Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carolina Juliano e Débora Rubin

SÍTIO DO PICA-PAU AMARELO

"Senta, que lá vem mais história", copyright Valor Econômico, 6/09/01

"Na primeira semana de outubro, ?Sítio do Pica-Pau Amarelo?, clássico da literatura infantil de Monteiro Lobato (1882-1948), volta à televisão e à programação da TV Globo. Atualizado e com um elenco repleto de estreantes, o novo ?Sítio? não traz quase nada das duas versões já imortalizadas pelo veículo. A primeira estreou quase simultaneamente à televisão brasileira, em 1952, na TV Tupi. A segunda, exibida diariamente pela Globo e pela TV Educativa do Rio de Janeiro (TVE), de 1977 a 1986, vai agora virar um livro de memórias.

?Quando os Rostos se Iluminam – A História do Sítio do Pica-Pau Amarelo na TV?, é o título provisório das 80 páginas já escritas pelo diretor Geraldo Casé e por um dos principais roteiristas da produção, Wilson Rocha. O livro vai contar as histórias que envolveram a adaptação do ?Sítio? para a televisão, as dificuldades enfrentadas com a falta de recursos e parte dos segredos que tornaram o seriado um sucesso que permaneceu dez anos no ar.

Casé, pai da Regina, é também o pai do projeto. Sob sua tutela, a produção teve uma cartela de roteiristas renomados, que incluía Marcos Rey, Paulo Afonso Grisolli e Benedito Ruy Barbosa. Foi exibida de segunda a sábado e se infiltrou, sem pedir licença, no cotidiano de crianças e adultos.

Os tempos eram outros, a televisão não era tão competitiva. Tudo isso foi determinante para a realização da segunda versão do ?Sítio?. A Globo, na época liderada por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, entrou com o elenco. A TVE, que era dirigida por Casé, arcou com a produção. Só assim seria possível viabilizar um projeto gigantesco que levou mais de um ano de estudos e contou com uma equipe de pedagogos da Universidade de Campinas (Unicamp) para fazer a adaptação ligüística.

Geraldo Casé comandou o ?Sítio? do início ao fim. Foi ele quem moldou os rostos de Narizinho e Pedrinho que estigmatizaram principalmente os atores Júlio César Vieira e Rosana Garcia, os primeiros a dar vida aos personagens. Júlio César, inclusive, desistiu da carreira de ator tamanha a exposição que teve com Pedrinho. Dona Benta virou Zilka Salaberry – ou vice-versa – também nas mãos de Casé. A voz inconfundível de André Valli até hoje soa como a do sábio Visconde de Sabugosa.

A intimidade do diretor com esses personagens é tão grande que eles merecem lugar de mais destaque do que seus familiares nas paredes de seu escritório de diretor artístico de Relações Internacionais da TV Globo, posto que ocupa hoje. ?As fotos de Jacira Sampaio, que interpretou Tia Nastácia, e de Samuel Santos, que viveu Tio Barnabé, foram as únicas que esmaeceram?, conta um Casé saudoso, sugerindo que o tempo se encarregou de sinalizar a morte dos dois.

O livro, que deverá ser lançado em novembro pela editora Expressão e Arte, vai contar a história da produção do projeto do ?Sítio do Pica-Pau Amarelo?, desde a sua concepção. ?Queremos relatar principalmente a parte de adequação, de como foi cuidadoso o projeto em relação ao que tinha de ser dito a essa audiência tão específica, uma faixa etária muito delicada?, conta Casé.

?Quando os Rostos se Iluminam? irá detalhar o trabalho da equipe pedagógica liderada por Maria Helena Silveira, que elaborou um material didático em parceria com o Ministério da Educação e Cultura (MEC) para levar a obra de Lobato às salas de aula das escolas públicas. Mas o MEC acabou sem recursos para levar o projeto adiante.

A grande preocupação da equipe era atualizar o ?Sítio? mantendo as características de cada personagem. ?Cada um tem suas verdades: a do Visconde é a da erudição; a mítica e a folclórica estão com Barnabé e Nastácia; Dona Benta é o conhecimento geral e Emília é a contestação de tudo?, explica o diretor. ?A boneca de pano é o núcleo. Emília é a consciência de Lobato.?

Nas duas produções, Emília foi interpretada por atrizes experientes como Lúcia Lambertini, Dirce Migliaccio e Reny de Oliveira. Na nova produção da Globo, a contestadora boneca será vivida pela atriz Isabelle Drumond, de apenas sete anos. Um desafio.

O mais saboroso do livro de Casé e Rocha são, no entanto, os capítulos que contam os bastidores da produção. Casé coleciona histórias engraçadas, imprevistos e até um drama sobre o ator que viveria Monteiro Lobato, mas que antes disso foi parar num manicômio.

Joseph Guerreiro foi fazer uma gravação em São Paulo. Na volta, parou em um bar para beber. ?Ele tomava seus gorós. Tomou umas, deitou no banco na rodoviária e dormiu?, lembra o diretor. Enquanto dormia, o ator foi assaltado e ficou sem os documentos. Quando um policial tentou acordá-lo, Guerreiro esperneou e afirmou ser Monteiro Lobato. Acharam que ele era louco e o levaram para o hospício. O ator ficou desaparecido por meses até que a equipe do ?Sítio? colocou sua foto na TV. ?Uma enfermeira o reconheceu e falou: ?Puxa vida, não é que ele é mesmo o Monteiro Lobato?, conta Casé.

O local de gravação do seriado era próximo à cidade do Rio de Janeiro. Um sítio na Barra de Guaratiba (o novo será rodado na Ilha de Guaratiba), onde já havia uma casa que foi remodelada para ter as características da fazenda do interior de São Paulo descrita nas histórias de Lobato.

O jardim da casa do ?Sítio do Pica-Pau Amarelo? da TV foi projetado pelo arquiteto Roberto Burle Marx. Um curral foi construído para abrigar o Burro Falante e a Vaca Mocha – que ficava agitada toda vez que o ônibus que levava o elenco se aproximava do sítio. ?Foi uma relação tão intensa entre todo mundo que até a vaca ficou amiga da Zilka Salaberry?, conta Stela Freitas, que fazia a Cuca.

A produção era artesanal. Os atores encaravam o calor carioca dentro e fora de estúdio. Quando não estavam no sítio, gravavam na Cinédia, onde não havia ar-condicionado. No começo não tinha câmera para externas e a equipe carregava os equipamentos pesados. A improvisação era tanta que, no episódio ?Reino das Águas Claras?, por exemplo, o fundo do mar foi feito com grotescos pedaços de plástico e tiras de papel crepom.

Este episódio será o primeiro da nova edição do seriado e o fundo do mar certamente será reproduzido com os recursos de computação gráfica. A tecnologia também dará um jeito na perna do Saci. No ?Sítio? anterior foram necessárias duas pessoas para fazer o personagem folclórico. O baiano Genivaldo da Silva não era ator, mas foi escolhido por ter apenas uma perna. Como não conseguia decorar o texto, contrataram o ator Romeu Evaristo. ?O Saci que saltava na mata era ele, mas quem interpretava era eu?, lembra Evaristo.

Apesar dos recursos escassos, a intensão era nobre. A qualidade estava sempre em primeiro lugar. ?Fomos presunçosos?, diz Casé. ?A melhor trilha sonora que já se fez foi a do Sítio?. Foram encomendadas canções a Ivan Lins, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico Buarque, Sérgio Ricardo e Gilberto Gil.

Todos os envolvidos são unânimes em atribuir o sucesso do ?Sítio? justamente à forma artesanal de produção. O clima, lembram, era o de uma grande família. ?Queria fazer coisas novas, mas foi sofrido deixar as pessoas?, lembra Rosana Garcia.

A substituição dos atores que interpretavam Pedrinho e Narizinho era inevitável, porque as crianças cresciam. Júlio César chegou a fazer o personagem de joelhos, porque já estava mais alto que o Visconde. Os demais duravam mais tempo. Do núcleo principal, Dona Benta, Tia Nastácia, Tio Barnabé, Visconde e o Saci, foram interpretados sempre pelos mesmos atores.

Zilka Salaberry confessa que no início não gostou da idéia de interpretar a serena vovó, pois era muito extrovertida. ?Estava acostumada a fazer bruxas e rainhas más?, lembra. Mas incorporou a personagem e a moldou. ?Nos desenhos, ela é miudinha e cinzenta. Eu a tornei mais feliz e rosada, mais saudável.?

O paulista Samuel Santos (Barnabé), durante os dez anos de programa, morou num camping no Rio, pois não tinha dinheiro para viver na cidade. Stela Freitas pensou voltar para São Paulo quando o aluguel pesou. ?Casé não deixou e me colocou para morar com a filha dele, a Regina?, lembra.

Geraldo Casé era meticuloso com seu projeto. Ele lembra, com orgulho, que uma das condições que impôs à Globo quando apresentou a idéia a Boni foi a de que não deveria entrar merchandising no programa. Isso nos idos dos anos de 1970. ?Todos nós do ?Sítio? éramos avessos à propaganda?, diz. ?Hoje isso não existe. Tudo exige merchandising.?

Não se sabe se a nova versão vai abusar desse recurso, como é feito em novelas, mas já é certo que vai virar marca de muitos produtos. Dos 350 produtos chancelados que a Globo Marcas possui atualmente, 150 são do ?Sítio do Pica-Pau Amarelo?, antes mesmo do programa estrear.

Dentro da trama, as histórias de Lobato também acompanham as mudanças dos tempos. Dona Benta, que será vivida por Nicete Bruno, vai conversar com seus netos via internet e a Tia Nastácia, Dudu Moraes (ex-Frenéticas), vai sapatear e cantar na cozinha. Tais características podem assustar um pouco o público que cresceu à sombra das bananeiras do sítio da Barra de Guaratiba. Mas podem ser vistas também como atualizações necessárias. ?A obra de Lobato tem de ser atualizada?, comenta Casé, que não participa do novo projeto. ?O que não pode é modernizá-la, mudar as características de cada personagem.?

A nova versão de ?O Sítio do Pica-Pau Amarelo? foi adaptada pelos roteiristas novatos Luciana Sandrone, Chico Lobato, Toni Brandão e Mariana Mesquita. A direção é do núcleo de Roberto Talma. Os episódios terão 12 minutos e serão exibidos dentro do programa infantil ?Bambuluá?.

A obra de Lobato pertence à editora Brasiliense desde 1947, quando foi feito um acordo entre o escritor e o já falecido Caio Graco Prado, dono da editora. A Brasiliense não pretende reeditar o clássico em função da nova versão global, mas prevê um aumento de vendas."

 

"Primeira versão ficou 13 anos no ar", copyright Valor Econômico, 6/09/01

"Em 1952, quando a televisão brasileira ainda engatinhava, os personagens do ?Sítio do Pica-Pau Amarelo?, de Monteiro Lobato, apareceram pela primeira vez personificados. A escritora Tatiana Belinky, que era amiga de Lobato, escreveu mais de 350 capítulos baseados na obra infantil para a TV Tupi. Foi a primeira adaptação literária da história da televisão brasileira.

No primeiro elenco do ?Sítio? estavam Lúcia Lambertini (Emília), Edi Cerri (Narizinho), David José (Pedrino), Rubens Molino (Visconde) e Leonor Pacheco (Dona Benta). A atriz que interpretava Tia Nastácia era Benedita Rodrigues. Não era uma mulher conhecida do público, mas havia sido criada na casa dos Lobato. ?Conheceu o escritor e conviveu com ele. Imagine o que isso significou para a interpretação?, conta Tatiana.

Em forma de teleteatro, o programa era apresentado uma vez por semana e ficou no ar por 13 anos. ?As dificuldades eram enormes, não havia recursos, mas fazíamos de tudo?, conta Edi Cerri. ?Para fazer o fundo do mar do ?Reino das Águas Claras? colocamos um aquário de verdade em frente de uma câmera e atuávamos atrás. No vídeo, apareciam os peixinhos na nossa frente, com bolhinha de ar e tudo.?

Edi nunca foi substituída. Viveu a Narizinho até o fim porque era pequena e parecia uma criança. ?O único problema é que depois demoraram para acreditar que eu podia fazer papel de adulto?, conta.

O programa mereceu horário nobre e não era dirigido só ao público infantil. ?Agradava a todos porque era uma adaptação inédita em um veículo novo?, lembra Tatiana. ?Mas acredito que fez tanto sucesso porque era uma produção cuidadosa. Tínhamos tempo para ensaiar.?

Tatiana Belink diz que a história de Monteiro Lobato sempre será atual. ?Ele é o pai de toda a literatura infantil brasileira. Tudo começou com ele?. Mas a escritora não acredita que a obra possa ser adaptada de qualquer jeito. ?Uma criança não é capaz de interpretar Emília?, diz, referindo-se à atriz Isabelle Drumond, que viverá a boneca na nova produção da Globo. ?A Emília é a própria consciência de Lobato, é preciso interpretá-la e não só dizer o texto.?

A escritora assistiu à segunda adaptação (de Geraldo Casé), e confessa que não gostou de imediato. ?Depois de alguns episódios eles acertaram. Foi quando Marcos Rey integrou a equipe de roteiristas?, diz. ?Notava-se que existia ali alguém que realmente entendia de literatura infantil. Rey soube interpretar o senso de humor de Lobato.?

Depois do Sítio, a equipe de Tatiana fez outras adaptações literárias. Houve uma série de romances baseados na literatura russa, alemã, inglesa e brasileira e transformados em minisséries. Tudo isso era desenvolvido com o objetivo de promover a literatura e a leitura. ?Todas as peças começavam com um narrador dando o nome da obra, do autor e lendo o início do livro?, conta a escritora. ?No final, o narrador voltava e lia o fim do livro. Foi a coisa mais importante que já fiz na minha vida.?"

    
    
                     

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