Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Chamem os aiatolás

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OPINIONISMO

A reza fundamentalista vigente nas nossas páginas (impressas) diárias teve seus, digamos, melhores momentos, no artigo "CPI do BC, já" (Folha de S.Paulo, 21/5/01). Vinícius Torres Freire, seu autor, saiu a clamar, certamente indignado, por CPIs com tamanho apetite que mais duas linhas e cobraria uma para investigar a contabilidade da paróquia de Mangue Seco. Afinal, ACM com certeza já passou lá pelo menos algumas horas, se não para pedir a bênção ao infeliz pároco condenado a pagar ali seus próprios pecados (o senador que ora renuncia há muito tem sua própria tropa de personals mães-de-santo e de caboclos polivalentes), ao menos para pegar uma cor ou inaugurar uma bica d?água.

No fecho do bíblico e moralista papiro, a frase capaz de arrepiar o mais melancólico dos aiatolás desiludido com a globalização: "CPI para saber se esse governo merece uma pá de cal".

Sem prejuízo para o autor ? não fosse minimamente competente não freqüentaria aquela página 2 ?, este é o ponto. Temos efetivamente cacife para julgar e, em caso de veredicto positivo, enterrar esse governo sob sete palmos de terra e ainda por cima caiá-lo a fim de que não rebrote feito capim tiririca? Indo um pouquinho mais longe, decretar a abreviatura do governo (tendência citada aqui na semana passada, em "Imprensa papa-defunto") [veja remissão abaixo], mesmo que com tanta e justificada revolta, é fazer a coisa certa?

O contraponto, mais que saudável, dessa ressaca biliosa que inunda os jornais irrompe em inédita fartura, algo que pelo menos desqualifica a tese segundo a qual esses observadores, invariavelmente uns chatos, estão isolados. Luiz Garcia, dia desses, no Globo, passou Veja no moedor de carne com apenas curta e cirúrgica frase ("a Veja publicou a pauta"), referindo-se à trôpega e combalida matéria sobre Chico Lopes e o Banco Marka. Não sem antes digitar que jornalistas, afinal, não precisam se encabular com muitos pudores para falar mal uns dos outros.

Fernando Pedreira, no mesmo Globo (27/5/01), lançou mão do maior e mais didático personagem de Ziraldo ? o Menino Maluquinho, aquele que carrega uma panela na cabeça ? para dizer de coleguinhas que carregam melancias sobre o crânio para chamar a atenção do distinto público leitor da sua condição de "independentes, críticos e indignados".

Guilherme Fiúza, em "Procura-se os caras-lavadas" (www.no.com.br), faz picadinho do miserê avassalador segundo o qual o país está à beira do abismo. Em oportuno flashback, voltou aos tempos das galeras caras-pintadas para mostrar que crises políticas e energéticas, por mais virulentas que sejam, não se prestam para que metamos um balaço entre os olhos ou brademos pelo escalpe de Fernando Henrique Cardoso na Praça da Apoteose.

Lá pelas tantas, sapeca: "Os jovens caras-pintadas querem ser importantes para o país, o que é saudável. Movimento similar ajudou a engrossar o Fora Collor, e é compreensível que os meninos de hoje também queiram ter no currículo a cabeça de um presidente. Mas entender esses protestos como ?pressão da opinião pública? é abusar da licença poética". E, em seguida: "Estão no papel deles. A imprensa também está no seu. O problema é que o papel da imprensa talvez seja menos cívico do que parece. Em outras palavras, além das finalidades nobres de informar, investigar etc, ela vive do entretenimento. Não é pecado, é comércio. Quem não está no seu papel é quem age como se a República pudesse ser movida a manchetes".

E por aí vai, a dizer dessa neura insuportável que anuncia, aos berros, o apocalipse. Convenhamos, basta dessa depressão típica de intelectuais pálidos que não vem o sol há séculos, devastados por crises existenciais, afetivas e sexuais mal resolvidas.

Mesmo o pessoal mais gabaritado, autorizado a escrever tudo o que lhe vier na telha, anda exagerando. Carlos Heitor Cony (que é bom entre outras coisas porque jamais se nega a ciclicamente reconhecer e publicar que leitores e fãs reclamam dele), outro dia, em meio a mais uma blitzkrieg contra o presidente, fechou advertindo que não se pode culpar o Janio de Freitas pela crise. Aqui, além da passadinha na cabeça do amigo particular, que ninguém é de ferro, reside um franco e descabido exagero. O homenageado, malgrado seus cavalares teores de ressentimento (salva-se pela coerência, vá lá), não tem caminhão para protagonizar a lenda de um cavaleiro solitário capaz de fazer o contraponto de toda a monumental trapalhada do Planalto.

A expressão "compadrio", tão clássica dos nossos costumes sociais e políticos, chega assim lépida e faceira ao jornalismo. O hepático Janio, por letras tortas, homologa a idéia segundo a qual nós, brasileiros, somos medularmente avessos a um mínimo de formalismo e distanciamento, o que nos induz permanentemente a atropelar leis e valores sob a desculpa de que somos íntimos. Mais ataca o presidente e os seus, mais revela a inclinação para uma proximidade que beira a promiscuidade ("sou tão íntimo seu que posso xingá-lo à vontade"). Nas favelas predominam relações equivalentes.

Por último, nosso mestre Luis Fernando Veríssimo vive o fascinante papel de um legista da realidade oficial, lastimavelmente viva, o que o obriga a uma vivissecção tão contínua e eterna quanto o expediente de Prometeu. Em outras palavras, o insuperável gaúcho está a provar que a crítica social entre nós, quanto mais eficiente e devastadora é, mais se resume a um fim em si mesmo. Lê-lo (exceto quando se limita ás suas crônicas, é óbvio), é uma maneira de pensarmos mal do governo, ou combatê-lo, encarnando em Narciso.

(*) Médico, jornalista e editorialista da Folha do Povo, de Campo Grande (MS)

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