Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

BrillÂ’s Content: O promotor, a mídia arrogante e a voz independente (mas nem tanto)

Argemiro Ferreira, de Nova York

 

A

revista Brill’s Content – criada pelo mesmo jornalista que inventou a Court TV, uma das redes de cabo mais bem sucedidas do país, vendida no ano passado por US$ 20 milhões ao império Time Warner – declara-se “a voz independente da era da informação”. Mas já no número de estréia tornou-se centro de controvérsia antes mesmo de chegar ao público.

O artigo de capa do primeiro número, só colocado à venda ontem, dia 16, é assinado pelo fundador, diretor, editor-chefe e executivo principal (CEO) Steven Brill, 48 anos, e diz ter o promotor independente Kenneth Starr, encarregado de investigar o presidente Bill Clinton, reconhecido que vazou informações a repórteres de alguns dos principais veículos do país.

Mais de 30 páginas da revista – que espera ter em cinco anos a circulação de 450 mil exemplares, embora a mais conhecida revista de mídia dos EUA, Columbia Journalism Review, não passe de 26 mil – foram dedicados à crítica da cobertura da mídia no escândalo Monica Lewinsky. E pelo menos um repórter é criticado por se comportar como “cãozinho de colo de Starr”.

A controvérsia gerada pela revista vai além do caso da ex-estagiária. O alvo de dois artigos é o programa jornalístico de maior audiência da TV – o 60 Minutes da CBS, cujo produtor, Don Hewitt, coloca em dúvida nove citações atribuídas a “fontes” ou “membros da equipe”. Outro artigo ataca jornalistas que usam o status de celebridade para fazer dinheiro com palestras.

O objetivo de Brill é fazer com que sua revista seja uma espécie de guia para os consumidores dos veículos da mídia, penetrando na intimidade de todas as redações. Ele tinha apenas 28 anos quando criou outra revista, The American Lawyer, que se tornou grande sucesso na área jurídica. Com a experiência, lançou em 1992 a Court TV – sucesso ainda maior.

“Ao expor o sistema legal por dentro, o que tem de bom ou ruim, ela fez crescer o respeito por nosso sistema de justiça, hoje modelo para o mundo – e a consciência de suas falhas. Quero que Brill’s Content faça o mesmo pela mídia. Ao expor preconceitos, desequilíbrios, imprecisões, falsidades e ainda o que tem de bom, os padrões serão aperfeiçoados, todos serão beneficiados”.

Essa explicação está no editorial assinado por Brill no primeiro número. Ali observa que se a revista fracassar e a mídia, freqüentemente arrogante, não for fiscalizada, questionada e escrutada, será um risco para “nossas próprios liberdades”. Por isso – observa ainda – a revista não será “direita contra esquerda, pequeno contra grande, os de dentro contra os de fora”.

Apesar disso, o conteúdo da revista está motivando acusações a Brill de não ter sido objetivo na análise do escândalo Monica. E ele reconheceu pelo menos um erro: devia ter dito ao leitor que no passado apoiou o candidato Bill Clinton e outros democratas, inclusive com dinheiro. “Mas também escrevi que Paula Jones tinha argumentos bem fundamentados”, defende-se.

A reação mais vigorosa a Brill’ Content foi a do promotor Starr, que já expediu três declarações e enviou carta de 19 páginas, a sair na próxima edição, questionando ponto por ponto o que considera erros e imprecisões de Brill. “No seu desafio, você alega que cometemos crimes para investigar um crime”, disse Starr. “Rejeito categórica e inequivocamente essa acusação”.

O promotor vai ainda mais longe ao apontar 14 erros factuais no artigo de Brill. “Seu ataque negligente e irresponsável beira a injúria e difamação”, escreve na carta. Starr refere-se ainda ao fato de repórteres citados no artigo já terem desmentido informações atribuídas a eles pela revista – embora Starr não negue as declarações dele próprio, reproduzidas por Brill.

Ao mesmo tempo, o jornalista conclamou o promotor a liberar as próprias anotações feitas por ele sobre as conversas que teve com repórteres, ao telefone ou pessoalmente. Também conclamou Starr a desobrigar aqueles repórteres do compromisso de sigilo então assumido por imposição tanto do promotor como de outros auxiliares dele na investigação.

Atingidos pelas críticas de Brill na revista, veículos e profissionais da mídia também reagiram – inclusive as revistas Newsweek e Time, que competem freneticamente na cobertura do escândalo. O repórter Michael Isikoff, apontado como um dos beneficiários dos vazamentos do promotor, considerou “puro lixo” e “fundamentalmente desonesto” o artigo de Brill.

O editor de Time, Walter Isaacson, inicialmente indignou-se com afirmação atribuída a ele por Brill, de que “não podemos criticar Starr pelos vazamentos porque nós estamos lá o tempo todo recebendo os vazamentos” (depois Isaacson conversou outra vez com Brill e reconheceu ter feito a declaração). No Washington Post a reação foi igualmente irritada.

A repórter Susan Schmidt, outra beneficiária de vazamentos, negou ter dito à revista que ouviu fontes do gabinete de Starr referirem-se à maneira como Vernon Jordan, amigo de Clinton, supostamente instruíra testemunhas a mentir. “Ao alegar que revelei a você minhas fontes, você me difamou e causou danos à minha reputação”, escreveu ela em carta a ser publicada.

Robert G. Kaiser, diretor de redação do Post, foi enérgico ao refutar a acusação de Brill a Schmidt. O repórter David Bloom, da rede NBC, outro citado como beneficiário de vazamentos, também considerou “lixo total e completo” o conteúdo da revista. Mas por enquanto Brill só admitiu um erro – não ter revelado suas contribuições no passado a políticos democratas.

Aparentemente, ele acha a controvérsia positiva para a revista – e, dadas as susceptibilidades da mídia, já a esperava como inevitável. Nos últimos anos nenhuma publicação provocou tanto barulho no lançamento. Se conseguir isso a cada número, a receita certamente pode vingar. Muitos analistas, no entanto, duvidam que consiga manter esse perfil.