de Lula não é um aspecto menor da cobertura, é o seu traço essencial. Visa enfraquecer a marcha de um povo.Ou seja, sua epopéia, antes mesmo dela receber seu mais impulso decisivo. A mídia inglesa atendeu o pedido de Churchill. E a mídia brasileira, atendeu o pedido de quem?”

“A imagem, a rua e o amor”, copyright O Globo, 25/10/02

“Está chegando ao fim a vigência excepcional dos poderes da Gratuilândia em nossos lares e em nossas vidas. Hoje será a despedida e, depois, os últimos cartuchos, no debate da Globo, cujo impacto dialético Lula tentou novamente diluir no programa de ontem, com mais uma daquelas simulações marotas.

Nesses dois meses, viu-se, na TV, uma campanha incrível. No primeiro turno, a imagem inaugural, a impactar o país, foi a de Garotinho ladeado por Getúlio e JK, como se herdeiro fosse de uma tradição de grande estadismo. A ascensão e queda de Ciro, marcada pelo fenômeno do ouvinte burro (sic) e pelo sacrifício de Patrícia Pillar – foi o clímax. O triplo azul do trabalho trabalho trabalho e a onda Gugu-KLB; a Carteira de Itu e a voz de Nana suplantaram a sedução personalista de Ciro, caído em desgraça. FH, depois de arrancar o OK de todos ao FMI (assunto que jamais voltou à campanha na TV) apareceu uma vez. E nunca mais.

No debate da Record, os candidatos transformaram-se em bólides humanas. Bóris Casoy perdeu completamente as estribeiras, e Lula uniu-se a Ciro e Garoto para aplacar o ânimo da nação tucana. Enquanto isso, espalhavam-se pelas telas as imagens de Lula arrancando urros e hurras na bolsa enquanto o mercado, na prática, era o samba-do-crioulo-doido de sempre. Paralelamente, o plebiscito da Alca, alicerçado pelas candidaturas do PSTU e do PCO, fazia tremer de tédio as bases do país-TV e, de quebra, levava uma solene banana do ex-irmão Lula. No outro extremo da escala partidária, Enéas, desta vez ausente da disputa presidencial, captava o seu carnudo quinhão no sombrio castelo de sua bizarria não-propositiva.

Na seara estadual, as mulheres do Rio, ladeadas pelo trêmulo e tristonho Jorge Roberto Silveira, apresentavam suas credenciais, num jogo que, desde o início, parecia destinado a homologar o novo império populista fluminense, representado pela voz monocórdica, pelo discurso decoradinho, pelo cabelo alisado e pelo tônus triunfalista de Rosinha. Como se não bastasse, Benedita, Solange e Jorge (Aspásia à parte) gastaram seu tempo na TV devorando-se, em vez de unir-se no sentido de desestabilizar o vôo empinadinho de Rosita Garotón.

Até que veio o episódio de 30 de setembro, quando Cesar Maia e Solange, então convertidos numa personalidade una e intercambiável, tentaram sua última cartada televisiva para, na esteira do pânico, mobilizar o teleleitor, mas acabaram esbarrando na ação razoável de Benedita à frente do governo. Bené, que já capitalizara a prisão de Elias Maluco (segundo Jorge Roberto, uma espertíssima armação das forças situacionistas, com a participação do bandido), acabou colhendo alguns louros por ter controlado a situação, mas, como ela mesma disse, com agudo senso de observação, ?faltou voto?. O Rio, que vivenciara o elitista movimento ?Rosinha Não? – e que, majoritariamente lulista, constatara o advento do segundo turno federal – teve o seu domingo à noite mais vazio da história democrática. A ponto de, à uma da manhã, o Jobi ter um único freqüentador, flagrado tomando… suco de laranja! Dante não faria melhor.

Serra, na TV, comemorava a passagem à etapa seguinte, e prometia que tudo começaria do zero. Não foi bem assim: no primeiro programa, Lula, num rocambolesco espetáculo televisivo, apresentava seus aliados em ritmo de Vila Sésamo: na condição de bonecos mexendo as mãozinhas e dizendo ?vem?, Ciro e Garotinho trouxeram mais um bolão de votos. Serra, por sua vez, iniciou a sua intensiva bateria de ataques, e lançou sua carta mais poderosa: Regina Tenho Medo Duarte. Ela manifestou seu medo e expôs o remanescente tecido patrulhento petista. Alimentou, na campanha de Serra, a expressão do temor a uma ditadura ABC, adicionada a um futuro que combinaria hiperinflação, insegurança e incompetência.

A campanha do medo teve reforço de Carlos Vereza e de Beatriz Odete Roitman Segall e, do outro lado, Paloma Duarte, vestindo a fantasia da indignação e da ofensa do bom coração atingido pelo fel do ódio. Foi tudo muito interessante, mas nada mudou. Nos últimos dias, o PT vem desfilando seus clipes. Ontem, mostrou a tarde dos artistas no Canecão, com imagens de Gil dizendo que é hora da emoção; e de Leonardo Boff ensinando que governar não é um ato administrativo: &eaceacute; ato de amor. Mais um desafio para o futuro presidente. No último filme de Godard, o protagonista diz que o Estado é uma entidade incapaz de amar o indivíduo. Verdade ou não, resta-nos, na imagem da TV ou na vida que aparece na rua, amar, soberanos, o Brasil livre. Venha quem vier.”

“Antevéspera da decisão”, copyright Jornal do Brasil, 25/10/02

“Hoje à noite, na Rede Globo, haverá o último e único debate entre os candidatos do segundo turno a presidente. Com a eleição domingo, é uma rara chance de saber um pouco mais o que pensam os dois cidadãos que pretendem nos presidir. O eleitor vai refletir e decidir, confirmando ou não, na urna, sua escolha no primeiro turno. As pesquisas continuam apontando para uma vitória da coalizão PT-PL com grande diferença sobre o candidato de PSDB-PMDB. Mas, como diz o provérbio, só o peru morre de véspera.

As duas campanhas foram milionárias e dirigidas por importantes nomes da publicidade. Estes, ao que parece, tiveram plena liberdade criativa, acima das tradições partidárias. Isso acabou não se mostrando boa novidade, pois um candidato não é sabonete a ser vendido aos consumidores, embora pelo menos um deles, Ciro Gomes, tenha se dissolvido diante dos eleitores cada vez que abriu a boca diante de um microfone.

A atuação de Serra, particularmente, foi mal conduzida. Com assessores como esses, o senador não precisa de inimigos. No início, cenas risíveis de musical televisivo reuniram cantores populares a entoar jingles impossíveis de memorizar, louvando um país cor de rosa onde tudo é felicidade. Agora, atores de novela demonstrando medo exagerado da possibilidade democrática do adversário chegar ao poder. Uma emenda quase pior que o soneto. O candidato, que tem muitas qualidades de homem público, acuou-se cada vez que indagado sobre se era ou não governo. Resultado: teve no primeiro turno percentagem de votos inferior aos índices de aprovação de FHC, já desgastado por oito anos de governo. Também não aproveitou bem a dica do apoio maciço dos conservadores (ACM, Sarney, Maluf, Fleury, Delfim, Igreja Universal) a seu concorrente. Agora pode ser tarde demais.

A campanha do PT, até por ter colocado Lula em primeiro lugar, merece menos críticas. Foi mais direta, disfarçando bem algumas das evidentes deficiências do seu candidato, que repetiu, de maneira mais inteligente, os mesmos velhos slogans de oposição em qualquer tempo e lugar. ?O governo é incompetente, tudo deve mudar, as soluções são políticas e não técnicas etc.? Poupado nos debates do primeiro turno pelos outros concorrentes, Lula chegou ao segundo sem detalhar muito bem o seu programa, confiante no carisma pessoal. E, uma vez campeão de votos, recusou-se a detalhar suas idéias. Ora diz que vai mudar, ora que não. A igualmente evasiva entrevista do presidente do PT, José Dirceu, domingo passado no jornal O Estado de S. Paulo, parece confirmar a desagradável suspeita de que o partido se julga acima do eleitorado.

Uma vitória petista é simbolicamente importante, e não apenas para o Brasil. Seria a primeira grande vitória eleitoral da esquerda na América Latina desde a eleição de Salvador Allende no Chile em 1970, e a de Daniel Ortega e os sandinistas na Nicarágua, em 1984. O fenômeno Chávez na Venezuela não conta, pois cada vez demonstra mais o que realmente é: a velha direita populista com roupa nova.

Daí a responsabilidade redobrada que terá um eventual governo Lula, espremido entre a vontade de atender aos anseios sonhadores de seus eleitores, a pressão de aliados ainda ontem adversários ferrenhos, a minoria parlamentar, e a necessidade de não perder a sensatez e contribuir involuntariamente para algum tipo de retrocesso, seja econômico, seja institucional. Um equilíbrio instável na corda bamba deverá marcar os primeiros meses. Passando no teste, melhor para todos nós. Se fracassar, não há futurólogo que possa prever o que vai acontecer. Mas a palavra final continuará dos eleitores.”