Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carlos Heitor Cony

MEMÓRIA, BILLY WILDER

"Billy Wilder", copyright Folha de S. Paulo, 01/04/02

"Sexta-feira passada, almoçava em Recife com duas amigas, amigas jovens para um homem entrado em anos, e o assunto era cinema. Quiseram saber qual o meu diretor preferido na seara americana. Com todo o respeito pelo Orson Welles, pelo John Ford, pelo Frank Capra e pelo Woody Allen, citei Billy Wilder.

Falei do meu filme predileto, que hoje coloco, sabendo o que faço (poucas vezes sei o que estou fazendo), acima de ?Cidadão Kane? e de qualquer outro clássico do cinema americano.

Não, não é aquela abominável comédia, tão incensada pelos críticos, com Marilyn Monroe tocando um cavaquinho, Jack Lemmon e Tony Curtis vestidos de mulher e aquela piada final do Boca Larga.

?Sunset Boulevard? (?Crepúsculo dos Deuses?), de 1950, cresce cada vez mais como o melhor filme feito fora da Europa. Billy Wilder era europeu, e ninguém como ele tratou o sonho, a memória, o poder, o delírio, os equívocos daquela usina de deuses efêmeros que é o universo do cinema, paródia exagerada da própria vida.

Falando sobre uma aldeia, ele descreveu um mundo. Contando o drama daquela atriz decadente, glória do cinema mudo, e do roteirista medíocre, ambos dominados pela sinistra figura de um mordomo-chauffer, ex-diretor de cinema apaixonado por sua patroa, Billy Wilder tocou no universo de todos nós que, de alguma forma, sonhamos em ter a nossa chance, masturbamos o nosso passado e nunca sabemos determinar o começo do nosso crepúsculo, que começa exatamente quando a luz da aurora esquenta a nossa carne.

A cena de Gloria Swanson na grua de direção de Cecil B. de Mille, iluminada soberana de um instante, é, para mim, o logotipo maior do cinema como obra de arte.

Quando chegamos ao hotel, as moças me avisaram que Billy Wilder havia morrido, aos 95 anos de idade. Não senti pena. Senti orgulho de ter admirado um dos maiores artistas do nosso tempo."

 

"A falta que Billy Wilder nos fez – e fará", copyright O Estado de S. Paulo, 06/04/02

"Billy Wilder, que morreu na semana passada aos 95 anos, em Los Angeles, fez alguns dos filmes mais engraçados do cinema, cada qual mais revelador do ridículo humano. Nada demais, portanto, que, à distância e sem saber, ele fosse também o pivô de situações que pareciam saídas desses filmes. Uma delas aconteceu em Portugal, na semana seguinte à Revolução dos Cravos, que, em abril de 1974, derrubou a quase cinqüentenária ditadura salazarista.

Recolhidos os tanques, o novo governo começou a desmantelar a censura, uma das mais moralistas e odiosas da Europa. Primeira coisa a fazer: liberar os filmes que os censores do antigo regime tinham proibido o povo português de assistir. E quais eram esses filmes? Emmanuelle, Laranja Mecânica e O Último Tango em Paris, que eram os clássicos internacionais de todas as censuras da época, inclusive no Brasil? Sim. Mas, antes, era preciso liberar outros filmes longamente interditados. E foi assim que, na mesma semana, Lisboa pôde ver, pela primeira vez, dois filmes de Billy Wilder: Irma La Douce, que estava proibido na íntegra desde seu lançamento em 1963, e Quanto Mais Quente Melhor, de 1959, que só era exibido em Portugal com o corte da hilariante frase final, ?Ninguém é perfeito?, dita por Joe E. Brown para um Jack Lemmon vestido de mulher. Você não acredita? Pois acredite. Eu estava lá.

Irma La Douce, uma comédia sobre prostituição, estrelada por Shirley MacLaine, fora proibida porque, em Portugal de Salazar, ?não existia? prostituição – donde, segundo a cínica censura lusa, o povo ?não perceberia? o filme. (É claro que existia prostituição. Não às escâncaras, mas velada, e os locais de encontros eram casas de famílias que alugavam quartos para casais, algumas em plena Avenida da Liberdade.) O intolerável para os censores (e só os de Portugal, porque, no resto do mundo, o filme não teve qualquer problema) era que se fizesse chacota com um assunto que eles deviam achar muito sério. Quanto à frase final de Quanto Mais Quente Melhor, a censura a cortara porque, se Joe E. Brown sabia que Jack Lemmon era homem e ainda assim estava a fim de se casar com ele, é porque devia ser homossexual. E homossexualismo era uma coisa que Salazar (que morreu solteirão, aos 81 anos, em 1970) também ?não percebia?.

Wilder morreu 21 anos depois de ter feito seu último filme, que foi o precário, mas delicioso Amigos, Amigos, Negócios à Parte, de 1981. Tinha então 75 anos e, para os padrões da antiga Hollywood, já passara há muito da idade de se aposentar. Havia uma lei não escrita no cinema americano, segundo a qual 70 anos eram uma espécie de idade-limite para que o sujeito parasse de dirigir filmes e fosse pentear macacos. Alfred Hitchcock e Howard Hawks conseguiram meio que burlar essa lei, com Hitchcock fazendo seu último filme aos 77 (Trama Macabra, 1976) e Hawks, aos 74 (Rio Lobo). Mas John Ford teve de parar aos 70 (com Sete Mulheres, 1965), Frank Capra, aos 64 (com Dama por um Dia, 1961), e Orson Welles nunca mais terminou um filme depois dos 58 (Verdades e Mentiras, 1973). Todos continuaram vivos, saudáveis e lúcidos por muitos anos – só não podiam voltar à direção, porque nenhum estúdio financiava seus projetos e porque tinham se tornado pessoas de risco para as companhias de seguros.

Mas, num gesto de misericórdia, o estúdio com que esse ou aquele diretor tivesse alguma ligação não permitia que ele fosse para casa. Dava-lhe uma sala, um telefone e uma secretária, e o estimulava a ?trabalhar em roteiros?, com vistas a um futuro filme – filme esse que tanto o diretor como o estúdio sabia que não sairia. Fizeram isso com Hitchcock na Universal, com Vincente Minnelli na Metro e com Wilder na United Artists.

Wilder ia todo dia para o escritório, lia algumas sinopses, recebia um repórter ou um velho amigo, com quem ia almoçar ali perto, e tinha o resto do dia para amargurar-se. Mas sua cabeça funcionou a mil até o fim. Para se ter uma idéia, A Lista de Schindler, filme de Steven Spielberg em 1993, deixou de ser um filme de Billy Wilder por questão de dias – Spielberg comprou antes os direitos do livro. Mas é quase certo que a United não o deixaria rodá-lo: o assunto era melindroso, grave demais, para ser confiado a um velho inconfiável como Billy.

A prova de que o maravilhoso mecanismo de que se compunha sua cabeça continuava funcionando, com todas as rodinhas encaixadas – memória, cultura, inteligência e humor -, é o livro Conversations with Wilder, que Cameron Crowe publicou em 1999. Compõe-se de 372 páginas, formato gigante e letrinha miúda, de transcrições literais das longas entrevistas que Crowe fizera com ele nos dois anos anteriores. Sem nenhuma ordem cronológica, sem consultar notas, reagindo apenas às perguntas do entrevistador, Wilder repassou sua vida e carreira, descreveu em detalhes filmes que não via há 50 anos (ele nunca manteve cópias de seus filmes em casa, apenas os roteiros) e mostrou-se atualizado ao dar opiniões sobre filmes recentes (Forrest Gump, de Robert Zemeckis, 1994, era o melhor dos últimos anos, na sua opinião).

Criticou os Oscars (?Qualquer ator que interprete um corcunda tem mais chance de ganhar do que um galã?), falou bem e mal de colegas (?William Wyler era um fenômeno – nunca abriu um livro em toda a sua vida!?) e confessou intimidades (?Sempre procurei não ter casos com minhas estrelas – só com as dublês delas?). E era, então, um homem com mais de 90 anos.

Mas nunca mais o deixaram fazer um filme. É verdade que dois motivos podem ter influenciado. Primeiro, a morte de seu co-roteirista I.A.L. (Izzy) Diamond, em 1988, aos 68 anos. Juntos, eles tinham escrito onze filmes, todos ótimos, começando por Amor na Tarde, em 1957, e logo gerando duas obras-primas: Quanto Mais Quente Melhor e Se Meu Apartamento Falasse (1960).

Com Diamond, Wilder refinou ainda mais sua arte do diálogo – o que, em seus primeiros filmes, sempre se poderia atribuir a parceiros como Raymond Chandler (em Pacto de Sangue, 1944) ou Charles Brackett (em Crepúsculo dos Deuses, 1950, e vários outros). Isso porque Wilder, nascido em Viena, não falava inglês ao chegar aos EUA em 1934, e passou seus primeiros anos ligado à comunidade alemã de Hollywood, comandada por Ernst Lubitsch. Precisava de parceiros ultra-americanos, como Brackett ou Chandler. Mas é curioso como, longe de Wilder, nenhum destes teve uma carreira brilhante como roteirista.

Em Diamond, Billy encontrou sua alma-gêmea – e, curiosamente, Diamond também não era americano, mas romeno. É possível que a falta de um parceiro de confiança tivesse feito Wilder desistir de muitos projetos, antes de submetê-los à United.

O outro motivo era a natureza desses projetos. Um deles se chamaria Le Pétomane, nome artístico de Joseph Pujol, um artista do Moulin Rouge de Paris do começo do século 20, cuja especialidade era – desculpe – peidar música. (Você pode imaginar o que Le Pétomane significa.) Pujol não expelia gases, e sim o próprio ar que aspirava, e, com isso, conseguia solar as grandes canções da época, como Frou-Frou e Fascination, além, é claro, do seu maior sucesso: La Marseillaise. Antes que me esqueça, Pujol existiu de verdade. Nunca se sabia quando Wilder estava falando a sério e será que ele realmente acreditava que a United o deixaria fazer este filme? Hoje, depois de todos os horrores produzidos pelo cinema nos anos 90, a idéia parece até singela.

Billy levou os últimos anos sendo entulhado de prêmios, honrarias, medalhas e até um Oscar especial (como se já não tivesse conquistado vários, daqueles para valer). Nenhum diretor americano do período clássico ganhou tanto prestígio nos últimos 20 anos, depois de ter encerrado a carreira. Hitchcock também teve seu prestígio aumentado pós-morte, mas, com Billy, foi diferente, porque ele NUNCA FOI uma unanimidade em seu tempo. Não me lembro de nenhum crítico importante do passado que o colocasse no mesmo panteão que, por exemplo, Chaplin, Welles, Ford, Hawks, Fellini ou Kurosawa. Para a maioria, ele era um bom diretor comercial, talvez um pouco acima da média – quando acertava. E, a partir de 1960, sofreu uma virulenta campanha vinda da revista Cahiers du Cinéma, que lhe negava a condição de ?autor? – campanha essa que encontrou eco junto aos críticos americano adeptos da teoria, como Andrew Sarris. Todos malhavam ou menosprezavam seus filmes. É verdade que Wilder não ficava quieto e, em inúmeras entrevistas, dava o troco, desancando a Nouvelle Vague e chamando Jean-Luc Godard de diletante. Na verdade (como admitiu para Cameron Crowe no livro), Wilder era amigo de Louis Malle, admirava François Truffaut e gostava de Acossado, de Godard (mas só deste). Sua restrição à Nouvelle Vague, além do diletantismo, era a de não achá-la nova – para ele, os franceses e alemães dos anos 20 já tinham feito tudo aquilo.

Mas, se Wilder não era um ?autor?, quem mais seria? Há uma linha nítida de ?pensamento? correndo por trás de quase todos os seus filmes, tanto os dramas, como Pacto de Sangue, Crepúsculo dos Deuses, o genial A Montanha dos Sete Abutres (1951) e Fedora (1978), quanto as comédias, como O Pecado Mora ao Lado (1955), Quanto Mais Quente Melhor, Beija-me Idiota (1964), Uma Loucura Por Um Milhão (1966), A Primeira Página (1974) e os filmes que eram ao mesmo tempo drama e comédia: Inferno 17 (1952), Testemunha de Acusação (1958), Se Meu Apartamento Falasse e Avanti… Amantes à Italiana (1972). Em todos estes, a mesma certeza da desonestidade essencial do ser humano, o mesmo pessimismo quanto a alguma qualidade que o redimisse e, por isso mesmo, nenhuma necessidade de condená-lo. Bastava expô-lo ao ridículo. É por isso que mesmo os dramas mais pesados de Wilder tinham humor. Em A Montanha dos Sete Abutres, Kirk Douglas quer obrigar Jan Sterling a ir à igreja, para que ela finja que se preocupa com seu marido soterrado na mina. ?Ajoelhar faz correr o fio de minhas meias?, responde Jan.

Mas os filmes de Wilder ?melhoraram? tanto nos últimos 20 anos que até Andrew Sarris foi, humildemente, pedir-lhe perdão por tê-lo esnobado por tanto tempo. Billy é, hoje, dos diretores da antiga, o que mais empolga os jovens cinéfilos. Eles se entusiasmam com a hilariante virulência do seu ceticismo, o brilho de seus diálogos e com suas soluções de gênio para certas situações (exemplo: Jack Lemmon agitando as maracas em Quanto Mais Quente Melhor, para que o espectador possa rir entre as frases). E por que será que os jovens se identificam com o ceticismo de Wilder? Talvez porque o mundo que eles conhecem justifique amplamente esse ceticismo. Que pena que o obrigaram a encerrar a carreira – Wilder teria muito a nos dizer sobre o que aconteceu nesses 20 anos."

 

MONDE & NYT, JUNTOS

"Franceses terão ?Le Monde? e ?The New York Times? juntos", copyright O Estado de S. Paulo, 06/04/02

"A partir de hoje, duas publicações históricas serão vendidas juntas nas bancas francesas. Os leitores do Le Monde receberão com seu exemplar tradicional de sábado um suplemento de fim de semana com 12 páginas de artigos do New York Times. Em inglês, o suplemento circulará apenas com publicidade francesa e reunirá os principais artigos de cada semana do NYT.

Segundo o editor-chefe do Le Monde, Jean-Marie Colombani, a idéia surgiu naturalmente depois da demanda por noticiário norte-americano que se seguiu aos atentados terroristas de 11 de setembro. ?Ao anunciar a novidade, Le Monde responde às expectativas dos leitores atentos ao que ocorre no outro lado do Atlântico?, disse Colombani. ?É indispensável aprender mais sobre as opiniões, as análises e as opções norte-americanas.?

Na opinião da cúpula do jornal francês, que historicamente sempre adotou uma linha ideológica diferente da do New York Times, a barreira da língua já não existe. ?O inglês é nosso segundo idioma?, diz Colombani."