Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Choque de Redações

(*)
Tribuna da Imprensa e Última Hora dos anos 50

TT Catalão

 

A

paixão e a parcialidade de dois jornais refletiram uma época. Em seus comandos, duas personalidades ricas em talento e contradições: Carlos Lacerda e Samuel Wainer. O pivô central, Getúlio Vargas no Brasil de 1951 a 1954. O cenário, um país em crise de identidade exigindo uma definição estrutural de modelo para o desenvolvimento brasileiro.

A jornalista Ana Maria de Abreu Laurenza, mestre em jornalismo pela Escola de Comunicações da ECA-USP, lança Lacerda x Wainer, o Corvo e o Bessarabiano, para mostrar que a história pode ser contada de muitos modos e até por fontes comprometidas e comprometedoras como foram os dois jornais na defesa de ideais em conflito. Em época conturbada, com interesses político-econômicos interferindo diretamente em editorias passionais, é óbvio que a informação saiu perdendo.

A melhor habilidade da autora foi delinear o contexto ressalvando os bastidores que moviam os personagens. Abre, antes do primeiro capítulo, com uma Síntese Histórica 1951-1954. Complementa a localização do leitor com um valioso anexo de documentos e fotos para melhor situar a trama muito além de possíveis arroubos personalizados ou desvios de caráter, mas história, extraída da contradição e do destempero de parte a parte. Lacerda e Wainer chegaram a ser companheiros de redação nos Diários Associados, mas o tempo provocava polarizações para opiniões fortes.

Outro fator relevante no livro é que a autora mantém análises e conclui com juízo de valores próprios sobre o momento, sem cair na defesa de um ou outro ponto de vista. Ela avança na percepção de que os dois jornais e as duas figuras públicas transcendiam suas trajetórias pessoais para incorporarem correntes muito explícitas ansiosas de caminhos diversos.

Sobre a atualíssima e eterna independência da mídia e o seu uso e abuso como instrumento político, a autora se posiciona com clareza: ‘‘É improvável que a imprensa possa abandonar, em algum momento, sua condição de instrumento político. À medida que noticia um fato, mesmo sem defendê-lo ou criticá-lo, funciona como uma caixa de ressonância de posições políticas ou ideológicas, mediante repercussão que dá ao episódio. Em determinadas conjunturas, esse processo se inicia na escolha da pauta a ser coberta’’.

É esse o tom do ensaio de Ana Maria. Ela se envolve na medida certa com o seu objeto de pesquisa e consegue dar densidade a todos os episódios procurando alinhá-los em panoramas históricos mais amplos, além da mera circunstância. Isso sem perder a fluência, mantendo a leitura.

Sua preciosa contribuição em reproduzir na íntegra, em 19 páginas do livro, o famoso artigo ‘‘A Exposição Anticomunista’’ (não assinado), de Carlos Lacerda, no Observador Econômico e Financeiro nº 36, de janeiro de 1939, que provocou sua expulsão do Partido Comunista, é exemplar desse entusiasmo raro de uma cientista em compartilhar a emoção da verdade — creio que falou mais alto aí a jornalista. O episódio marcou na guinada de vida do jovem brilhante Lacerda que foi ‘‘apagado’’ do mundo em que vivia e acusado de ter fornecido informações mais tarde usadas para a prisão e tortura de pessoas.

Ao nos oferecer a possibilidade de leitura do extenso documento — daqueles tão citados mas nunca vistos — Ana permite uma aresta participativa de avaliação. A ‘‘mágoa’’ de Lacerda explicaria a obsessão com que se lançava em denunciar ‘‘vermelhos e lacaios de Moscou’’ em qualquer lugar. A hipócrita moralidade da classe média emergente atacava Nelson Rodrigues, sucesso na Última Hora com a coluna de costumes A vida Como Ela É, chegando a ser citada no depoimento de Lacerda na CPI que tabulou em 48 colunas os ‘‘temas depravados’’ sob financiamento público.

Também é importante a reprodução da longa correspondência — mantido até o timbre do Waldorf Astoria Hotel/NY — entre o conselheiro político Valentim Bouças e Vargas, analisando os reflexos preocupantes dos EUA sobre a política de controle da remessa de lucros decretada.

O livro detalha a campanha e os desdobramentos do processo contra a Última Hora por ‘‘favorecimento do dinheiro público do Banco do Brasil’’ — a peça de resistência dos ataques de Lacerda a Wainer que rendeu CPI no Congresso. Ana demonstra que muitos outros veículos de comunicação estavam também na lista (fac-símile) dos empréstimos do BB, mas o alvo era a Última Hora.

Aí é onde a manipulação de mídia mais se explicita. Até o evoluir dos acontecimentos com a abertura dos microfones da Rádio Globo para a oratória de Lacerda e as imagens da TV Tupi para que a autora classifica como ‘‘o fantástico show da raiva’’, que começou com dez minutos, em 1953, e logo passou para uma hora, próximo a agosto de 1954.

Lacerda usou pela primeira vez a TV interativa, pois recorria a um quadro-negro para dar crédito aos ataques e um telefone onde supostamente recebia perguntas e respondia. Ampliava-se o cerco. Mas a autora também desmistifica a tal ‘‘conspiração do silêncio’’ sobre Vargas publicando estatísticas do Anuário Brasileiro da Imprensa de maio de 1952 em reportagem de Genival Rabelo. O tratamento por um jornal e outro do fato fundamental que foi o suicídio de Vargas é rico para a análise de manipulação de mídia.

Na verdade, assistia-se ao combate entre o Brasil nacional-sindicalista de Vargas e o Brasil mais alinhado a uma crescente internacionalização da economia. A paixão era tal que não havia coerência nos ataques. A Tribuna, porta-voz da UDN, chegou a a combater a participação do capital estrangeiro na Política Nacional de Petróleo de Vargas. Era contra, cegamente. Mas, pelo ‘‘é dando que se recebe’’ da época, consegue emplacar o udenista Juraci Magalhães na presidência da Petrobrás.

O economista do PT, Paul Singer, na apresentação do livro, ressalta como a autora soube captar as mudanças na relação entre os EUA e o Brasil, pois havia o interesse norte-americano em um tipo de desenvolvimento sem o controle absoluto do Estado. Singer fala da ambigüidade de Vargas — ‘‘não era Castro nem Allende, mas uma estranha combinação de astúcia e idealismo, manobrismo e visão’’ — isso em um país rural em confronto com o crescente país urbano, e sob ansiedade da juventude na época que desejava rompimentos radicais.

Ana permeia seu trabalho com reflexões pertinentes para qualquer época sobre o próprio fazer jornalístico. Diz ela: ‘‘Tentar entender os bastidores de uma notícia, mesmo que seja por meio de exemplos do passado, é exercício para um repórter. Primeiro, porque tais circunstâncias quase sempre são omitidas pelos responsáveis editoriais. Segundo, porque conceitos como objetividade, imparcialidade e liberdade de imprensa são padrões ideais no jornalismo, objetos de discussão quanto à sua viabilidade na prática das redações. São conceitos quase sempre discutidos no plano abstrato, não vinculados à realidade industrial da produção de notícias e à dependência da classe política em relação à mídia, que omite ou divulga seus atos à opinião pública, numa sociedade democrática e representativa como era a brasileira no período estudado’’.

SERVIÇO

Lacerda x Wainer, o Corvo e Bessarabiano, de Ana Maria de Abreu Laurenza, Editora Senac-SP / Fax: 011-887-2136 / 248 páginas

 

TRECHOS

A primeira contradição que abala a crença daqueles que entendem a Última Hora como um jornal de esquerda, quase revolucionário, é a seguinte: por que Getúlio Vargas e seu grupo político, ao implementarem uma política econômica que objetivava o desenvolvimento capitalista do país, liberaram recursos para Samuel Wainer montar um jornal de esquerda? Será que a participação, naquele momento, da classe operária como apoio da política do governo tinha alguma coisa a ver com ‘‘ser de esquerda’’?

Outra questão. Por que a Tribuna da Imprensa, tradicionalmente defensora do capital estrangeiro, em parceria com a UDN, bombardeou o Programa Nacional do Petróleo e a criação da Petrobrás, apresentado ao Congresso pelo Executivo? Particularmente, investindo contra uma brecha nos estatutos do Programa que permitiria a compra de ações da Petrobrás com direito a voto por parte de instituições jurídicas formadas por pessoas físicas não obrigatoriamente brasileiras?

Essas contradições quebram a camisa-de-força das posições até agora apresentadas para esses jornais e indicam um universo rico e tumultuado de uma atividade profissional, a jornalística, que transforma o fato em notícia, em seu processo de produção, e estampa a versão da verdade em seu produto final, utilizando-se de matéria-prima, processo produtivo e produto final com amplas implicações e forte impacto na sociedade contemporânea.

Esse forte impacto que, naquele momento, pode ser avaliado através do suicídio de Getúlio Vargas, uma resposta extrema do Executivo à crise institucional que se desenrolou no Brasil a partir da rivalidade entre a Última Hora e a Tribuna da Imprensa, ainda se mantém, obviamente neutralizado pelo tempo. Última Hora e Tribuna da Imprensa produziram e divulgaram idéias a respeito do modelo de desenvolvimento político-econômico brasileiro que, passados quase 50 anos, ainda são encontradas no ideário do Brasil contemporâneo.(…)

De maneira geral, quando existe liberdade de expressão numa sociedade, cobra-se da imprensa imparcialidade, compromisso com a verdade, objetividade. Nessa análise da Tribuna da Imprensa e da Última Hora, ao serem revelados seus compromissos extra-editoriais, não é mais possível avaliar o noticiário publicado por esses dois jornais, nesse período estudado, sem dimensioná-los de outra forma. Não mais como fontes históricas independentes dos fatos ocorridos, mas como um estudo de como a imprensa pode ser utilizada para apoiar ou criticar a ação governamental.

Esses dois vespertinos, quando chegavam às bancas, causavam espanto, indiferença, comoção, e o mais importante, levavam ao leitor uma versão dos fatos, uma espécie de mapa orientador para que ele pudesse sair às ruas e exercer seu papel de cidadão. É por esse feito causado pela imprensa ao cidadão, uma espécie de instrumento que o auxilia em sua sobrevivência civil, que se justifica o redimensionamento dos papéis da Última Hora e da Tribuna da Imprensa na história do jornalismo brasileiro, embutidos na revelação de sua complexidade estrutural.

A relação entre a história recente do Brasil e a produção editorial da Tribuna da Imprensa e da Última Hora, iluminado pelos impasses contemporâneos do país, principalmente no redimensionamento do papel do Estado, têm a função básica de resgatar, ao menos na produção histórica da imprensa brasileira, a transparência desejada de um órgão de imprensa, perante a realidade construída das páginas dos jornais.

Não há dúvidas de que os direitos sociais e políticos do cidadão comum seriam muito mais aviltados nas sociedades contemporâneas se a imprensa não existisse. Porém, mesmo uma imprensa que goze de liberdade de expressão deve ser analisada a partir de suas circunstâncias editoriais, para que o leitor tenha a possibilidade de avaliar o alcance e o contexto de uma notícia.

A avaliação dos desdobramentos ocorridos a partir das diferenças editoriais entre a Tribuna da Imprensa e a Última Hora localizou reflexos dessa divergência no conflito de interesses existentes no Brasil do segundo governo de Getúlio Vargas. Verificou-se, ainda, que esses jornais, nesse período, não pairavam incólumes sobre as intrigas políticas, participando diretamente, e não apenas como observadores críticos, das ações governamentais.

Essas reflexões insinuam que a complexidade dos meios de comunicação numa sociedade democrática vai além da objetividade, liberdade de imprensa, imparcialidade e compromisso com a verdade, exigidos na retórica vazia da atividade jornalística.

(*) Copyright Correio Braziliense, 21/2/99.