Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Chapéu na mão e nenhuma idéia na cabeça

MÍDIA E O SOCORRO DO BNDES

Luciano Martins Costa (*)

Tomo emprestado o final do artigo de Alberto Dines, postado neste Observatório semana passada [remissão abaixo].


"Alguns empresários mais pessimistas (ou realistas) afirmam que a crise da mídia só tem duas saídas: ou o BNDES ou o investidor estrangeiro. Outros alertam para o perigo da Midiabrás. Mais uma razão para tirar das sombras assunto tão grave"


Tentemos, então, lançar mais alguma luz sobre o tema. Em primeiro lugar, parece claro que as duas saídas precisarão se complementar. Sem o apoio do BNDES, nenhuma das nossas empresas de comunicação será atraente para os investidores. Em segundo e mais importante lugar, precisamos examinar a acepção segundo a qual uma ajuda explícita do governo tiraria a autonomia da imprensa. Será?

Em março de 2002, quando aprovou os critérios básicos para a participação no processo de reestruturação do capital e reorganização societária da empresa GloboCabo S.A., o BNDES não estaria proporcionando diretamente um alívio ao grupo Globo? Aliás, na condição de acionista da GloboCabo, com 4,8% do capital, o BNDES concedeu garantia de subscrição de ações de até 284 milhões de reais, que o grupo realizou na totalidade, além de integralizar 39 milhões de reais em dinheiro e subscrever sobras de emissões públicas de ações da empresa.

Uma disponibilidade que faltou, na mesma ocasião, para uma enorme lista de outras empresas, cujos processos aguardavam solução muito antes do socorro pedido pelo grupo da família Marinho. Entre elas, a Fundição Tupy, de Santa Catarina, de cujo capital o BNDES também participa, que quase naufragou por falta de ajuda, justamente quando havia alcançado um excelente resultado operacional, posicionando-se entre as melhores empresas do setor em todo o mundo. Alguém aí acha que um novo aporte, agora diretamente no jornal O Globo ou na Rede Globo, vai mudar o humor ou tirar a "independência" do jornalismo global?

Dinheiro barato

De uma forma ou de outra, o governo tem ajudado as empresas de comunicação, tanto nos projetos de importação de equipamentos como na tramitação de processos de toda espécie. Mesmo indiretamente, o BNDES ajuda a imprensa, por exemplo, quando financia a indústria de papel-jornal. Numa dessas operações, o presidente do banco, Carlos Lessa, comemorava na semana passada uma decisão de investimento, apoiada pelo banco oficial de fomento, que vai beneficiar diretamente os jornais: a ampliação da capacidade de uma fábrica que irá provavelmente fazer com que o Brasil deixe brevemente de ser importador de papel-jornal.

Como se sabe, um dos motivos da elevação dos custos de empresas jornalísticas tem sido a redução do prazo de financiamento para a compra de insumos como o papel, que criou uma exigência adicional de capital de giro. Com o dinheiro mais caro, aumentaram as dificuldades. Com o dólar nas alturas, é o inferno. Com papel nacional suficiente e o financiamento mais leve, pode-se pensar em sobrevivência. Pode-se até pensar em um casamento de conveniência, uma vez que a perspectiva de alívio nos custos torna aplicável ? e realista ? a lei que permite a associação com investidores estrangeiros. E não seria absurdo imaginar o BNDES como padrinho nessas bodas.

Mas estes observadores são mesmo uns chatos. Vejam a equação incômoda que desenharam: a elevação do risco Brasil, agravada no fim do governo FHC, quando ficou evidente a iminente vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, apanhou em cheio as empresas de comunicação. A reversão desse cenário, culminando com a recente elevação da cotação de papéis brasileiros por conta da política econômica de Lula, somada a outras circunstâncias ? entre as quais a abertura de acesso a dinheiro mais barato ?, representa uma realidade muito mais favorável às empresas de comunicação. A pergunta que não quer calar: resistir à adesão, quem há-de?

Feras à solta

De um modo geral, a imprensa não tem sido sistematicamente oposicionista. Com exceção da Folha de S.Paulo ? que, após haver decretado o fim de toda esperança e a falência do projeto petista, celebrou nos últimos dias a aparente retomada do crescimento econômico ?, já fazia alguns meses que a grande imprensa mais assoprava do que mordia. A "independência" fica por conta de um ou outro articulista, mais ou menos feroz, mais ou menos implicante, ao ponto de alguns deles já se haverem transformado em figuras do folclore jornalístico. Muito diferente do tempo em que Lula era tratado como leproso.

As restrições quanto ao socorro do BNDES caíram de fato em 1997, apenas faltava a normatização por parte do banco, o que deve acontecer a partir do ano que vem, justamente pela manifestação de interesse da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e Associação Nacional das Editoras de Revistas (ANER). As novas políticas operacionais do BNDES não deverão configurar um programa tão explícito como o Proer, que permitiu a reestruturação do sistema financeiro nacional ? na prática, as empresas de comunicação terão acesso a linhas de crédito oferecidas por agentes financeiros credenciados e sob garantia do BNDES.

O que vai acontecer quando o dinheiro estiver disponível? Tenho um palpite: acho que o eixo da oposição vai derivar para a esquerda. Para disfarçar o desconforto com um possível engajamento, os jornais vão soltar suas feras. Diante de qualquer queixa do governo, basta dizer: não posso censurar meu articulista. E nem será preciso açular os colaboradores que babam à direita do espectro político: basta a esquerda estar perto do poder para que comece a se comportar como a pior inimiga de si mesma.

Modelo de gestão

Para não aborrecer mais os amáveis leitores e as amadas leitoras, gostaria de finalizar chamando atenção para esse fenômeno da esquerda brasileira: ela tem medo da realidade. É como se temesse que a percepção da realidade matasse no berço suas mais caras convicções. Quando fundamentadas em premissas falsas, essas convicções geram ilusões, como aquela de que seria possível derrubar o governo militar com um foco de guerrilha perdido nas selvas do Araguaia. Quando fundamentadas em premissas verdadeiras, elas geram utopias realizáveis.

O problema é o prazo de validade de ilusões e utopias. As primeiras nunca se concretizam, envelhecem e se desfazem com o tempo ? às vezes trocadas por uma boa colocação, uma boa aposentadoria. Já as utopias, nunca morrem. Chega-se perto do poder, estende-se a utopia um pouco mais adiante, pois é duro constatar que a maioria dos nossos sonhos não cabe na nossa existência. Isso deve explicar por que o governo Lula, com menos de um ano de idade e tendo realizado uma radical mudança de posicionamento do Brasil no cenário econômico e político mundial, é malhado justo pelos que se dizem ou se consideram progressistas ou esquerdistas.

A ajuda do governo às empresas de comunicação pode não tirar a autonomia da imprensa, pelo simples fato de que elas já estão suficientemente comprometidas com instituições públicas, por conta da própria crise, e com os bancos credores. Por outro lado, a abertura de financiamentos em condições menos cruéis do que as que atualmente sacrificam as empresas não significaria necessariamente um comprometimento imediato, uma vez que elas paguem a dívida regularmente.

O problema fica para depois, se não melhorarem as condições do mercado, e/ou se as empresas de mídia seguirem com o modelo de gestão que as conduziu ao buraco. Se não mudar a estratégia, se as empresas continuarem desviadas de seu negócio principal ? sobre o qual temos insistido neste Observatório ?, não haverá dinheiro no mundo que as resgate. Não basta ter o pires na mão, mesmo cheio, se não temos recebido notícia de boas idéias para revitalizar o negócio.

(*) Jornalista

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