Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Campos Sales e a imprensa

MARCHA DO TEMPO


Terceiro presidente da República (1898-1902), o paulista Manoel Ferraz de Campos Sales (1841-1913) notabilizou-se pelo esforço de restaurar as finanças do pais. Para obter o apoio da imprensa, que então atravessava uma séria crise econômica, subvencionou-a abertamente.

"Se não houvesse feito calar a grita dos jornais não teria levado a termo a obra de salvação financeira do país. Depois de Campos Sales outros presidentes tiveram de adotar o mesmo alvitre… Em verdade fizeram-no todos os governos da República com exceção do governo provisório, que a censura preservava de qualquer ataque, e todos os governos do Império…." [Laurita Pessoa Raja Gabaglia (filha de Epitácio Pessoa) citada por Nelson Werneck Sodré em A História da Imprensa no Brasil, pág. 317, Editora Civilização Brasileira, 1966]

Um ano depois de deixar a Presidência, Campos Sales começou a preparar um livro de memórias e prestação de contas, publicado quatro anos depois. O capítulo 11, inteiramente dedicado à questão da imprensa, é reproduzido abaixo. O texto é da edição de 1983 de Campos Sales, da propaganda à presidência, da Editora Universidade de Brasília.


A Imprensa

Imprensa sem política e partidos sem imprensa. ? A indústria do jornalismo. ? Prática dos governos da monarquia no tocante à subvenção à imprensa. ? Governo Provisório, Floriano Peixoto e Prudente de Moraes como procederam. ? O que fez o meu governo. ? Elementos sãos do jornalismo e parasitas perniciosos. ? Conceitos de José de Alencar, P. Lafite e Alexandre Herculano. ? Palavras de Camilo Peletan.

Vigoravam ainda na plenitude de sua força e prestígio as instituições monárquicas, quando um eminente estadista argentino, que acabava de deixar o cargo de primeiro magistrado do seu país, o Sr. Marcos Avalaneda, em visita à capital do Império, declarou, respondendo a uma saudação, que, dentre os fatos que mais haviam impressionado o seu espírito de observador, destacava esta assombrosa maravilha, num povo que se rege pelo sistema representativo: ? Partidos políticos sem imprensa, e imprensa sem política. Antecipando o conceito do ilustre hóspede, já havia dito José de Alencar, um dos espíritos que mais lustre deram à imprensa brasileira:


"A imprensa está bem desenhada nesta grande capital, que mata as folhas políticas e só fomenta as gazetas industriais.As folhas diárias de grande formato e circulação, essas constituem o feudalismo da publicidade. Suas colunas abertas à concorrência mal chegam para os abastados: a emissão das idéias ali importa uma despesa, não só de inteligência e de estudo, mas de grosso cabedal".


Mais de um quarto de século depois, no momento em que me coube assumir o governo da República, era ainda precisamente esta a situação do país no que concerne à imprensa. Não existiam partidos políticos e menos se encontravam nas folhas diárias representantes caracterizados de opiniões políticas. Faltava, pois, ao governo um órgão de vasta circulação, em que pudesse apoiar a sua política. Descortinar o seus intuitos, preparar a opinião e defender os seus atos. Faltava, em suma, um leader da administração no jornalismo. Nestas condições, só restava recorrer às colunas das gazetas industriais abertas à concorrência.

O meu governo ? não cessarei de repetir ? ia ser necessariamente um governo de combate: teria de empenhar lutas tremendas, atacar preconceitos arraigados, destruir vícios que levavam a paralisia à administração, afrontar a coligação dos interesses feridos, impor severas restrições à despesa pública e dar novo rigor ao regime tributário. Os menos clarividentes teriam lobrigado a necessidade de adquirir instrumentos de ação adequados à natureza de semelhante empreendimento. Era inevitável e fatal o recurso à imprensa industrial.

Em princípio e em boa-fé, ninguém pode condenar o industrialismo do jornal, no seu bom sentido, tão legítimo como os que mais possam sê-lo, quando exercido ao influxo "do caráter honesto e retas intenções das pessoas que o dirigem". Com essa índole o jornalismo aparece em toda parte do mundo civilizado, captando o favor público e prestando eficaz concurso ao progresso humano. Pensava Pierre Lafite que, como uma combinação do capital com o talento, o jornal representa necessariamente e fatalmente uma grande operação industrial, qualquer que se já o fim moral ou social que se proponha atingir. Há, pois, no jornalismo uma combinação inevitável do industrialismo com a ação sobre a opinião pública. É uma combinação honesta. Mas, no desempenho de sua missão de preparar a opinião pública para a aceitação de certas medidas, ou de encaminhar certos acontecimentos, a sua ação pode ser prodigiosamente funesta, criando falsas correntes de opinião, em desacordo com as tendências naturais e com as necessidades de uma situação. Esta conduta, segundo o sábio professor de Colégio de França, não é a que têm os homens cultos e de honra, que a indústria honesta do jornalismo atrai; mas é reservada aos parasitas perniciosos, mercadores sem escrúpulos da inteligência da própria honra [ P. Lafite ? Conférence sur la liberté de la presse].

Mas, os governos vêem-se freqüentemente forçados a agir, não só no sentido de preparar a aceitação de certas medidas e de encaminhar os acontecimentos, como também para evitar uma ação funesta dos que intentam criar falsas correntes da opinião. E foi esta positivamente a situação em que me achei. Encontrei em uma parte dos diretores da imprensa o arraigado preconceito de que o governismo é incompatível com a vida e prosperidade do jornal. O êxito, a fortuna a glória, a popularidade, estão do lado da oposição. O ataque ao poder, não importa por quê, é o mais estimulante atrativo à simpatia pública. Assim, ao encetar a minha administração, não era a deplorável situação em que se encontrava o país, com o seu crédito arruinado, com as suas finanças avariadas e com uma concordata a executar, que teria de indicar aos escritores desta escola a atitude por tomar: o que ia, sim, dar estímulo a vibração à sua ação jornalística e despertar-lhes arrebatamentos de patriotismo hipócrita, era simplesmente a auri sacra fames.

Não corrompi a imprensa. Acatei sempre a que merecia o respeito do público. Tive, porém, a mágoa profunda de encontrar jornais e jornalistas desviados da sua grandiosa missão e que pareciam dispostos a ser instrumentos benéficos da opinião, do que a exercitar a ignóbil indústria das opiniões.

O livro do Sr. Joaquim Nabuco, a que já me tenho referido, contém informações de muito interesse. Refere ele que na sessão parlamentar de 1855 se suscitou na Câmara dos Deputados um debate sobre a questão das despesas feitas pelo governo com a imprensa, em bem da defesa dos seus atos. O presidente do Conselho, Marquês de Paraná, dirigiu graves insinuações a Justiniano José da Rocha, deputado governista e escritor de ruidosa notoriedade, que até a véspera tinha sido jornalista do governo, e que, no entanto, de repente, se passara para a oposição.

J.J. da Rocha teve que vir à tribuna defender-se, explicar-se, e pronunciou, às vezes entre soluços que não podia conter, e às vezes entre risadas da Câmara, um dos mais singulares e comoventes discursos que encontram nos Anais. Contou o que tinha sido a sua carreira de jornalista desde os regentes, como auxiliava o governo, como lhe haviam retribuído. Eis um trecho dessa confissão geral, como é contada pela taquigrafia:


"Às vezes, senhores, eu, que tinha família numerosa (o orador começa soluçando), pois que além de ter Deus abençoado o meu consórcio com numerosa prole, também a desgraça veio pairar sobre a minha família, levando-me meu pai… (A voz do orador fica suspensa pela comoção, e vários Srs. Deputados lhe dirigem palavras de consolação.) Então, o sr. Paulino, em remuneração do trabalho insano da sustentação de um periódico, dava-me de vez em quando um papel dobrado e nele algumas notas de 200$000. (O orador continua em prantos.) E, senhores (com força), eu vivia com a família numerosíssima, e digo esta verdade, que não me pode ficar mal (apoiados), nunca me supus rebaixado quando o Sr. Paulino, em torça de um trabalho aturado de quatorze horas, me dizia: ? Rocha, aqui tens. (Apoiados.)."


A questão da subvenção à imprensa, continua a Sr. Joaquim Nabuco, é uma das mais delicadas que se podem dar para um ministro. Nas contas das verbas secretas dos diferentes ministérios a que Nabuco pertenceu (1853, 1857, 1858, 1859, 1865-1866), há recibos de jornalistas a quem o governo auxiliava. Não era esse serviço nada comparável às grandes despesas que foram feitas em época posterior com o sistema de a pedidos e não tinha seguramente o caráter de uma compra de consciências. Obedecia à necessidade da defesa que as administrações todas sentiam. Paraná confessou (26 de maio de 1858) que o seu ministério não era diferente dos outros nesse ponto:


"O Sr. Deputado reconhece, e é sabido geralmente, que em toda a parte onde há sistema representativo o governo não pode durar muito lutando com a imprensa, se em face dessa imprensa não houver quem o defenda, quem justifique e quem explique a sua política. É sabido, e o Sr. Deputado o assinalou, que essa tarefa de que acabo de falar custa sacrifícios que não são lucrativos, e, por conseguinte, é necessário que essa tarefa seja recompensada. Não pretendo que meu ministério seja diferente dos outros".


E isto se disse de um período de governo que abrangera a fase da Conciliação, em que se deram tréguas às paixões e às lutas, para se pedir a paz nos espíritos, o congraçamento dos elementos, ainda mesmo nos mais antagônicos pelas suas filiações partidárias. Mais tarde, é o estadista da primeira lei de 28 de setembro que se sente impelido a ocupar a tribuna da Câmara dos Deputados para confirmar e justificar as despesas que autorizara com os órgãos de grande circulação na imprensa.

Em discurso proferido na sessão de 5 de agosto de 1871, respondendo à interpelação do deputado José de Alencar, disse o Sr. Visconde do Rio Branco:


"O ilustre deputado denunciou um corrupção que lavra pelo país e lançou o estigma de desmoralização sobre a imprensa. Este estado de coisas, se é real, não pode ser obra de alguns dias: se o nobre deputado foi fiel na descrição assustadora que nos fez, há de convir que esses males vêm de muito longe… Até mesmo nos países onde se acham fortemente constituídos e têm órgãos naturais e legítimos na imprensa, até mesmo nesses países, os governos reconhecem a necessidade de recorrer aos órgãos de maior publicidade para explicar e justificar os seus atos, para defender princípios e interesses de que dependem a ordem social e algumas vezes mesmo a paz interna e externa. Se isto é assim em todos os países, as nossa circunstâncias especiais tornam essa necessidade mais imperiosa, porque entre nós o governo, ainda quando tenha um órgão certo e determinado que lhe seja dedicado na imprensa, ainda assim não pode prescindir, em certos casos, dos órgãos de maior circulação, pois de outro modo a sua causa, que é também a causa do país, debaixo do ponto de vista de suas convicções, correria à revelia e os seus atos passariam desfigurados aos olhos de muitos.

Em todos os países os governos têm lançado mão do recurso, que hoje censuram os nobres deputados: em parte alguma o governo tem confiado unicamente a este ou àquele jornal a defesa de sua causa, a publicação dos seus atos. Um grande coração e uma elevada inteligência, um insuspeito e eloqüente orador francês, cuja morte pranteia o mundo civilizado, Lamartine, senhores, dizia em 1835, discutindo a verba dos fundos secretos em França: ? Eu sou imparcial, tenho-me conservado neutro entre os partidos para que possa ser justo: voto pela verba, porque é uma necessidade de todos os governos ?, e perguntava aos que a impugnavam se acaso, colocados no governo, prescindiriam desse recurso; e mostrando qual a aplicação que podiam ter os fundos secretos, dizia o distinto orador que ele os empregaria também em animar a boa imprensa e em combater a má.

Todos o ministros do Brasil, sem exceção, têm lançado mão desse meio, têm mandado para os órgãos de publicidade artigos que explicam e justificam os meus atos, defendendo os princípios e os interesses que incumbe sobretudo ao governo defender e sustentar. O Gabinete de 3 de agosto [era presidente do conselho Zacarias de Góes e Vasconcelos] também declarou nesta Câmara, com toda a franqueza, que despendeu com a publicação de artigos várias somas".


Depois de aplaudir a franqueza dos governos que fazem estas declarações e enunciar a sua opinião, de que seria melhor, mais regular, que uma despesa necessária como esta fosse expressamente prevista e autorizada, diz, referindo-se ao interpelante:


"Se V. Exa. tem curiosidade de saber o custo dos artigos publicados na imprensa por conta do governo e se a Câmara entende que esta informação deve ser dada, mandaremos liquidar as despesas para satisfazer à Câmara e ao nobre deputado".


Aí está, perante o irrecusável testemunho da história, quais foram as práticas instituídas pelos governos da monarquia. Um não queria ser diferente dos outros. Todos, sem exceção, afirmou o Sr. Visconde do Rio Branco, socorreram-se do Tesouro para o serviço da imprensa.

O Governo Provisório, que inaugurou o regime republicano, não subvencionou a imprensa. Era uma ditadura popular, enfeixando em sua mãos todos os poderes da nação e exercendo na opinião indiscutível autoridade moral.

Como ministro da Justiça nesse governo, não senti a necessidade do emprego de aparelhos especiais para desembaraçar o caminho que a própria revolução havia aberto à reorganização política do país. Na implantação do sistema republicano estava consubstanciada a missão complexa do Governo Provisório, e ninguém chegou a ver no horizonte da nascente República o sinal inquietador, que denunciasse a formação de uma corrente oposta, mais ou menos ponderável. Por outro lado, o governo tranqüilizava-se na convicção de que possuía elementos de força suficientes para reprimir qualquer imprudente tentativa de ordem material, e, contra as demasias subversivas da licença, ele havia tomado as necessárias providências.

O decreto de 23 de dezembro de 1889 determinava "que os indivíduos que aconselhassem ou promovessem, por palavras, escritos ou atos, a revolta civil, ou a indisciplina militar, seriam julgados militarmente por uma comissão militar e punidos com as penas militares da sedição". Veio depois o decreto de 29 de março de 1890, sujeitando ao mesmo regime "todos aqueles que desse origem ou concorressem pela imprensa, por telegrama ou qualquer outro modo, para pôr em circulação falsas notícias e boatos alarmantes, que se referissem à disciplina dos corpos militares, á estabilidade das instituições e à ordem pública". Desta disposição excluía-se a análise ou discussão oral e escrita dos atos do governo, que não contivesse injúria pessoal, por mais severa que fosse. O decreto de 22 de novembro, considerando que tinham cessado os motivos que determinaram estas medidas excepcionais, revogou os dois primeiros e restabeleceu o regime comum.

No meu ministério eliminei a verba secreta.

O Governo Provisório abriu, portanto, uma solução de continuidade nas práticas estabelecidas. É que um poder editorial não se julga sujeito a ter conflitos com a opinião, por isso mesmo que não reconhece a possibilidade de uma soberania que contraste. Quando ele deixa de ser isto, tem desaparecido.

Creio, não o afirmo, que o presidente Deodoro da Fonseca, nos meses do governo constitucional que exerceu, não chegou a subvencionar a imprensa. O seu caráter naturalmente imperioso, mais ainda após o recente exercício de um poder sem contrapeso, não se afeiçoava a condescendências de certa natureza, nas relações com o público.

O seu sucessor, porém, deixou na opinião pública arraigada a crença de que aplicara, em larga escala, esse recurso. Governo constitucional, subordinado ao regime de opinião, precisando tirar dela a sua força, e ao mesmo tempo colocado em frente de uma poderosa revolução, que chegou a ameaçar a própria existência da República, vira-se o marechal Floriano Peixoto forçosamente impelido a pôr em contribuição simultânea os elementos materiais e morais de ação, em defesa da legalidade.

O meu antecessor, o Sr. Prudente de Moraes, entregou a defesa do seu governo à imprensa subvencionada, desde que começou a sentir os efeitos da agressão encarniçada dos seus implacáveis adversários. Havia estalado a cisão política de 1897, e o jornal A República, órgão do Partido Republicano Federal, tomara posição ao lado do grupo que se declarara em oposição. Privado do concurso deste, não dispunha o governo de outro jornal que fosse a genuína re4presentação do seu pensamento político e que obedecesse francamente à sua orientação. Foi nesta conjuntura que o Sr. Prudente de Moraes deu ao seu ministro da Fazenda a delicada incumbência de organizar a defesa do governo pela imprensa.

Com tais precedentes, e dada a situação excepcionalmente difícil, em que se encontrava o meu governo, não duvidei em enveredar por esse caminho francamente aberto e trilhado pelos que me antecederam. Mais do que o Marquês de Paraná, tinha motivos para não poder ambicionar que o meu governo fosse diferente dos outros.

Mantenho ainda agora a convicção da legitimidade do ato perante a moral social. Debaixo de instituições que tiram da opinião a origem de todo poder e que com ela devem viver, e num país, entretanto, em que os estadistas estrangeiros podem maravilhar-se de ver imprensa sem política e partido político sem imprensa, só resta fatalmente ao governo o recurso do jornalismo industrial.

A maledicência fez propalar que tinham sido feitos grandes dispêndios com a imprensa estrangeira. É uma falsidade indigna. Os atos do meu governo encontraram, felizmente, simpático acolhimento na imprensa européia em geral, sobretudo no jornalismo de Londres e nas revistas econômicas e financeiras de Paris, destacando-se deste luminoso centro de opiniões a grande personalidade de um economista consagrado, o Sr. Leroy-Beaulieu. Além de uma indignidade, a calúnia contém uma abominável falta de patriotismo. Equivale a dizer-se que, com justiça e só por amor dela, os órgãos da opinião estrangeira não podem apreciar de modo honroso para nós as coisas da nossa pátria.

Qualificando de criminosa a minha conduta e pretendendo dar uma agravante ao crime, os adversários do meu governo fizeram constar que as despesas com a imprensa montavam a uma soma avultadíssima que calculavam em seis a oito mil contos. No Banco da República encontra-se a Conta Corrente do Movimento do Tesouro, onde eram escrituradas estas despesas que não excedem a Rs. 1.000:000$000. [Tenho em meu poder uma nota rubricada por um dos ex-diretores do Banco da República, detalhando as despesas mensais com o serviço da imprensa, que acusa um total de Rs. 894:996$080 ? até 16 de dezembro de 1901. Ora, em 1902, essas despesas foram consideravelmente reduzidas, e a simples leitura dos jornais, sobretudo a escandalosa reviravolta que se operou na atitude de alguns deles com relação ao governo, deixam ver com a maior evidência que as subvenções tinham quase cessado. É, portanto, bem calculada a totalidade geral em cerca de Rs. 1.000:000$000.]

Asseguro que a verba secreta não prestou nenhuma contribuição a este serviço. Ela não bastava sequer para atender às necessidades da própria polícia. A soma acima indicada foi a única que no meu governo apliquei fora das autorizações explícitas do Congresso. Se isso constitui um crime, eu o confesso, sem declinar de mim a responsabilidade inteira. Não há, é certo, um ato meu direto, nenhum documento subscrito por mim: mas, tudo feito sob as minhas vistas e com a minha imediata superintendência.

Apoiado, como era, sobre os elementos sãos da imprensa, entre os quais o Jornal do Commercio, do qual, um dos redatores, em cartas ao Correio Paulistano, também sustentou os atos mais importantes do meu governo, com o mais absoluto desinteresse, afigurou-se-me, contudo conveniente não descuidar de alguns jornais e jornalistas, a fim de evitar, conforme o conceito de Lafite, que a ação funesta de parasitas perniciosos pudesse embaraçar a solução dos problemas da administração, tentando criar falsas correntes de opinião, em desacordo com os intuitos do governo.

O certo é que o desabrimento da imprensa tem chegado ao máximo de intensidade. Tenta-se a popularidade pela violência das injúrias, e é através da calúnia e do escândalo que certas empresas jornalísticas procuram o grande êxito.


"Liberdade de imprensa!… dizem. Desgarros da licença que não ousara tanto, se a opinião reagisse com indignação contra esse insulto à soberania representada no poder! Mas, por desgraça nossa, o riso e o exemplo insuflam tais misérias…

O poder da difamação é como o poder do patronato, uma instituição gerada em nosso país da degeneração do sistema representativo. O escândalo aguça até a mesma atenção pachorrenta dos bons: os mais, esses aplaudem sempre a queda de uma reputação, a calúnia, para eles, equivale a um nivelamento de caracteres. Assim forma-se uma popularidade, que bafeja sempre os escritos injuriosos. O insulto tem voga certa; a defesa é sediça e monótona. Não estranhem, pois, que cidadãos de coragem tremam desse assalto moral, impunemente cometido na maior publicidade. Sua honra preservada durante uma existência inteira, provada por cruéis vicissitudes, recatadas às vezes com escrúpulo excessivo, pode afogar-se de repente nos vômitos da calúnia.

Se fosse ao menos um exagerado patriotismo que produzisse essa explosões de ultrajes! Mas, as paixões políticas, nobres em geral, não entram nisso; são os mesquinhos sentimentos do indivíduo; as duas mãos do egoísmo, a vingança e a cobiça, que amassam semelhante fermento. Freqüentemente atacam as instituições e escarnecem das leis: o primeiro magistrado da nação é vítima de alusões torpes que revoltam."


São de José de Alencar estas nobres palavras de indignação e protesto, a um tempo, contra os desmando da imprensa e contra a covardia da opinião que se deixa avassalar por ela, atemorizada. Há cerca de quarenta anos que foram escritas, e, todavia, desenham, com uma fidelidade que entristece, a fisionomia moral da nossa época. Como naquela fase da monarquia, hoje, em pleno regime democrático, não se deu um passo na obra da moralização da imprensa e presenciamos as mesmas cenas aviltantes dos desgarros da licença. Dignidade, brio, honra, tudo quanto possa haver de mais santo no sentimento humano, vai sendo infamemente desrespeitado pelos corsários da imprensa! E, no entanto, onde ir buscar a desafronta?

Na memorável conferência, a que me tenho referido, disse Lafite que o problema da repressão da tirania do jornalismo se impõe a todos os espíritos. Isto quanto à França, onde, aliás, para suprir a ineficácia da lei, existe a instituição do duelo, que, se não é um corretivo completo, serve ao menos de desafogo à honra ofendida. Mas, aqui, onde não se implanta o duelo, ou antes, onde o duelo é um ridículo, que é que resta o desagravo?

O preclaro Alexandre Herculano, tratando de mostrar que a liberdade de imprensa, como as demais liberdades, deve ter uma medida, a fim de que seja útil e não degenere em licença para infamar, e condenando formalmente os extremos das opiniões, que são igualmente absurdos, quando sustentam a abolição da imprensa, como quando permitem imprimir tudo, aplica estes conceitos aos minotauros da pena:


"Outra prova de quando é verdadeira a teoria dos extremos é que a liberdade sobeja nos escrevedores se converte numa verdadeira escravidão para os outros. Quando um homem se arvorou a si mesmo em censor público, quando, de dia e de noite, ele e os seus cúmplices andam devassando, para pôr ao olho do sol, os segredos das famílias, as ações irresponsáveis dos particulares, quando condena e infama as aparências, quando torce e adultera fatos, quando de possibilidades faz probabilidades, e das probabilidades certezas, quando lança ao público tudo quanto sonhou de pois de farto e embriagado com o preço das lágrimas alheias, e tudo quanto ouvia a boca de outros caluniadores, que de propósito e para fins particulares semeiam o escândalo; quando, enfim, um tal homem mais infame do que o carrasco, porque assassina sem processo, porque assassina culpados e inocentes, porque assassina na alma e não no corpo, porque assassina por dinheiro e sem que ninguém o obrigue a assassinar; quando um tal homem, digo, chama todos os dias o povo a aplaudir o espetáculo mais imoral que ao povo se pode apresentar, e para o embrutecer de todo lhe te perenemente aberto um circo como o dos antigos romanos, em que ele e outras feras devoram os justos, e consumam, entre risos, verdadeiros martírios, onde está já aí a liberdade dos cidadoas?"


Estes testemunhos, a que venho recorrendo, mostram que não se trata senão de uma doença social que aparece em todas as épocas e flagela todos os povos, indistintamente, com os mesmos caracteres e produzindo os mesmos terríveis estragos. E são irredutíveis, na hediondez de sua lógica de salteadores, os profissionais da injúria e da calúnia. "Eles não querem a paz, porque só após a guerra vem o saque, não acatam a virtude, porque nunca lhe saborearam as delícias, chamam ladrão a todos para se consolarem com a honrada companhia em que se meteram".

É bastante. Está demonstrada a uniformidade geral dos conceitos. Vem de molde, entretanto, referir o que passou na sessão da Câmara francesa, de 29 de maio de 1903. Certo jornal publicara uma carta em que se dizia o Sr. Camilo Pelletan, ministro da Marinha, havia recebido uma soma considerável para combater a eleição de um candidato, em proveito daquele donde lhe vinha grossa recompensa. A calúnia, depois de ter feito o seu curso através da imprensa difamadora, chegara ao Parlamento. Pelletan sobe imediatamente à tribuna e a combate com dignidade. Centenas de milhões lhe têm passado pelas mãos, e, no entanto, se naquele momento fosse atingido por uma moléstia, teria de recorrer à afeição dos seus. Conclui o nobre ministro:


"Conheço bem as coisas para saber que estou nas melhores condições para ser atacado. Estamos numa época em que são os ladrões que gritam: ? Pega, ladrão!"