Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

CENSURA E LITERATURA

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

ASPAS

CENSURA E LITERATURA
Sérgio Rodrigues

"E o vento levou a liberdade de expressão", copyright Jornal do Brasil, 4/05/01

"O mercado editorial americano está sendo agitado por uma polêmica deliciosa, daquelas que lançam luz – ou, dependendo do ponto de vista, sombra – sobre os desvãos culturais deste início de século. Alice Randall, de 41 anos, uma autora negra de Nashville que até então era conhecida apenas como letrista de música country (um ambiente, aliás, dominado por rednecks, ou pescoços-vermelhos, quer dizer, brancos), achou que tivera uma idéia genial: reescrever o romance-que-inspirou-o-filme E o vento levou, de Margaret Mitchell, do ponto de vista de uma escrava, criando um antídoto ao que sempre considerou ser o ranço racista desse clássico popular sobre os percalços de uma heroína sulista, Scarlett OHara, nos tempos da Guerra Civil americana.

Alice não ficou na idéia: escreveu sua paródia de Gone with the wind (1936), que chamou de The wind done gone, e a fez ser narrada por Cynara, uma meia-irmã de Scarlett que não existe no romance original, filha ilegítima do dono da fazenda com uma escrava. A editora Houghton Mifflin gostou do resultado e bancou a publicação. Até aí, tudo como deve ser, mas – cadê o livro? Cadê o debate, as críticas? O romance é bom ou apenas uma picaretagem disfarçada de radicalismo politicamente correto? Não se conhecem as respostas a essas perguntas. O vento levou.

Bem, não exatamente o vento. Quem impediu o provocativo romance de Alice Randall de chegar às livrarias foi o juiz federal Charles Pannell Jr., que no mês passado deu ganho de causa ao Margaret Mitchell Trust (a fundação que administra a obra da autora, morta num atropelamento em 1949) numa ação de plágio. ?Pirataria deslavada? é uma das expressões usadas no veredito. Pela legislação americana, a única chance que Alice Randall tinha de driblar a necessidade de autorização dos detentores dos direitos autorais da obra original era enquadrar seu livro na categoria de paródia – o que ela jura que ele é. Se for para parodiar, um escritor pode recorrer a qualquer texto alheio e, mais ou menos como fazem os DJs, sampleá-lo: usar temas, entrechos, personagens para produzir uma versão remix. Mas escrever uma sequel (continuação), só com autorização.

Qual a diferença entre uma coisa e outra? ?É muito difícil dizer. Essa questão de direitos autorais está se tornando sofisticadíssima?, diz a professora de literatura e ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda, que afirma enfrentar ?dúvidas como essa o tempo todo? em sua atividade de editora à frente da Aeroplano. O fato é que o juiz americano travestido de crítico literário (aliás, sulista) entendeu que a autora de The wind done gone escrevera uma continuação e não uma paródia. Muita gente chiou. Intelectuais como o historiador Arthur Schlesinger Jr. e os escritores Toni Morrison e Pat Conroy saíram em defesa de Alice Randall. ?É inacreditável essa proibição?, disse Schlesinger. ?Estão fazendo uma bela publicidade para a editora.?

É possível que a Houghton Mifflin, que recorreu da decisão, acabe mesmo rindo por último. A notícia da censura bastou para que um dos exemplares de divulgação distribuídos à imprensa ganhasse um lance de US$ 485no site de leilões eBay na semana passada, antes de ser, também ele, tirado de circulação. De ficcionista estreante, Alice Randall passou a se enrolar no manto de vítima do sistema. ?Fiquei extremamente chocada e irritada?, declarou. ?Não tentei explorar o sucesso de E o vento levou. O que eu queria era explodi-lo.?"

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"A censura ameaçada pelo debate", copyright Jornal do Brasil, 4/05/01

"O que mais impressiona na história da censura à versão remix de E o vento levou é seu jeitão de retrocesso num momento em que o diálogo entre obras contemporâneas e obras clássicas (ou pelo menos culturalmente estabelecidas) está consolidado como uma das principais vertentes da arte contemporânea. Qualidade à parte – e as informações disponíveis sobre o livro de Alice Randall sugerem um trabalho um tanto esquemático – a ?versão negra? do best-seller de Margaret Mitchell é, no mínimo, uma novidade promissora no cenário das lutas multiculturalistas que convulsionam o ambiente acadêmico nos Estados Unidos. Até agora os militantes do Politicamente Correto vinham demonstrando muito mais apetite pela censura do que pelo debate.

Um exemplo: ninguém se dispôs até o momento a um diálogo intertextual com o clássico fundador das letras americanas As aventuras de Huckleberry Finn, também acusado de retratar os escravos como crianças incapazes. Já a inclusão de Mark Twain na lista negra (opa!) dos autores racistas que os estudantes não devem ler encontrou abrigo em escolas de Norte a Sul. Nesse ponto, palmas para Alice Randall. ?Eu acho a iniciativa absolutamente legítima?, diz o compositor de samba e escritor Nei Lopes. ?Nós, negros, durante muito tempo não tivemos voz. É fundamental que possamos reescrever essas coisas que foram mal-escritas, ou seja, escritas com um viés etnocêntrico. Existe hoje a tendência até científica e acadêmica de mudar o foco tradicional de análise. Assim, presta-se um serviço à comunidade.?

Quando se fala em tese sobre o caso Alice Randall, é difícil encontrar quem seja contra releituras – ou contraversões, como preferem alguns – num momento histórico em que as maiores novidades musicais trabalham com a técnica do sample, aproveitando todos os timbres, batidas e seqüências de acordes disponíveis na discoteca universal para criar uma música que soa como nova. A idéia do sample, com pequenas adaptações, aplica-se também a outras formas de arte, como literatura, pintura etc. Mas será que isso significa uma crise de criatividade? ?De jeito nenhum?, reage Heloísa Buarque de Hollanda. ?É um vespeiro que se abriu, e é fascinante politicamente, esteticamente, em todos os sentidos?, completa ela, louca de curiosidade pela versão proibida de E o vento levou.

O professor de teoria da literatura Gustavo Bernardo – ele próprio autor do romance Lúcia, que faz uma releitura crítica de Lucíola, de José de Alencar – põe a questão numa perspectiva histórica, negando que a primazia da releitura seja uma invenção de nossa época. ?Buscar um novo ponto de vista para se contar uma velha história é uma definição de literatura, que sempre se fez sobre outros livros. Não se escreve sobre a realidade?, afirma ele, lembrando que o próprio Lucíola não passaria num teste de originalidade: ?É coladíssimo na Dama das Camélias, do Alexandre Dumas Filho?.

Mesmo assim não se pode negar que as releituras ficaram mais saidinhas a partir das últimas décadas do século passado. Um caso semelhante ao de Alice Randall é o de Domício Proença Filho, autor de Capitu – Memórias póstumas, que reconta o Dom Casmurro de Machado de Assis por um viés, digamos, feminista. Domício, porém, encara com cuidado o diálogo com textos alheios. ?A questão é como dialogar. Estou falando em tese, pois não conheço o livro dessa autora, mas se ela simplesmente usa a obra alheia e não faz uma contribuição diferenciada, um trabalho próprio de linguagem, é questionável?, diz ele, que, no entanto, continua fascinado pela estratégia da contraversão: confessa que já andou pensando em aplicá-la ?de forma criativa? a outros livros brasileiros, como O seminarista, de Bernardo Guimarães, ou O bom crioulo, de Adolfo Caminha.

Nesses dois casos, como no de Machado, Domício não teria qualquer problema: são obras cujos direitos autorais já caíram em domínio público (o que, segundo a nova legislação brasileira, de 1998, ocorre 70 anos após a morte do autor). Mas quando se parte de uma obra cujos direitos são privados, e que ainda por cima vendeu 25 milhões de exemplares em todo o mundo, como E o vento levou, a questão se complica. Se no plano da teoria literária a cultura do sample é quase uma unanimidade, na vida real, com sua teia de relações comerciais e jurídicas, gente como Alice Randall se vê em terreno perigoso.

?Como autora, ela deixou de partir do patamar zero. Seu patamar é um livro que vendeu milhões de exemplares?, pondera a agente literária Lúcia Ryff. Por acaso uma fã de carteirinha do filme inspirado pelo livro de Margaret Mitchell – ?vi umas 500 vezes, é a paixão da minha vida? – Lúcia reconhece que casos desse tipo são sempre difíceis, mas acha razoável a sentença do juiz americano.

A ?versão negra? de E o vento levou acaba levantando assim uma questão que parece ter passado longe das intenções da autora: as necessidades estéticas de nosso tempo, de tão velozes, vão começar a bater nos limites de um aparato jurídico obsoleto? Crises como a provocada pelo Napster na indústria fonográfica indicam que sim. O compositor e sampleador Max de Castro, por exemplo, é um desses artistas que se movem depressa demais para esperar que o mundo o acompanhe. Admite que ?teoricamente você deveria pedir autorização? para usar qualquer trecho de música. ?Mas a burocracia é tão grande que, na maioria das vezes, você acaba usando de uma maneira que fique irreconhecível e tudo bem.?"

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