Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Boas lembranças e duas mancadas

BALANÇO 2003

Deonísio da Silva

Primeiramente, realcemos alguns dos muitos livros que fazem por merecer a atenção dos leitores. Por título, autor e editora seguem algumas boas lembranças do ano que finda.

1. A margem imóvel do Rio, de Luiz Antonio de Assis Brasil, LPM ? Um romance que mostra o Brasil meridional do século 19, visto por um alto funcionário da Corte que sai do Rio em busca de misterioso personagem. Luiz Antonio de Assis Brasil deixa evidentes as marcas que o consagraram como um de nossos melhores romancistas. A margem imóvel do Rio evidencia o encanto da leitura que se faz por prazer.

2. As ilusões armadas, de Elio Gaspari, especialmente o volume A ditadura derrotada, Companhia das Letras ? Você pensava que o governo Geisel tinha sido de distensão lenta, segura e gradual, como apregoaram sempre? Não. O Sacerdote (Geisel) e o Feiticeiro (Golbery), dois poderosos com quepes e fardas estreladas, têm seus perfis iluminados no meio das trevas do período por um jornalista que pesquisou seriamente para nos revelar outros lados da escuridão.

3. O amante brasileiro, de Betty Milan, A Girafa ? Num romance edificado sobre troca de mensagens eletrônicas, o amor, o sexo e a solidão, vistos de Paris e de São Paulo. A autora tem obsessão por definir o novo lugar do amor e da amizade nos tempos modernos. Mas jamais foi tão feliz em tal persistência como neste livro repleto de maravilhosas declarações de duplas que se amam de verdade.

4. Concerto para paixão e desatino, de Moacir Japiassu, W11 Editores ? Em A Santa do Cabaré, o autor já se mostrara um craque, apresentando-nos Ladislau, personagem fascinante, que tudo desarruma, principalmente os conceitos do Bem e do Mal. E neste segundo romance, o contexto e o pretexto para um romance histórico que inova o gênero são a Revolução de 1930 e seus vultos inesquecíveis. Sua linguagem: "um aluvião poético na aridez", como definiu Rogério Pereira, de Rascunho [jornal dedicado a autores e livros, editado em Curitiba e encartado no Jornal do Estado, na primeira sexta-feira do mês; <www.rascunho.com.br>]. Lembro que Rascunho passa a limpo autores e livros com ousadia e sinceridade raríssimas nas páginas literárias de nossa imprensa.

5. Gosto de uva, de Frei Betto, Garamond ? Um livro de ensaios marcado por suave erotismo e grande clarividência, revelando as utopias do Richelieu do presidente Lula. O autor não tem autoridade e nem vestes cardinalícias, é um simples frade dominicano que, por coerência, pagou caro por suas idéias, passando larga temporada no temível presídio Carandiru, já desativado.

Boas lembranças

Em segundo lugar, realcemos autores que se destacaram por livros, artigos, entrevistas, conferências. Foram muitos, mas à semelhança do item anterior, lembremos alguns, como quem sublinha nomes com lápis vermelho para não perder de vista tais referências. Alberto da Costa e Silva, poeta de reconhecidos méritos e o ensaísta competente de A manilha e o libambo, marcou presença com sua dicção segura.

Affonso Romano de Sant?Anna, poeta, cronista e ensaísta admirável. Nunca saberemos o gênero que ele mais aprecia, mas o leitor sempre encontra em seus textos, seja qual for o escolhido, um autor que tem o que dizer e sabe como fazê-lo. No ano de 2003, ele esbanjou talento, competência, coragem e invenção em livros e na imprensa, submetendo ícones como Ezra Pound e Marcel Duchamps a um olhar armado desconcertante pelos mirantes em que se pôs a contemplar a modernidade com grande lucidez.

No time, impossível esquecer o escritor e professor Menalton Braff, gaúcho transplantado para o interior de São Paulo, que segue um caminho admirável com livros ? bem conhecidos ? e crônicas ? ainda sem gozar da atenção que merecem. É um autor que escreve apoiado em conceitos muito claros do que vem a ser o que chamamos Brasil.

Sempre se fez boa poesia no Brasil meridional. E este ano Fabrício Carpinejar, pagando o alto preço de ter pai e mãe poetas, voltou com os versos deslumbrantes que contribuíram para a consolidação de seu inegável prestígio: é um de nossos melhores poetas. Cometeu livros e artigos imperdíveis. Quem ainda não tem Caixa de sapatos, por exemplo, precisa providenciar rapidinho.

Antonio Torres, o memorável autor de tantos romances, vários deles publicados também em outros países, voltou com O nobre seqüestrador, apoiado em fato histórico rico por sua complexidade e desdobramentos: o seqüestro do Rio de Janeiro por um corsário francês.

Dalton Trevisan sempre no batente de narrativas curtas cada vez mais abreviadas, de que é exemplo o imperdível Capitu sou eu.

Nomes como Plínio Cabral, Anna Maria Martins e Domingos Pellegrini, na ficção. Neide Archanjo, Mário Chamie e Alberto Cunha Melo, na poesia. Os prêmios Portugal Telecom, Talentos da Maturidade e Jorge Amado de Literatura e Arte foram grandes acontecimentos e reconhecimentos literários. Enfim, há um caudal volumoso de boas lembranças para memorar e comemorar 2003.

O governador disse, os jornalistas não entenderam

Duas mancadas literárias do ano. Primeiro, a eleição de Marco Maciel para a Academia Brasileira de Letras. Que autor é esse, qual sua obra? Se ele fosse eleito para alguma agremiação política que destacasse seu desempenho como governador de Pernambuco, senador, ministro da Educação, vice-presidente da República, tudo bem! Mas como autor eleito para a ABL!

Em segundo lugar, a gafe dos repórteres que entrevistavam Geraldo Alckmin e quando ? é muito raro um político referir leituras ? ele disse que "para homenagear o poeta", a escolha do candidato de seu partido a prefeito de São Paulo seria "em março ao findar das chuvas e logo à entrada do outono" ? eles disseram que o governador tinha evocado Águas de março, de Tom Jobim (Folha de S.Paulo, pág. A 9, 23/12/03). Evidentemente a referência era Olavo Bilac, com os versos iniciais de O caçador de esmeraldas, presente em muitas antologias escolares:

"Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada/ do outono…"

Já que o nome de Tom Jobim é sempre uma boa lembrança, mesmo nos equívocos, foi ele quem, comentando as dificuldades de se entender nossa pátria, disse que "o Brasil não é para principiantes".