Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Brasileiros de Massachusetts

(*)

 

José Mario Pereira (**)

Há poucas atividades no Brasil tão vilipendiadas quanto a de editor. Em geral somos reputados como seres desprovidos de cultura, que vivem da exploração e comercialização do talento alheio. Ninguém lembra que a falência arrasta mais editores que escritores. Não se leva em conta a enorme quantidade de autores que só se tornaram conhecidos depois de devidamente copidescados e rearrumados no dia-a-dia das editoras. E, quando o livro sai, a concisão, a leveza e a elegância do estilo são do autor, é claro. Mas já vi escritores famosos reescritos, por exemplo, por Pedro Paulo de Sena Madureira, hoje na Siciliano. Não se comenta, até porque ficaria deselegante, essa participação subterrânea do editor no processo final de um livro. Falo neste caso – e a distinção aqui é necessária – do editor no sentido de editor, em inglês, e não do dono de editora, que tanto pode ser um lutador de caratê que herdou o negócio da família quanto um executivo interessado em publicar best-sellers de qualidade zero apenas para ganhar dinheiro.

Penso no editor como alguém que, dentro dos limites e potencialidades de sua atividade, contribui para que a cultura do país se fortaleça rumo ao futuro. Dois exemplos de imediato me ocorrem: Erasmo de Roterdam e Denis Diderot. O primeiro empenhou-se, em seu tempo, para que a grande cultura greco-latina se tornasse conhecida e reavaliada; o outro é o inquieto autor do romance moderno por excelência que é Jacques le fataliste, e também o maior responsável pelo sucesso da Enciclopédia francesa. A missão primeira do editor deveria ser a de empenhar-se para que o humanismo ganhasse consistência — sobretudo entre nós, brasileiros, que vivemos em uma região periférica do mundo capitalista. Admiro meu saudoso amigo Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, e hoje um Jacó Guinsburg, da Perspectiva, por contribuírem neste processo.

Esquecimento adiado

No Congresso Nacional encontramos defensores de tudo: do mico-leão dourado, das baleias, da arara azul, das tartarugas marinhas. Desconheço, porém, quem tenha sido eleito lutando pelo livro, advogando a necessidade de o brasileiro ter acesso fácil à leitura, defendendo o direito do cidadão à autêntica cultura que só o livro pode dar. Na verdade somos uma categoria que, no conjunto, é mais importante do que qualquer Ministério da Cultura, mas não nos damos conta do fato. Neste final de século, e às vésperas dos 500 anos do Brasil, constato que não formamos um grupo uno, coeso – e isso é lastimável. Temos um Sindicato, mas na hora necessária somos pouco ouvidos. De outro lado, não possui o governo uma política séria de aquisição de livros, que garantiria a publicação de textos relevantes e esquecidos. E quase nunca o Sindicato toma atitude em defesa das pequenas editoras.

Há dois ou três anos, o governo exigiu 89% de desconto na aquisição de livros para distribuição em escolas e bibliotecas públicas. Dono de grande editora, o então presidente do Sindicato agiu de forma ambígua. Nos jornais declarou que não se deveria negociar em bloco, pois isso configuraria “formação de cartel”. Logo a seguir, produziu e vendeu um livro existente apenas no catálogo de uma pequena editora. Ou seja: com a desculpa de que o título era de domínio público, desconsiderou a ética profissional, que o impediria de imprimir um livro que me tomou quase um ano de trabalho. Vejam o absurdo: resgatado do esquecimento, fora do mercado desde 1931, O Brasil Nação, de Manoel Bomfim, foi escaneado e vendido para o governo pela editora dele; retirou-se apenas os prefácios por mim encomendados a Wilson Martins e a Ronaldo Conde Aguiar, biógrafo de M. Bomfim e hoje uma das maiores autoridades em sua obra, empobrecendo deste modo a publicação.

Ninguém pensou no trabalho que este livro consumiu – nem o presidente do Sindicato, nem o governo, cúmplice na usurpação. Detalhe: a edição original, em dois volumes, foi transformado por mim em um. A outra editora, com gráfica própria, aceitou o extorsivo desconto exigido pelo governo e fez o livro também em um só volume, copiando até mesmo a solução gráfica que adotei. É de se perguntar: por que continuar editando obras de qualidade, de real interesse para o entendimento do Brasil, se o governo, no momento em que deveria reconhecer este trabalho, estimulando o editor a prosseguir em missão tão pouco lucrativa, compactua com a esperteza? Não há solidariedade da categoria quando o único objetivo é o lucro, o que torna urgente a criação de uma forma de copyright para trabalhos desse nível.

Há muito para se editar no Brasil. Estamos entrando em novo século e ainda não fizemos a grande edição brasileira dos gregos, de Aristóteles e Platão, nem nada que se compare ao catálogo da Loeb inglesa, da Les Belles Lettres francesa, da F. Meiner alemã ou da Gredos espanhola. Falta-nos ousadia. Precisamos inventar, arriscar, e não copiar o vizinho — mesmo quando a palavra de ordem é concorrência. “Fazer um livro não significa mérito nenhum se este livro não melhora as pessoas”, escreveu o poeta inglês S. T. Coleridge, em uma frase que deveríamos adotar como lema.

Que não entendam o que digo como romantismo ou defesa quixotesca da qualidade contra o resultado das vendas. Nossa atitude como editores deve ser a de ajudar o país a ler mais, a ler melhor. Só assim nos justificaremos perante as futuras gerações, adiando o esquecimento que corrói tudo que é humano.

(*) Publicado no Suplemento Cultural do Jornal do Commercio de Pernambuco (6/12/99)

(**) José Mario Pereira é editor da Topbooks.