Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

CADERNO DA CIDADANIA Audiência versus privacidade: ausência de limites

Nas noites de domingo, entre 19 e 22 horas, a conhecida e cada vez mais penetrante rádio Jovem Pan (São Paulo, FM 100,9) vem substituindo a exclusiva difusão de sua ótima programação musical por um “bate-papo” cuidadosa e sabiamente apelidado de “Torpedo da Pan”. O termo é realmente consentâneo com a proposta da rádio, torpedear, de forma jocosa, aparentemente engraçada, a vida das pessoas que pretendem participar do programa (e das que são pelo mesmo procuradas), levando, assim, ao conhecimento dos ouvintes aspectos reservados da privacidade de um e de outro.

Pelo conteúdo transmitido parece que a programação está pautada em telefonemas que reportam “questões” ou “problemas” afetivos, via de regra: indicações vindas de algum desafeto, inimigo declarado, namorado arrasado, conquistador frustrado etc. (todos adjetivados por um verbo no particípio passado que exprima, seguramente e no mínimo, desentendimento ou frustração).

O pressuposto para a história ou estória entrar no ar parece, pelo que transborda das criativas vinhetas encaixadas por seus dois apresentadores (Adriane Galisteu e Luciano Huck), estar centrado na capacidade que o caso ou o conto reúne de atiçar a curiosidade do ouvinte e ao mesmo tempo desvendar a intimidade do “entrevistado”, retendo, assim, a atenção do ouvinte, ávido, sem dúvida, pelo conhecimento de fatos que versam sobre a privacidade alheia.

Ao saber que está no ar, sendo ouvido por mais de 17 milhões de pessoas, número fornecido por um dos apresentadores no programa levado ao ar dia 19 de outubro – o que significa mais de dez por cento da população tupiniquim, mais um alerta para o Congresso Nacional – , é natural que o interlocutor ache engraçado e concorde, movido pela audiência, já pensando, sob razoável adrenalina, naqueles quinze minutos de glória vaticinados por Andy Warhol.

Mesclando perguntas sem qualquer restrição, os apresentadores lançam seus “torpedos”, de acordo com as informações fornecidas pelo tal do “outrem”, aquele que ligou durante a semana para a rádio e contou que brigou com a namorada, “levou um fora”, ou ficou sabendo que ela sai como outro rapaz, coisas desse gênero.

Até aí tudo bem, porque quem manifesta o desejo de participar do programa, sabe, de antemão, que deverá revelar aspectos íntimos concernentes ao “caso” que pretende resolver. Concorda, portanto, com a diminuição de sua privacidade. Da mesma forma nada há, a princípio, de intromissivo na divulgação de dados reservados da intimidade daquele outro protagonista do mesmo “caso” contado por quem procurou o programa, e que assume a posição de interlocutor em conversa telefônica paralela, a qual vai simultaneamente ao ar, isto, é claro, na hipótese de ser-lhe comunicada a origem e finalidade do telefonema, bem ainda suas implicações (programa de rádio transmitido para mais de 17 milhões de pessoas em todo o Brasil…).

O problema surge, contudo, e forma arrebatadora, quando uma das partes – frustrado ou responsável pela frustração – não se contém em divulgar apenas dados íntimos recíprocos, extrapolando as raias do bom-senso e da tolerância para invadir a privacidade de outras pessoas, a quem se refere(m) desvelada e despreocupadamente, sem que tenha, para tanto, havido qualquer consentimento deste último, atingido obliquamente. No afogo da conversa e no afã de “esclarecer” ou elidir eventual “culpa”, é difícil, reconheça-se, controlar o bom uso das palavras ou tom dos vocábulos, bem ainda, mensurar expressões que possam mostrar-se desairosas ou por demais ofensivas. Isso poderá quando muito justificar mas jamais legitimar a intrusão da privacidade alheia.

Chamou-nos bastante a atenção, a propósito, e talvez, por isso, decidimos expressar nossa preocupação, uma das passagens do programa veiculado dia 19 de outubro de 1997, que levou ao ar uma história, ao que parece, de um rapaz que ficou prostrado por mais de duas horas na porta de um cinema à espera da namorada, que não apareceu. O jovem também afirmou que houvera presenteado fartamente a moça. A rádio gostou da narrativa e resolver veiculá-la. Manteve o rapaz numa outra linha e ligou para a moça. Não demonstrando interesse, tampouco ânimo para os termos da conversa desencadeada pela rádio, a moça pouco falou, entregou, pouco depois, o telefone ao pai, que continuou o bate-papo com surpreendente desinibição.

Mostrou-se o genitor bem ponderado. A certa altura, porém, lançou o referido pai, após ser indagado a respeito do relacionamento entre sua filha e o baldado rapaz, que a mesma, tal qual a mãe de quem se separou, era “uma vagabunda…”. Uma sinfonia de risos foi imediatamente deflagrada…

Não é crível que em momento algum, durante o “bate-papo”, preocupou os efusivos e desprendidos apresentadores o fato de existirem outras pessoas, totalmente inermes, e que são, como a mãe da moça acima referida, alvo oblíquo das mais variadas e graduadas ofensas à honra, ou quando não simplesmente subtraído o direito à vida privada de que aquela mãe alvejada e ultrajada desfruta tanto quanto os dois apresentadores desfrutam?

Nossa preocupação é, pois, lançada com o intuito de causar uma reflexão séria e mais do que nunca atual, obviando-se assim situações desagradáveis e vilipendiadoras da honra a alheia nos moldes da que se acaba se noticiar, acerca dos limites impostos pelo bom-senso e pelo Direito à atividade comunicacional, a partir do momento em que fomenta ela, de maneira consciente ou não, a ocorrência de situações passíveis de causar lesão aos direitos da personalidade de quem quer que seja, interlocutor ou não.

É preciso que a sociedade civil (notadamente os curiosos), meios de comunicação massiva e o próprio Legislativo (com o apoio austero do Judiciário), se conscientizem de que o direito de tudo informar e noticiar não é, nunca foi, e jamais será absoluto. Esse direito, o da liberdade de expressão, tão decantado quanto distorcido em seu alcance, tem constituído abusos enormes. Tem transformado muita notícia falsa em verdade inconcussa, e, por incrível que pareça, convertido um punhado de dados fidedignos em veiculação inverídica. Respeitar a honra e a vida privada, antes de significar a manutenção de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, representa o respeito à dignidade da pessoa humana, bem supremo, que, como a própria vida, é inestimável.

Para banir essa chaga, diagnosticada por Paul Johnson como desejo inescondível e cada vez mais intenso das pessoas em conhecer detalhes íntimos das outras, que caminha pari passu com a capacidade tão incrível quanto inesgotável da mídia em atender a esse desejo, não bastam apenas leis rígidas.

Torna-se, pois, cada vez mais necessária uma reflexão profunda de cada cidadão – mas principalmente daqueles afeitos à mídia – , daquilo que verdadeiramente representa a dignidade humana, motivo de alento e razão genuína de viver.

(*) Advogado, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito de Jaú, SP; prepara dissertação de mestrado sobre “Liberdade de Imprensa e

Privacidade”, na PUC-SP.