Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Canibalismo animal

Comissão de Cidadania e Reprodução (*)

 

Depois de ficar em cartaz durante todo o ano passado, o item cultura sexual cedeu espaço a outros temas no noticiário sobre saúde reprodutiva. Sob o impacto do caso Clinton-Lewinsky, em 1998, a cobertura esteve influenciada pela quantidade de espaço dedicado ao tema. Passado o furacão, já é possível avaliar suas conseqüências: caiu de 68% para 42% o espaço dedicado à cultura sexual.

Além da redução do noticiário sobre o tema, registram-se mudanças significativas no noticiário dos seus subtemas: o espaço dedicado a assédio sexual caiu de 57% para 0,2%, mostrando que o caso Clinton influenciou tanto na cobertura como na falta de interesse sobre o assunto depois de passada a avalanche. Outros três subtemas registram, no entanto, aumento significativo no noticiário:

Sexualidade dobra o espaço ocupado ? “Igualdade é ter liberdade para escolher”, matéria da Folha de S.Paulo, e “Sexo aos 50”, publicada em O Globo, ocupam respectivamente o terceiro e o quinto lugares entre as cinco maiores matérias do período. São exemplos de como o tema passou a ser tratado a partir de uma pauta mais ligada ao cotidiano e menos ao excepcional.

Pedofilia também cresce em espaço ? Resultado da intensa cobertura à repressão da pedofilia na Internet. Destaque para a denúncia da Folha (“Site desnuda mundo dos boylovers”) e maior espaço dedicado ao tema.

Violência cresce proporcionalmente ? Mas cai para a metade da centimetragem ocupada no quadrimestre anterior, espaço ainda insignificante para refletir todas as questões que envolvem a violência contra a mulher. A cobertura sobre o tema em geral é feita nas páginas policiais, com destaque para os casos que culminam em morte ou megacasos, como o do Maníaco do Parque, que de escândalo no ano passado virou nota de pé de página no primeiro quadrimestre.

Em contrapartida, subiu de 10% para 25% o noticiário sobre reprodução, especialmente nos itens fisiologia da reprodução (de 5,7% para 18,2%) e gravidez (de 16,7% para 22,3%). Mais espaço, no entanto, não foi sinal de mais reflexão. No item reprodução assistida, por exemplo, muitas perguntas estão sem resposta: a maioria delas sequer entrou na pauta da imprensa especializada. Os poucos artigos são traduzidos do exterior e não incorporam ao debate vozes brasileiras, e os estudos acadêmicos e publicações científicas predominam como fonte de notícias (19,8% e 16,7%, respectivamente, contra 4,9% de matérias de opinião). Apesar da velocidade das transformações, ainda há tempo para refletir e a CCR acredita estar contribuindo para o debate quando pergunta: “Pode a perplexidade substituir a reflexão?”. Não, não pode.

Tratamento convencional

As matérias sobre saúde reprodutiva e sexualidade tiveram espaço: ocuparam um o equivalente a 110 páginas de jornal, ou 33 mil centímetros/coluna, o que representa uma queda significativa em relação a 1998, quando os quadrimestres tiveram 242 páginas de janeiro a abril, 370 de maio a agosto e 265 de setembro a dezembro.

Mais do que indicar menor volume ? em parte decorrente da redução de páginas dos jornais imposta pela alta do dólar ?, os resultados devem ser lidos à luz dos assuntos que determinaram a magnitude do espaço ocupado nos períodos anteriores. Assédio sexual é o exemplo que mais chama a atenção: enquanto o caso Clinton esteve em evidência, foi assunto e desdobrou-se em muitas pautas; depois de excluído o caso, não mais se ouviu falar na questão. Será que o assédio sexual acabou? Não, na vida real certamente não, mas no noticiário o tema desapareceu por completo no quadrimestre.

A mesma contabilidade pode ser feita para violência. Enquanto a polícia perseguia o Maníaco do Parque, o tema mereceu 20 páginas de jornal (6.566 cm/col.), número que caiu para sete páginas (2.476 cm/col.) entre janeiro e abril deste ano. A violência contra a mulher diminuiu? Não. Impotência esteve em voga enquanto o Viagra era novidade, mas já caiu de novo no corriqueiro tratamento cotidiano. Anticoncepção foi importante quando do escândalo das pílulas de farinha; agora está de volta ao rotineiro tratamento convencional.

Quando pressionada por um grande acontecimento, a mídia reage, inventa, desdobra, tenta sustentar o tema, às vezes acerta, às vezes erra, mas dá tratamento de luxo. Passado o furacão, seja ele qual for, a imprensa volta ao feijão-com-arroz do dia-a-dia: muitos assuntos descontinuados, fragmentados, picadinhos em notas curtas ou matérias desconexas do todo, de onde deveria vir o sentido de cada parte.

(*) A CCR tem site em <www.ccr.gov.br>