Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Cassiano Elek Machado

CULTURA DO MEDO

“Vende-se medo”, copyright Folha de S. Paulo, 13/12/03

“Em 1938, com um pequeno grupo de atores, parcas trucagens sonoras, um texto de ficção científica e as rádios CBS Orson Welles levou milhões de americanos a um desespero ?incrível Hulk?.

Redondos 60 anos após, um sociólogo da Califórnia constatou: é, os marcianos não chegaram, mas o pavor que eles causaram nesse evento isolado dos anos 30 está cada dia mais corriqueiro.

No livro ?Cultura do Medo?, Barry Glassner, 48, chegou à conclusão de que a América vivia uma espécie de síndrome do pânico. Os americanos sofriam cada vez mais por motivos menos reais. As taxas de criminalidade caiam 20% e as notícias sobre violência cresciam 600%.

Publicado em 1999, o trabalho do professor da Universidade da Califórnia do Sul gerou polêmica nos EUA e acabou servindo de fio condutor para ?Tiros em Columbine?, de Michael Moore.

Apoiado no sucesso que o cineasta fez no Brasil com esse documentário oscarizado e com o livro ?Stupid White Men?, o ensaio ?Cultura do Medo? chega agora ao Brasil, publicado pela editora Francis (a mesma de Moore).

Glassner não tem a mesma veia gargalhante do gorducho provocador cultural, mas seu trabalho também é de grande impacto.

As pesquisas minuciosas do sociólogo apontam como o medo é cultivado -em histerias coletivas provocadas em torno de histórias como as crianças atiradoras em colégios ou pretensas epidemias devastadoras da humanidade, o ebola- e que setores se beneficiam desse comércio do medo.

Seguindo uma prática dos ilusionistas, ?nada nesta mão, nada na outra e voilà?, os cultores do medo fariam com que ?os problemas sérios continuem amplamente ignorados?: o desemprego, as desigualdades sociais ou os 75 milhões de americanos sem acesso ao sistema de saúde.

A colheita das desgraças seria especialmente interessante para ?políticos que ganham eleições em cima do discurso da solução do medo?, ?segmentos da mídia?, ?as diferentes indústrias da segurança? e ?os advogados?, como explica Glassner.

Em entrevista à Folha, o sociólogo conta como o 11 de Setembro mudou a ?medocultura?, discorre sobre as novas modas na paranóia americana e fala do ?perigo? da TV a cabo.”

 

CEM QUILOS DE OURO

“Fernando Morais, a reportagem por objetivo”, copyright O Estado de S. Paulo, 14/12/03

“O título Cem Quilos de Ouro pode levar o leitor a pensar que se trata de uma história de garimpo, ou talvez de uma aventura policial – e, nesse último caso, ele não estará tão errado assim. Trata-se da primeira de uma série de 12 reportagens coletadas pelo jornalista Fernando Morais e refere-se ao resgate pedido pelos seqüestradores do empresário Guilherme Affonso Ferreira, o Willy, em 1988. A matéria que dá título ao volume (Companhia das Letras, 328 págs., R$ 37,50) foi um free lance oferecido pelo jornalista à revista Playboy, numa época em que os seqüestros não eram tão freqüentes como hoje e uma história como aquela, vista de dentro, podia constituir um atrativo para o leitor de uma revista.

O livro é composto de material jornalístico selecionado pelo próprio Morais.

A idéia inicial era inseri-lo na coleção Jornalismo Literário, mas o autor entendeu que os textos que tinha em mãos não se enquadravam nos limites da série. Entre eles havia, de fato, alguma coisa que poderia se assemelhar a esse gênero chamado misto, mas apareceu também material de outra ordem, como entrevistas pingue-pongue, perfis de personalidades e até um objeto inqualificável como a transcrição de uma inédita conversa entre Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro e Otto Lara Resende. Mesmo assim, o editor Luiz Schwarcz convenceu o jornalista de que os textos mereciam publicação em forma de livro, ainda que fora da coleção a que estavam originalmente destinados.

Para dar consistência ao volume, o editor sugeriu que cada capítulo fosse precedido de uma breve introdução. Nesses textos prévios, o autor explica como surgiu a idéia para aquela determinada matéria, como ela foi feita, em que época, como era o País e o mundo naquele tempo, quais as dificuldades que surgiram, etc. Uma espécie de making of jornalístico, para usar a terminologia cinematográfica em voga. Feliz, Fernando Morais percebeu que nesses pequenos textos poderia responder a uma série de perguntas que os alunos de jornalismo costumam colocar a um profissional top de linha como ele – uma estrela das redações, autor de best sellers como A Ilha, Olga, Chatô, o Rei do Brasil e Corações Sujos, com passagens pela política e por altos cargos da administração pública.

Ok, mas Fernando Morais é acima de tudo repórter e essa origem não se nega.

Ela se revela na obstinação com que persegue suas pautas. Por exemplo, para fazer a matéria sobre o seqüestro de Willy, teve de pedir a indulgência do então governador de São Paulo, Orestes Quércia, que o havia convidado a ocupar a pasta da Cultura em seu secretariado. Morais combinou que aceitava o cargo mas só poderia assumi-lo dez dias depois, tempo que considerava suficiente para levantar o assunto, entrevistar a vítima e redigir a encomenda. Há descrições do verdadeiro esforço físico, necessário no limite do estoicismo, para levar a cabo uma reportagem sobre a Transamazônica.

Aprende-se o quanto de paciência é necessária para conseguir uma entrevista com Fidel Castro, ou a tolerância exigida para conviver, mesmo que por tempo restrito, com um presidente de vocação imperial como era Fernando Collor em seu curto apogeu.

Faz parte da receita do bom repórter o talento de entrevistador, que consegue desvelar a intimidade de uma personalidade conhecida pela discrição como frei Betto, que em entrevista tipo pergunta e resposta (pingue-pongue, no jargão da imprensa) fala de religião, de seu envolvimento com a guerrilha e até de sexualidade. E há a pitada indispensável de sensibilidade, que o repórter exibe ao flagrar a mesma personalidade em dois contextos e épocas completamente diferentes: Fernando Collor, ainda na plenitude de sua arrogância presidencial, e depois, apeado do poder, parecendo um personagem melancólico de García Márquez, que Morais descobre, não sem surpresa, ser um dos autores prediletos do antigo caçador de marajás.

As duas matérias com Collor fazem um curioso pendant com uma reportagem turística que Morais escreve em San Simeon, na Califórnia, onde o miliardário William Randolph Hearst ergueu um castelo imenso à própria vaidade e ficou sendo o modelo para a mansão de Xanadu no filme Cidadão Kane, de Orson Welles. Kane é tudo o que se quiser, o maior clássico da história do cinema para muitos, mas em sua origem não passa da história da queda de um poderoso, uma reflexão sobre o fato de que, afinal, todos os grandes são pequeninos diante da solidão e da morte. Não falta ao repórter humanidade para perceber esse tipo de coisa mesmo que, por pudor, ou por observância de certa objetividade profissional, ela não apareça na superfície do texto. Mas está lá, abaixo da linha d?água.

O livro lê-se muito bem, mas nota-se que o autor parece muito mais à vontade quando o tema é político. Quando isso acontece, ele está em seu elemento e por isso são tão vívidas e mesmo empolgantes as matérias que envolvem o comandante cubano Fidel Castro, o líder sandinista Daniel Ortega, Collor e o juiz espanhol Baltasar Garzón, que conseguiu a proeza de decretar a prisão de Augusto Pinochet quando este se encontrava na Inglaterra. São pontos altos de um livro que ainda oferece de brinde a delícia e a informalidade de uma conversa entre Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro e Otto Lara Resende que, a pedido de Morais, se reuniram na cobertura de Braga. Para falar (mal) de Assis Chateaubriand.”

 

A CAPITAL DA SOLIDÃO

Entrevista com Roberto Pompeu de Toledo, copyright O Globo, 14/12/03

“Roberto Pompeu de Toledo

(59 anos, jornalista, autor de ?A capital da solidão ? Uma história de São Paulo das origens a 1900?)

O senhor conta em seu livro o que significaram para São Paulo a construção do Viaduto do Chá e a abertura da Avenida Paulista, ambos inaugurados no início da década de 1890. Que obra teria porte equivalente, hoje?

? Uma rede de metrô digna da metrópole. Londres, Nova York, Paris e até Buenos Aires construíram as suas. São Paulo não. Dizem que seria muito caro. Se ao longo dos anos os recursos empenhados em obras viárias, a maioria destinada apenas a transferir o congestionamento um pouco mais para diante, tivessem sido canalizados para o metrô, a rede seria bem maior do que é. O metrô não precisaria necessariamente correr debaixo da terra. Poderia até ter sido aproveitada boa parte do traçado das linhas de bonde. Destruiu-se o bonde o mais rápido possível, em obediência à opção pelo automóvel. Foi um erro pelo qual a cidade paga até hoje, e pelo qual os pobres são castigados com uma das facetas mais brutais da metrópole, que é obrigá-los a três, quatro ou mais horas diárias no deslocamento entre as moradias e os locais de trabalho.

O livro conta a história de um mirabolante plano, no final do século XIX, de trazer o mar para São Paulo. O Atlântico chegaria ao planalto por meio de um sistema de comportas que venceria a Serra do Mar e dotaria a cidade de um porto. Paulistano tem mania de mar?

? O plano é revelador de uma relação curiosa da cidade com o mar. Por um lado o mar fascina, e a falta dele é particularmente dolorosa quando se tem em conta sua exuberante presença na principal rival, que é o Rio de Janeiro. Mas, por outro, São Paulo com mar não seria São Paulo. Seria Santos. Não estaria aberta à origem de sua riqueza, que é o interior que produzia o café. A relação de São Paulo com as águas em geral é mal resolvida. Já que não tem mar, poderia servir-se dos rios para ganhar em ordem e elegância, como Paris, Londres ou Roma, mas maltrata seus rios. São Paulo é das poucas cidades em que rio é feio e ponte é feia. Com o Tamanduateí a maldade é tamanha que em certos trechos seu leito é coberto por barras de concreto que vão de uma margem à outra. É como se tivessem prendido o rio. Como se o tivessem posto na cadeia.

A população vivia melhor na virada do século XIX para o XX, período em que o livro se encerra?

? Talvez a pobreza fosse menos aparente. Era um período em que a esmagadora maioria da miséria brasileira estava no campo. As cidades se constituíam em ilhas de relativo bem-estar. Mas os indicadores sociais eram horrendos. Um relatório de 1893 revelou que 69% das mortes ocorridas na cidade naquele ano vitimaram crianças de até 15 anos. É um espanto. Quem já leu Dickens ou Balzac sabe que na Inglaterra ou na França as condições sociais também eram ruins. Talvez, em confronto com os padrões internacionais vigentes, São Paulo não estivesse tão defasada. Mas dados como esse desmontam as fantasias românticas de que a vida era melhor. Aliás, nem seria preciso tanto. Basta ter em mente o que era ir ao dentista, cem anos atrás, para não desejar viver nesse tempo.”

 

CHICO MENDES…

“Zuenir Ventura recupera o tiro que ecoou pelo mundo”, copyright O Estado de S. Paulo, 14/12/03

“Inúmeras mudanças aguardavam o jornalista Zuenir Ventura quando ele, em outubro, voltou ao Acre para descobrir o que mudara na região desde que, há quase 15 anos, ele lá estivera para escrever uma série de reportagens sobre o assassinato do líder sindical e ambientalista Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988. E não foi apenas a mudança de lugar do aeroporto internacional que lhe chamara atenção – as idéias de Chico Mendes continuam atuais e atuantes, graças, principalmente ao avanço da aplicação dos conceitos de justiça.

?Não existe mais aquela sensação do medo imperar em toda a cidade?, conta Ventura, cujos textos foram reunidos em Chico Mendes: Crime e Castigo (248 páginas, R$ 33,50), mais um volume da coleção Jornalismo Literário editado pela Companhia das Letras. ?Agora, finalmente, há uma satisfação em se viver.?

Quando morreu, Chico Mendes estava com 44 anos e já era conhecido em boa parte do mundo por ter desenvolvido, à frente dos seringueiros, táticas pacíficas de resistência com as quais defendeu a Amazônia. Suas atitudes descontentavam os proprietários locais, responsáveis por um acelerado processo de desmatamento para dar lugar a grandes pastagens de gado. O choque tornou-se inevitável e a morte do ambientalista tornou-se anunciada.

O livro foi dividido em três partes. Na primeira, intitulada O Crime, estão as 11 reportagens que Ventura publicou no Jornal do Brasil entre março e abril de 1989. Ele viajou para passar uma semana no Acre, mas ficou um mês, período em que reconstituiu em detalhes o crime arquitetado pelo fazendeiro Darly Alves de Souza e executado por seu filho, Darci Alves Pereira. ?O que mais impressionava era a consciência que Chico Mendes tinha da morte, afirmando, inclusive, que seria assassinado até o dia 30 de dezembro de 1988?, conta Ventura. ?Ele não era levado a sério nem pela polícia nem pela imprensa local e, mesmo sabendo que poderia até se mudar do País, preferiu ficar pois sua morte, se acontecesse, ao menos reverteria uma situação desfavorável.?

A série de reportagens valeu ao jornalista os principais prêmios do ano, mas, mesmo assim, ele temia uma republicação em livro. ?Pensei que o interesse intenso daquele momento fosse passageiro e os textos não resistiriam a uma nova edição?, disse Ventura, convencido do contrário pelo editor Luiz Schwarcz.

A escrita, apesar de dedicada à publicação em um jornal diário, mantém, porém, um raro frescor graças à rigorosa reconstituição dos fatos feita por Ventura, que estava munido de um gravador, um caderninho e a necessária curiosidade profissional. De volta ao Rio, ele não apenas trouxe um farto material em histórias como também o adolescente Genésio, enteado do mandante do crime, que corria perigo de vida.

A vinda do garoto para o Rio marca o início da segunda parte do livro, O Castigo, com reportagens feitas por Zuenir Ventura em 1990, quando voltou a Xapuri, no Acre, para acompanhar o julgamento dos assassinos de Chico Mendes. O fato tornou-se um marco na justiça brasileira graças ao juiz Adair Longuini, que condenou o executante do crime e também seu mandante.

O julgamento foi acompanhado por dois estudantes de Direito, que perceberam a importância política e social do acontecimento. Pedro Francisco da Silva e Jair Facundes tornam-se, assim, a ponte para a terceira parte do livro, Quinze Anos depois, em que Ventura mostra, com seu estilo refinado, como os dois rapazes, agora juízes federais no Acre, contribuíram para a redenção da justiça local ao condenar à prisão o ex-deputado Hildebrando Paschoal, acusado de resolver questões envolvendo terras à base de motosserras. ?A relação entre o campo e a cidade mudou profundamente, especialmente na questão ambiental?, comenta Ventura. ?Esse é o principal legado de Chico Mendes.?”