Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Braziliense-já, alegoria sobre um estilo

EXERCÍCIO DE FICÇÃO

Allan Novaes (*)


“O Correio Braziliense é o jornal brasileiro que mais respeito. De longe. Entre todos os diários do país, considero o Correio o mais bem feito ? falo de texto, diagramação, de qualidade de informação, de acabamento em geral; e o mais independente ? falo de credibilidade, de exercício de espírito público. Insisto: de longe o melhor.” [Mino Carta (**)]


Embora nem todos concordem com Mino Carta, não são poucos os jornalistas que reconhecem a autenticidade e eficácia da reforma editorial e gráfica do Correio Braziliense ? o Correio dos tempos de Ricardo Noblat. O alvoroço em torno das conquistas do diário é grande, desde o lisonjear dos partidários ao praguejar dos enciumados. A contenda tem seus motivos: o texto sem lide, muitas vezes beirando o literário; o uso intensivo de cores; e o visual atraente e leve.

Por ter conquistado 156 prêmios de jornalismo ? 69 de artes gráficas, 63 de reportagem e 24 de fotografia ?, o diário da capital federal fez por merecer sua posição de oitavo jornal que mais cresceu entre os 41 maiores do Brasil, de 1994 até 2002, e que, no mesmo período, aumentou sua circulação em 64%, enquanto a maioria dos concorrentes perdia mercado. Os números, “evidências” do êxito da cruzada do jornal, são difíceis de engolir, especialmente para o eixo Rio-São Paulo. Números são números.

No entanto, mais preocupante do que assumir ou não o poderio do diário brasiliense é antecipar um futuro alternativo, distante, mas nem por isso inviável: o que aconteceria se a reforma do Correio tivesse seguidores nos grandes diários do país? Diante da influência do projeto gráfico do Correio em alguns jornais do Centro-Oeste e até do Sudeste, brincar com realidades paralelas pode ser uma das melhores maneiras para avaliar as conseqüências (más ou boas) dessa expansão. A especulação, bem fundamentada, é claro, dá ao leitor uma sensação de estar segurando em suas mãos uma bola de cristal, cuja verdade se encontra ali, possível de ser antecipada (e porque não modificada?). A instantaneidade da notícia obrigou os jornalistas a levarem o jornalismo de especulação mais a sério, embora uma boa dose de ficção e humor não façam mal a ninguém. Às vezes, é na ficção despretensiosa que a realidade se torna mais clara e nas narrativas mais inverossímeis que a coerência se esconde.

Nasce o movimento

Ao assumir essa linha futurista para responder à pergunta (o que aconteceria se o projeto do Correio influenciasse os grandes diários do Brasil?), a primeira coisa a admitir seria a extinção das obras-primas do jornalismo didático. Exemplares de Mário Erbolato, Muniz Sodré, Cremilda Medina e de outros ícones do jornalismo certamente seriam tachados como ultrapassados e talvez queimados em salas-de-aula. A Arte de fazer um jornal diário, de Ricardo Noblat, ex-diretor de redação do Correio Braziliense, emergiria como manual adotado nos centros de ensino e em pouco tempo seria a nova bíblia para a formação universitária em jornalismo. O próprio Noblat seria transformado em ídolo, com Paulo Cabral de Araújo, ex-diretor-presidente do grupo Diário Associados. O governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, por sua vez, seria alvo de caras-pintadas da Universidade de Brasília e demais faculdades que abraçariam a causa. Seu nome estaria estampado em faixas e cartazes pelas instituições de ensino superior da capital federal de maneira bem sugestiva: “Abaixo o terRoriZmo”. Logo o movimento se espalharia por faculdades e universidades de todo o Brasil e ganharia as ruas das principais cidades brasileiras.

O Jornal Nacional seria o primeiro telejornal a chamar o movimento estudantil de Braziliense-Já, nome assimilado sem dificuldade. Cristovam Buarque, um dos primeiros a vestir a camisa da causa, daria novo vigor ao movimento. Seguido por intelectuais, jornalistas de peso e políticos ? por envolvimento ideológico, adesão do partido ou simplesmente autopromoção. Essa atitude provocaria grande indignação entre os adversários, que logo despejariam enxurradas de acusações sobre o ministro ? e ex-governador do DF ?, de retribuir antigos favores do jornal. No âmbito acadêmico, alertas e acusações partiriam de estudiosos da comunicação, como José Arbex Jr. Segundo a facção opositora, os impressos correriam o risco de contaminação pelo vírus do sensacional e espetacular da TV ? a adoção de cores, diagramação leve e sedutora, a utilização de mapas e boxes didáticos e o aumento do corpo dos caracteres seriam evidências “sintomáticas” da doença da “televisionização” dos diários. O argumento era forte, e as evidências, contundentes. Prometer-se-ia uma CPI para investigar o caso. Mas, enquanto os trâmites no Congresso ocorriam, a implantação do projeto continuava. Logo as acusações de políticos seriam consideradas impropérios e as críticas dos intelectuais abafadas pela comoção estudantil e por articulistas do Braziliense-Já na imprensa e no Congresso.

O diferente se torna igual

Tão logo fosse implantado o projeto Correio nas redações, os textos jornalísticos receberiam forte golpe: a morte do lide convencional. A abertura tradicional da notícia e da reportagem seria abolida e o falecimento do lide publicado em Diário Oficial. E ai daqueles que quisessem retornar às velhas práticas! Acusado de estimular a preguiça e inibir a criatividade dos jornalistas, além de estragar o prazer pela boa leitura, o lide não morreria sem levar consigo todos os profissionais que o idolatravam. Bateriam as botas também os jornalistas sem imaginação.

A comemoração pelo falecimento do lide seria acompanhado de êxtase, fruto da falsa sensação de liberdade. Contudo, o passar do tempo revelaria ser a liberdade a mais atroz escravatura. O apreço pelo diferencial e pela liberdade no texto levariam os jornalistas a uma exaustiva cruzada contra as limitações da criatividade. Por serem proibidos de escreverem textos parecidos, a obsessão pela originalidade diminuiria a cada dia as opções para usufruí-la. Em poucos anos, todos os textos diferentes se tornariam iguais. E o primeiro texto a reviver o lide seria considerado o mais original, mas sem durar muito tempo nessa condição. Essa “descoberta” seria rapidamente assimilada por outros jornalistas e os textos seriam todos iguais novamente.

Grande contingente de designers e publicitários seria contratado pelos jornais para reformular a diagramação dos respectivos impressos. O resultado imediato? Dezenas e dezenas de diários com cara de revistas semanais. O resultado a longo prazo? A competição por prêmios da SND (The Society for News Design) seria muito mais acirrada. Obviamente, o números de assinantes e vendas avulsas iria aumentar. Mas logo depois despencaria: até o novo e visualmente atraente cansa. O planejamento gráfico arrojado já não surtiria efeito com a repetição. O sensacional viraria rotina. Rotina diária. E entre rotina diária e rotina semanal, os leitores escolheriam a de maior intervalo de tempo para descanso. Veja, IstoÉ, Época e CartaCapital entrariam nos anos das vacas gordas.

Sobrariam, portanto, vacas magras para os diários. Magérrimas, por sinal. Deve-se ressaltar, no entanto, que o início da decadência dos jornais não seria devido ao cansaço do texto literário e do visual atraente apenas. O expor da postura ética do jornal afastaria os leitores. No começo, os diários se gabariam de, responsavelmente, publicarem retratações por falhas cometidas. Ficariam orgulhosos de sua transparência. Capas com os dizeres “A Folha errou”, “Equívoco do JB“, entre outros, seriam tão comuns que assustariam os leitores. Com a credibilidade em baixa, vendas e assinaturas diminuiriam na mesma proporção. Mais pontos para os semanários.

Queda

Com a derrocada dos diários, o movimento Braziliense-Já não conseguiria conter a influência da oposição. Como as sucessivas invasões dos germânicos e hunos fustigaram o Império Romano até sua “morte”, as críticas de saudosistas e intelectuais minariam os fundamentos da causa. Com o falecimento dos líderes do movimento, seus adeptos iniciariam a debandada. Novas reformulações e reformas editoriais e gráficas nos jornais aconteceriam. Os diários voltariam a ser como eram. O Correio, outrora sede do império, fecharia as portas. Seu rival, o Jornal de Brasília, assumiria a preeminência do jornalismo local. A Folha, por sua vez, novamente tomaria a frente do projeto de reconstrução jornalística do país. Era preciso recuperar a credibilidade perdida e arrebatar milhares de leitores das revistas semanais de volta para a fileira dos diários.

Ainda que o fortalecimento dos semanários pudesse marcar a nova fase nos impressos brasileiros, um veículo mostrar-se-ia incólume e imponente ao fim do desastroso movimento. Por nenhum momento titubeou. Ao apoiar o Braziliense-Já, foi o único que legitimamente se fortaleceu com o processo e assumiu a hegemonia midiática nacional: a todo-poderosa TV provou de uma vez por todas ser a mais forte ferramenta da mídia para impor conceitos e mobilizar massas. A única que brinca com fogo e não se queima. A única que explora a imagem em detrimento do conteúdo e que utiliza o sensacional para anular a reflexão, sem sequer se chamuscar. É. Os intelectuais estavam certos; a TV se fortaleceu e os impressos foram “televisionados”.

O Braziliense-Já estava destronado e a “conspiração televisiva”, descoberta. Mas quem teria a coragem de guerrear contra a TV sem ser fulminado?

Moral da história: a ficção televisiva e a hegemonia visual moderna afetam a tudo e a todos. Até mesmo ao autor desse texto, cujo apelo à imaginação e o uso do sensacional foi a maneira ? descarada e contraditória ? encontrada para estimular a reflexão.

(*) Estudante de Jornalismo

(**) Embora o Correio Braziliense seja a maior evidência da teoria da “televisão de papel” e tenha se tornado bode expiatório para a crítica desse artigo como sugerido nesse texto de ficção, há de se ressaltar que a linha imaginária seguida no artigo refere-se à saudosa gestão de Ricardo Noblat, e não ao atual diário brasiliense. A crítica é baseada na época em que o projeto Correio seguia sob a liderança de Noblat. O Correio atual dificilmente continuará a seguir uma de sua principais propostas: “Consolar os aflitos e afligir os satisfeitos”.