Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Carlos Heitor Cony

CIDADE DE DEUS

“Versão nova da Pietà na cidade sem Deus”, copyright Folha de S. Paulo, 1/11/02

“Em recente comentário na CBN, espantei alguns ouvintes declarando que não havia visto o filme ?Cidade de Deus? nem pretendia vê-lo, a menos que surgisse uma imposição profissional que me obrigasse a isso. Em Gramado, não faz muito, vi alguns filmes que nunca teria visto por vontade própria.

Conheço este tipo de reclamação. Os que gostam de filmes violentos acusam os que não gostam de avestruzes, que mergulham a cabeça na areia para fugirem da realidade. Desejam um mundo cor-de-rosa, com flores e bichinhos à Walt Disney cantando a ?Dança das Horas?, de Ponchielli, ou a ?Valsa das Flores?, de Tchaikovski.

O argumento que os cultores de filmes assim brandem contra os alienados que não gostam de porrada nem de tiros no cinema e na vida real é antigo e boçal: não adianta fechar os olhos à dura realidade de um mundo cruel, de uma sociedade violenta, responsável pela criação dos monstros que nos matam, nos assaltam, nos estupram etc. etc. Este tipo de escapismo -negar a realidade que nos circunda- é uma das causas da própria violência.

Acontece que, queiramos ou não, somos consumidores e muitas vezes vítimas dessa realidade, não precisamos estetizá-la nem maquiá-la de obra de arte, com boa iluminação, boa interpretação, boa produção, enfim. Ela é melhor -se é que a violência pode ser melhor e mais real- na vida diária que vivemos. Mais emocionante até. Não tem a pretensão moral e didática de condená-la nem de torná-la emblemática. Ela existe realmente, produzida sem o patrocínio de banco ou de órgão público, não começa nem acaba quando sentamos na sala dos cinemas. Esta violência é que nos devia ensinar alguma coisa e motivar a sociedade seriamente, e não culturalmente, muito menos artisticamente.

Para dar o exemplo pessoal. Um cara passou pela avenida em que moro, sem ter nada o que fazer, deu um tiro na porta de vidro da portaria. Por acaso, o porteiro estava abaixado, arrumando uns embrulhos no chão. Se estivesse em sua posição habitual teria levado um tiro de 45.

Um colega de imprensa, demitido há tempos pelo corte de despesas (outra violência rotineira que nos ameaça), comprou um pequeno sítio perto de Araruama, onde tinha limoeiros e algumas galinhas de subsistência. Foi atacado por três garotos, a pauladas. O mais velho tinha 21 anos. Roubaram-lhe algumas galinhas e o deixaram morto, a cabeça esfacelada pelas pauladas.

Não vi isso no cinema. Como não vi em nenhum museu, em nenhuma casa de espetáculos, a versão século 21 da Pietà, que Michelangelo espalhou em Roma, Florença e Milão.

Não é a menina branca, branca como o mármore de Carrara, segurando o corpo crucificado do seu filho homem -sempre me impressionou, na Pietà romana, a menina-mãe segurando o corpo do filho mais velho do que ela, adulto e sacrificado.

Não precisei ir a Roma, Florença ou Milão para ver dor maior e mais verdadeira. Uma de minhas empregadas, que me atende nos fins de semana, negra, de grande dignidade, estava lavando a louça quando o telefone a chamou. Era uma ligação a cobrar: o marido, aos soluços, comunicou-lhe que haviam matado o filho único, de 18 anos. Um amigo dele, de 16, desentendeu-se com o rapaz por causa de um rádio portátil, a pilha se gastara, o aparelho fora devolvido com a bateria pifada, motivo mais do que suficiente para o tiro, para o tiro não, para os cinco tiros que o mataram.

Eu entrei na cozinha no momento em que ela recebia a notícia. Olhou para mim, quer dizer, desviou o rosto em minha direção, mas nada viu. Fosse eu o papa, o Dalai Lama, um tigre, um anjo ou um demônio, ela não me veria. Não veria nada, tentando lá dentro compreender o que acontecera com o filho, o que acontecera com ela, o que estava acontecendo neste mundo que alguns dizem ser de Deus, um Deus que deixa a bestialidade humana de um amigo matar o amigo por causa da pilha gasta de um rádio portátil.

Não houve choro nem ranger de dentes. Era uma dor muito verdadeira para ser repartida com o desespero. Eu a amparei como pude, custei a entender o que estava havendo, e, quando entendi, me lembrei das Pietàs de mármore que vi por aí, nos museus e nas igrejas do mundo.

O coração dela batia forte dentro do peito. Não era um peito de Carrara, compactado, mas um peito humano, feito de carne mesmo. Carne igual à minha, igual à de todos nós, última geração de uma carne inicialmente feita de barro por um Criador de Todas as Coisas.

Encurtando a história, tão curta história apesar de tudo, que não daria um flash de 30 segundos numa tela de cinema e TV: a vida continuou, para ela, para o marido, para mim, para a polícia -que consolou os pais da vítima dizendo que a vida é assim mesmo, está tudo perdido.

Vida que continuou a girar em cada casa, sem necessidade de um complicado aparelho estereofônico, última geração também, de uma indústria feita de tapes e chips, produzida com o patrocínio do refrigerante que faz bem e habilitada a ganhar um prêmio da Academia de Hollywood, numa cerimônia que o Zé Walter descreverá como a maior festa do século.”

 

NYT & HERALD

“?NYTimes? reforça império assumindo ?Herald?”, copyright O Estado de S. Paulo / The Guardian, 3/11/02

“Por incrível que pareça, para um jornal que só decolou porque seu fundador foi expulso da sociedade de Nova York – em direção a Paris – por urinar em uma lareira, uma certa gentileza tem sido a regra no International Herald Tribune. Por 35 anos, até a semana passada, as dinastias gêmeas do jornalismo americano – os Sulzberger, do New York Times, e os Graham, do Washington Post – deixaram de lado suas rivalidades para publicar uma seleção diária das notícias de ambos os jornais.

Para um certo tipo de americano na Europa, o Tribune – lançado por James Gordon Bennett, em 1887, como Paris Tribune, com noticiário próprio – tornou-se um produto profundamente romântico: um elo vital culto e literato com o chamado Novo Mundo. Mas não por muito tempo, ao que parece. Na semana passada, voltou a urinar em lareiras. No requintadíssimo mundo dos jornais americanos, separações não causam tantos atritos quanto o anúncio, na terça-feira, de que o Post, muito a contragosto, estava vendendo sua parte no Tribune para o Times por cerca de US$ 70 milhões.

O Post ficou de mãos atadas quando o publisher do Times, Arthur Sulzberger Jr., anunciou que, se o parceiro não vendesse sua parte, eles passariam a cortar progressivamente as injeções de verba no jornal e iriam, em todo caso, planejar uma edição internacional concorrente, minando sua parte no mercado.

?Essa decisão foi tomada com grande relutância e pouca escolha?, disse Don Graham e Len Downie, respectivamente publisher e editor do Post, numa circular para a equipe. ?Não havia condições de manter a sociedade com um parceiro relutante.? Coube a Caroline Mathis, vice-presidente do Times, a tarefa de tentar abafar a richa em público. ?Achamos que o International Herald Tribune se beneficiaria do total comprometimento de apenas um único proprietário?, disse ela.

O mais extraordinário, no entanto, não foi o fim da parceria, mas o fato de que durou muito. O Tribune vem perdendo dinheiro; o Post vem cada vez mais concentrando esforços em seus mercados domésticos.

Liderança – ?O Post é invejoso como o diabo?, diz uma fonte do New York Times. ?Enquanto têm uma boa cobertura nacional e internacional jornalisticamente, fora a economia, eles são um jornal regional. Nós temos abrangência nacional e estamos indo bem em cidades como São Francisco e Detroit.?

O Times, por outro lado, parece querer dominar o mundo. Já é um título nacional – o único título, com exceção do USA Today, que se encontra à venda com os jornais locais em um posto de gasolina do Iowa ou num motel no Wyoming. Em âmbito internacional, no entanto, enfrentou um problema: o Tribune forçou o Times a fazer um acordo limitando o número de cópias que poderia vender no exterior. Enquanto isso, edições internacionais do Financial Times e do Wall Street Journal cresciam. O Tribune estava no meio do caminho.

?Eles estavam de mãos atadas?, disse Alex Jones, ex-repórter do Times, co-autor de The Trust – livro sobre a dinastia Sulzberger – e diretor do Centro Shorestein, de Harvard. ?O Times nunca foi tão bem-sucedido antes na sua edição nacional como agora, seu prestígio nunca foi tão grande e eles se deram conta de que não podem se manter como o New York Times no resto do mundo se continuarem contrários a uma estratégia mais abrangente. Eles sentem que não podem abrir mão do mundo por causa de um acordo de cavalheiros entre dois sócios.?

O Post, em contrapartida, não teve escolha. Antes de Katherine Graham se tornar presidente da empresa em 1963, e antes do triunfante furo de Watergate, não figurava entre os principais jornais do país. Isso pode até fazer parte do passado, mas a penetração do jornal em âmbito nacional está na sombra do Times. Ainda assim, o Times alcança apenas cerca de 10% dos lares de Nova York; no Distrito de Columbia, o Post alcança cerca de 40%. O primeiro e mais óbvio sinal de ruptura na relação veio no ano passado, quando, sob ruidosas objeções do Post e do Tribune, o Times começou a publicar os próprios cadernos no Le Monde e em outros jornais europeus. ?Foi como levar um soco na cara?, disse Jones.

E isso, provavelmente, significou o começo do fim para o Tribune. ?Eu fiz uma aposta com alguém do New York Times de que eles iriam mudar o nome do Tribune – para algo como International New York Times ou coisa parecida – e, digamos, estou confiante de que não vou perder dinheiro. Por que fazer essa balbúrdia toda e não transformar isso em parte do Times??

Incertezas – Tom Rosenstiel, diretor de um projeto da Universidade de Columbia para a excelência em jornalismo, não tem tanta certeza de que a mudança é inevitável. ?Para a maior parte das cidades nos Estados Unidos, o Times é um segundo jornal e para os exilados americanos na França e Inglaterra as palavras Nova York não são necessariamente atrativas. O Herald Tribune é um jornal deles, mas eles não são de Nova York.?

Qualquer que seja a nostalgia atrelada ao Tribune, porém, certamente é ocasião para mudar, diz Gay Talese, outro ex-quadro do Times e cronista da história do jornal. ?Houve um tempo em que era um jornal romântico – quando Paris era uma capital romântica?, disse ele. ?Era a leitura diária dos exilados americanos. Quando os americanos viam Paris como a capital cultural do mundo, era o que se lia nos cafés. Ninguém queria falar com um americano, que provavelmente não saberia falar francês.?

Hoje em dia, no entanto, o Tribune às vezes é criticado tanto por seu preço – cerca de R$ 8, na Inglaterra – como por uma tendência de publicar as notícias com atraso. ?E Paris? Não é o centro de nada?, diz Talese. ?A aquisição do Times é a instituição romana conquistando o mundo. Mas, se isso significa melhor distribuição do jornal em Viena, deve ser bom.?”

 

ALFABETO LITERÁRIO

“Grande Loredano”, copyright O Estado de S. Paulo, 2/11/02

“Magnífico, é o único adjetivo justo para o livro de caricaturas do Cássio Loredano (cujo nome verdadeiro é Loredano Cássio, fiquei sabendo agora), Alfabeto Literário. Editora Capivara, apresentações de Millôr Fernandes e Pedro Corrêa do Lago, se não tiver na livraria faça um escândalo. São caricaturas de escritores nacionais e internacionais em ordem alfabética, e o Loredano – ou o Victor Burton, autor do projeto gráfico – abre cada seção com alguns escritores em volta da sua letra. Assim a parte dos ?As? começa com desenhos de Auden, Aristóteles, Apollinaire, Raymon Aron, Adorno e Jane Austen em torno de uma grande letra ?A?, a seção seguinte começa com Balzac, Benjamin, Bocaccio, Brecht, Baudelaire e Beckett, entre outros, ao redor de um ?B?, etc. E você fica pensando como seria se, em vez de rodeando suas letras, os escritores estivessem rodeando mesas de chá, ou de bar. Pode-se imaginar a conversa no grupo de Jean Cocteau, Joseph Conrad, Elias Canetti, Louis-Ferdinand Celine, Camilo José Cela, Italo Calvino, Albert Camus e Julio Cortázar. Mas que possível assunto teriam Rudyard Kipling, Franz Kafka, o japonês Yasunari Kawabata, Jack Kerouac, Milan Kundera e o poeta grego Kavafis? Na mesa de Naipaul, Neruda, Nabokov e Nietzsche certamente sairia briga. Na de Freud, Scott Fitzgerald, Max Fritsch, Foucault, Flaubert e Faulkner, talvez mais do que em qualquer outra, valeria a pena ter um gravador ligado. Na de Dashiel Hammet, Hermann Hesse, Hemingway, Aldous Huxley e Patricia Highsmith você pode ter certeza de que a bebida não seria chá. E na de Walt Whitman, Tennessee Williams, Oscar Wilde e Edith Wharton esta última pelo menos não precisaria se preocupar com assédio sexual.

Numa terra de grandes caricaturistas, Loredano é um dos maiores. Se o humor é a arte do exagero e a caricatura é a arte da deformação, o que Loredano faz é o exagero do exagero, a deformação depurada a tal ponto que fica exata como um retrato acadêmico. Veja a caricatura do Lewis Carroll no livro. No seu texto de apresentação, o Millôr busca o motivo das extremas deformações da figura pelo Loredano, e escreve: ?A explicação é evidente se fixarmos detalhe essencial de sua biografia. Filho de um oficial de cavalaria, Loredano desde cedo se sentiu obrigado a desmontar o ser humano.?”