Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Censura ou punição?

DOMINGO ILEGAL

Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (*)

Participei, no dia 30/9, de uma das edições do Observatório da Imprensa na TV, cujo tema foi o mesmo do título deste artigo ? "Censura ou punição?" ? em relação à determinação de suspensão do programa Domingo Legal, em 21/9, em razão de ordem judicial.

De tanto amor que tenho por seus princípios acabei citando muito, talvez demais, o texto constitucional em minhas intervenções no programa. Para simplificar a questão e ser mais direta, penso o seguinte: está havendo uma confusão generalizada sobre o que é censura.

Alguns dizem que a liminar configurou censura porque a juíza suspendeu um programa futuro sem saber de seu conteúdo. Outros dizem que a liminar não configurou censura, também porque a juíza não sabia do conteúdo do programa futuro.

O que dizer de tamanha contradição?

A meu ver, em vez de conjecturas sobre a caracterização de censura ou não, a discussão que deveria ocorrer é no sentido de poder ou não uma decisão judicial suspender um programa ou programação como forma de punição. Também a meu ver, pode. É claro. Se a Constituição permite até que o Judiciário cancele uma concessão, quanto mais uma suspensão como medida liminar. Afinal, quem pode o mais pode o menos. Essa não é só a minha opinião. A esse respeito recomendo a leitura de estudo brilhante do professor José Carlos Barbosa Moreira ? "Ação Civil Pública e programação da TV ?, em que o autor esgota toda a problemática com maestria. Vale lembrar que esse texto foi escrito em 1995, e está publicado em Temas de Direito Processual, Editora Saraiva, 1997, do mesmo autor.

Bem, voltando à censura. Muitos ainda levantam a bandeira de que a decisão judicial de que tratamos não foi acertada pois configurou censura prévia; quer dizer que censura posterior pode? Mas a Constituição (novamente, não consigo me afastar dela) não baniu toda forma de censura?

Direito de defesa

Entretanto, o que é censura? Meu colega, o procurador regional da República Domingos Sávio Dresch da Silveira, após pesquisar o que dizem vários juristas de renome (José Afonso da Silva, José Cretella Júnior, Celso Ribeiro Bastos, Pinto Ferreira), resume muito bem o que, afinal, caracteriza a censura, em excelente estudo de sua lavra intitulado "Controlar não é censurar: algumas reflexões sobre os meios de comunicação social e a verdade nos processos eleitorais", publicado em Cadernos de Advocacia Pública, n? 1, Porto Alegre, julho de 2000, Escola Superior de Direito Municipal. Então, de acordo com o também brilhante Domingos da Silveira, o que caracteriza a censura, para nossa surpresa, não é o fato de ser prévia ou posterior, mas o fato de ser aplicada por agente da administração pública, de ter caráter incontrastável, ou seja, não admitir recurso, defesa ou contraditório, e de ser baseada em critérios vagos como a ordem moral e política.

Isto é censura. O que tivemos em relação ao programa Domingo Legal foi uma decisão judicial (não por "agente da administração pública", já começa aí a diferença), que seguiu, sim, o devido processo legal, que tem como característica básica o direito à defesa e ao contraditório. Observar o devido processo legal significa utilizar os meios processuais de que dispomos, de acordo com nossa legislação. A antecipação dos efeitos da decisão (como ocorreu) é amplamente admitida quando há risco de dano irreparável, de ineficácia do provimento jurisdicional se os cidadãos tiverem que aguardar anos até a decisão definitiva, para só então obter a resposta do Judiciário à lesão praticada em passado já tão distante.

Não há que se falar que o SBT não teve direito de defesa. Tanto teve que o exercitou. Entrou com recurso, que foi analisado por instância superior do Judiciário, que confirmou a decisão anterior.

Poder sem controle

A atuação do Judiciário, com a garantia do devido processo legal, jamais pode configurar censura, sob pena de se negar o princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação do Judiciário de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito. É isso o que caracteriza o Estado Democrático de Direito. O equilíbrio entre as liberdades. Ao mesmo tempo em que garante a liberdade de expressão, a nossa Constituição garante ao cidadão o direito de se defender dos abusos praticados em nome dessa mesma liberdade. E quem decide esse conflito só pode ser o Judiciário.

É muito triste ver que certas autoridades parecem não ler a Constituição, pois algumas insistem em que o meio de defesa da programação abusiva é o controle remoto. Ora, se o único meio de defesa do cidadão fosse esse não precisava constar da Constituição! É o que diz Barbosa Moreira, no artigo já citado:


"A Lei Maior com certeza se pouparia o trabalho de abrir espaço ao assunto, se o seu exclusivo intuito fosse o de conferir a cada telespectador o direito de não ligar (ou desligar) o aparelho, todas as vezes em que a programação fosse desrespeitar, ou estivesse desrespeitando, o art. 221. Para apertar (ou deixar de apertar) um botão com esse fim (defender-se da programação abusiva) é claro que ninguém precisa, nem jamais precisou, de autorização jurisdicional…"


É importante lembrar que quem primeiro afirmou que a decisão judicial de suspender o Domingo Legal era censura foram os advogados de defesa do réu. É natural, eles fizeram o seu papel. Mas a mídia em geral não tardou em orquestrar uma campanha para caracterizar aquela decisão como censura. Pensando bem, também estão no seu papel, pois, afinal, como representantes do chamado Quarto Poder (discordo de Alberto Dines quando, no programa do dia 30, atribuiu essa condição ao Ministério Público), infelizmente não lhes interessa controle algum, através do qual os cidadãos tenham um meio eficaz de se defender. Só que, vale lembrar, quando se pretende viver numa democracia não pode haver poder, qualquer que seja ele, sem controle.

Amor à Carta

No entanto, não apenas a defesa do SBT como boa parte da mídia encamparam a confusão de censura com o exercício do dever de prestar jurisdição. Muitos juristas e jornalistas a quem respeito muito também começaram a dizer que a decisão caracterizou censura. Mas até para esses há uma explicação: somos todos gatos escaldados, com muito medo da volta da censura, sendo que muitos a sentiram na pele.

Mas peço licença para dizer, de forma convicta: o que ocorreu na ação em relação ao SBT, e em muitas outras em que se procura defender os cidadãos das práticas abusivas, não foi e não será a água fervente da censura. É água fresca, própria para seres humanos. É a Justiça dizendo a quem cabe o direito naquele caso concreto, se ao cidadão ou à emissora. Vale lembrar que essa Justiça não mais é composta por juízes indicados, mas por juízes concursados, que gozam de garantias constitucionais para poderem proferir suas decisões com a tranqüilidade de espírito necessária.

É isso.

Vejo que novamente não consegui me afastar da Constituição. Só pode ser amor demais!

(*) Procuradora da República, procuradora regional dos Direitos do Cidadão e subscritora da ação civil pública do Ministério Público Federal em face do SBT