Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Censura ou varredura prévia?

DOMINGO ILEGAL

José Antonio Palhano (*)

A decisão judicial que culminou com a suspensão do programa Domingo Legal, de Gugu Liberato, não importa se sujeita a reformas ou a qualquer outra decisão de instância superior que a desqualifique, só pode ser corretamente assimilada em devido e preciso contexto: aquele em que a escalada da vulgaridade na televisão brasileira há muito já ultrapassou os limites dentro dos quais caberiam, em resposta, reações e conceitos de natureza estética ou artística. Subjetivos, portanto.

Trata-se, bem diferente, de reconhecer um estado de coisas no qual a exploração humana desceu a níveis inimagináveis, mesmo que levemos em conta a discriminação social que tanto nos diferencia do mundo dito civilizado. Mundo-cão em sua mais completa tradução, ao vivo e em cores, dia e noite. Preferencialmente à luz do sol, ou sob o manto crepuscular e encarniçadamente disputado do dito horário nobre, que é para atingir o universo familiar em cheio (e quando estamos ofuscados, surdos e mudos para esboçar qualquer desconforto que seja, ao menos próximo ao diapasão com que digitamos e publicamos nossa indignação frente a, por exemplo, qualquer investida contra direitos políticos).

Universo familiar,acrescente-se, já mortalmente carunchado e fragmentado pela nossa secular opção preferencial pela miséria, ao ponto exato de se mostrar impotente para esboçar qualquer gesto em nome de moral, costumes, cidadania e de toda e qualquer outra variável social-comportamental capaz de legitimar o pleno e soberano conceito de Nação.

Caldo de cultura

A propósito, o mesmo SBT do tal Gugu tem, ao longo da sua lucrativa trajetória, explorado e alavancado magistralmente a doutrina, da qual já tratamos aqui há tempos, da miséria incorporada: esfarrapados, descamisados, doentes, famintos, favelados e desempregados, longe de inspirar iniciativas que objetivem diminuir ou mitigar-lhes o sofrimento, são fabricados em peças fundamentais, e com reposição garantida aos milhões, da nossa inexorável marcha rumo ao futuro e ao progresso. Em outras palavras, geram receita. E tome, pois, televisioná-los. O retorno, vergonha suprema, é garantido. Seja por baús, seja por Gugus. Pobres, em país irremediavelmente colonizado pelo mercado financeiro, são ativos. Um mercado futuro garantido e sem riscos.

Dessa forma, discussões e polêmicas que visem separar joio de trigo, ou o que é jornalismo e o que é entretenimento, algo que tanto tem ocupado cabeças pensantes, lastimavelmente perdem substância. Transformam-se em academicismo. Fútil, soberbo e alienado.

O buraco é mais embaixo. Ou o espaço disponível para estabelecermos critérios estreita-se perigosamente, ameaçando tornar-se apenas virtual. Mas é o que nos resta. Só para ilustrar, aceitamos ? e incorporamos ao nosso cotidiano, moral e visualmente ? que prostitutas façam ponto na Avenida Atlântica, no Rio. Mas não chegamos ao ponto de recebê-las à porta, recusando polidamente seus préstimos (salvo algum casal chegado às morbidades que povoam os classificados). Por maior que seja a esculhambação vigente, a ninguém ocorreu, ainda, a idéia de que estaríamos assim a cercear o direito de ir e vir das praticantes do decano ofício. Tolerantes e promíscuos, dane-se o trocadilho, fazemos vista grossa para o trottoir. Mas à porta de casa, aí seria demais.

Hipocrisia danada (e sempiterna e verde-amarela), o filhote de Sílvio Santos e assemelhados têm salvo-conduto eletrônico, garantido e diário. Entram em casa, tal é a força do veículo junto à comunidade, mais à vontade e mais consistentemente que se o fizessem pela porta da frente. A prostituição que se segue, se não tão longeva quanto à modalidade exercida pelas raparigas da avenida, descola-se desta não apenas por dispensar a utilização física de corpos. É infinitamente mais lucrativa e moralmente mais devastadora. Afinal, trabalha não com sexo propriamente, mas traficando referenciais e valores. Apenas a matéria-prima continua sendo humana.

Se a figura humana da meretriz foi, ao longo dos séculos, assimilada a ponto de gerar demandas trabalhistas, e crescentemente conquistadas, até por isto mesmo se situa em nichos próprios, nos quais parece prevalecer o livre-arbítrio em relação ao que fazer do próprio corpo. E assim o fazendo, adquire identidade própria. Se tais nichos ora extrapolam das suas fronteiras, digamos, convencionais, a culpa é nossa. De todo modo, meretrizes, a despeito de certas nuances modernosas, constituem-se em grupamentos razoavelmente identificáveis e limitados.

Já a prostituição televisiva é, por definição impessoal. Daí suas infinitas possibilidades de florescer e se expandir feito um cancro, não tivesse a seu dispor caldo de cultura tão rico e disponível. Ademais, o que vale é lutar pela audiência e topar tudo por dinheiro. Ou michê.

Aos sopapos

E aí a gente ainda vai ficar discutindo se a meritíssima senhora juíza, ao tirar o moço do ar, ressuscitou ou não a famigerada censura prévia? Ora, tamanha perda de tempo, só para começar, é de um maniqueísmo atroz. Um lampejo de bom senso que seja remete à constatação segundo a qual a essência da degradação televisiva reside no seu caráter avassaladoramente progressivo. Nada haverá de saciar, ou conter, o processo. Gugu, e mais quem se saia a ele, vai reincidir.

A essas alturas, abordar o episódio da suspensão do programa especulando se foi ou não censura prévia é, em última instância, atribuir a Gugu Liberato qualidades que ele, definitivamente, não tem. Parte-se do pressuposto pelo qual, a cada tarde de domingo, o mesmo se utiliza de ferramental artístico, intelectual e jornalístico para atrair telespectadores. Convenhamos: coisa de fazer o próprio Gugu, na intimidade, morrer de rir. Dar a ele beneplácitos inspirados na existência de censura é identificá-lo como vítima da mesma.

A fim de arrefecer escrúpulos liberalizantes, há algo mais no ar além da permissividade vigente, que já fez gente insuspeita como Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo escrever, em plena página 7 do Globo, sobre crise moral na sociedade brasileira. Em editorial no qual aborda a condenação pelo STF do nazista Siegfried Ellwanger (“Racismo intolerável”), a Folha de S.Paulo (20/9) sapeca: “Vale lembrar que mesmo um princípio fundamental como o da liberdade de expressão não é absoluto…”. No mesmo sábado, Alberto Dines escreveu, a propósito do assunto, no Jornal do Brasil, questionando voto do ministro Marco Aurélio de Mello, para quem “a defesa de uma ideologia não é crime, a publicação de livros anti-semitas não representa perigo iminente de extermínio do povo judeu”‘: “Engana-se o meritíssimo, pois o Mein Kampf, de Adolf Hitler, deflagrou um dos maiores massacres da história da humanidade”.

Ao que se saiba, nem a Folha nem Dines são apologistas da censura. Remover Gugu do ar foi uma ótima idéia. Pelas vias judiciais, melhor. Até porque nada parece sugerir que qualquer um de nós se motive a ir até o estúdio e fazê-lo aos sopapos.

(*) Médico e jornalista

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