Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Ciência é cultura, mas a mídia não percebe

Roberto Medeiros (*)

 

Nenhum dos quatro mais expressivos jornais brasileiros ? Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e O Globo ? lembrou-se de pautar. Mas em 24 de março completaram-se dez anos em que esses mesmos jornais, a exemplo de inúmeros outros, inclusive no exterior, entraram para valer numa história científica, originada na universidade americana de Utah.

Ali, numa entrevista coletiva, em 23/3/1989, dois cientistas lançaram ao mundo uma informação fantástica. Em escala de laboratório, haviam produzido energia mediante fusão de núcleo de átomos, usando equipamentos de bancada e em temperatura ambiente ? daí a origem do termo fusão a frio, em contraposição à fusão com temperaturas elevadas, na escala de milhões de graus centígrados.

Onde estava o mérito aparente do trabalho? No singular fato de a quantidade de energia que os dois cientistas diziam ter observado ser maior do que a energia gasta no seu processo de produção.

O inglês Martin Fleischmann e o americano Stanley Pons, os dois cientistas que os repórteres entrevistaram, não podem ser rotulados de aventureiros. O currículo acadêmico de ambos é expressivo. O setor de comunicação da Universidade de Utah municiou os repórteres com um alentado release de 101 linhas (com embargo até às 13 horas daquele dia 23).

A informação era quente demais. O principal comentário do jornalista Dan Rather, no noticiário Evening News, da rede CBS, em 23 de março de 1989, foi sobre a fusão a frio. Afinal, encontrar alternativas para produzir energia é uma enorme motivação para cientistas e tecnólogos. Algumas das fontes atuais são caras demais, poluentes demais, perigosas demais e os recursos naturais de algumas dessas fontes são finitos.

Ainda que em escala experimental, em ensaios de bancada de teste, o que Pons e Fleischmann apontavam eram indícios de que era possível obter energia por um processo no qual a principal matéria-prima ? o elemento deutério ? é virtualmente inesgotável na natureza, porque é obtido a partir da água existente nos oceanos.

Aos quatro ventos

De Utah para o mundo, a notícia espalhou-se rapidamente. O jornalismo científico viveria, nos três meses seguintes, momento especial. Somente nos quatro jornais brasileiros, entre 24 de março e 30 de junho de 1989, detectei nada menos do que 224 textos sobre o tema fusão a frio, ao elaborar dissertação de mestrado, defendida na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (Ciência e Imprensa ? a fusão a frio em jornais brasileiros. Dissertação de Mestrado defendida em 12/6/1996 na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo; 205 páginas mais anexos. Disponível na Biblioteca Central da Unicamp). No período mencionado, a Folha de S.Paulo publicou 68 textos, O Estado de S.Paulo 45 textos, o Jornal do Brasil 56 textos e O Globo 55 textos, em forma de reportagens, notas, editoriais e artigos.

Além do interesse jornalístico, outro fenômeno interessante foi a replicação da experiência em inúmeros centros de pesquisa, inclusive no Brasil. Tão logo circulou a notícia vinda de Utah, grupos puseram a mão na massa, ou as pipetas na bancada, muniram-se de equipamentos improvisados em muitos casos a partir de sucatas de outros equipamentos e puseram-se a realizar experimentos. Objetivo disto tudo: confirmar ou não o que os dois colegas cientistas de Utah estavam dizendo.

É um caso paradigmático, este. Nunca a Ciência e seus expoentes mais eminentes, os físicos e os químicos, expuseram-se de maneira tão pública. Diariamente eram convocadas entrevistas para anunciar progressos nos experimentos.

O Brasil também deu sua contribuição. Grupos localizados em instituições de pesquisa no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais deixaram por um momento de lado o que faziam e em poucos dias estavam tentando repetir o experimento Fleischmann e Pons.

Revelando o quanto de província ainda existe na alma dos jornalões brasileiros, os do Rio de Janeiro tratavam de enfatizar os feitos das equipe ali sediadas (obviamente, escudados no princípio elementar do critério editorial da “proximidade”). Os de São Paulo, também obviamente, tratavam de cuidar com mais ênfase dos feitos paulistanos.

A colaboração dos pesquisadores envolvidos foi total. Boletins diários eram emitidos. Resultados foram prometidos com dia e hora certos à imprensa. Fotos produzidas fizeram parte do cardápio oferecido ao leitor. A mútua desconfiança existente entre jornalistas e cientistas cedeu lugar a uma estreita cooperação. E assim, o jornalismo científico saiu de seus limites convencionais, pois a sucessão de pautas acabaria por relevar os bastidores da Ciência, com as intrigas, contradições e acusações entre os personagens envolvidos.

Este rico material jornalístico publicado nos quatro expressivos jornais brasileiros foi exaustivamente estudado em minha dissertação de mestrado. Queria saber, como hipótese primeira, se os textos correspondiam às características modelares indicadas na literatura sobre o jornalismo científico. Outra hipótese a ser respondida era se os textos jornalísticos são capazes de propiciar, em sentido geral, uma visão abrangente sobre o processo de desenvolvimento do trabalho científico.

Ficou evidenciado que quatro características amplamente recomendadas para os textos de jornalismo científico manifestam-se nas matérias sobre o episódio fusão a frio, a saber: 1) relação do fato científico em si com a aplicação (que foi o grande mote para gerar tamanho interesse jornalístico, ao associar resultados experimentais com construção de fontes energéticas inesgotáveis); 2) observância ao ritual científico (o tema foi motivo de pautas específicas, pois Fleischmann e Pons divulgaram publicamente o assunto antes de fazê-lo entre seus pares cientistas); 3) contextualização do fato e o uso de analogias (mecanismo de linguagem que favorece o entendimento por parte do leigo); e 4) a descrição de métodos e processos ? também observada com clareza nos textos analisados.

Em relação à segunda hipótese, a análise dos textos evidenciou que o leitor (desde que tenha lido, em um dos quatro jornais estudados, a seqüência de textos) foi levado a penetrar nos bastidores de acontecimentos que se desenrolam, na maioria das vezes, de maneira silenciosa, em especial no mundo da Ciência. Imbricações do fato central ? a experiência de Fleischmann e Pons em Utah ? com a economia, a política e a sociedade foram objeto de textos jornalísticos.

Evidenciou-se, também, que falta ao noticiário ? mesmo favorecido com as repetidas suítes, como se observou neste caso ? um certo didatismo capaz de colocar o leitor em contato com os aspectos teóricos que envolvem todo o trabalho experimental científico. É praticamente nula a informação sobre o arcabouço teórico que sustenta a experimentação, sempre vista por um ângulo tecnicista, enfatizador dos mecanismos e materiais necessários para produzir a fusão de núcleos atômicos.

Para além das duas hipóteses, a dissertação pôde ainda ? sempre ancorada em princípios metodológicos e análise exaustiva documental (aí incluído, por exemplo, o release inicial da Universidade de Utah) ? verificar o seguinte:

  • Os cientistas foram fortemente motivados a repetir a experiência a partir da participação ativa e atípica da imprensa.
  • A permanência do tema em pauta ? por quase 100 dias ? permitiu ao leitor ter acesso a uma gama de informações que não são comuns no jornalismo científico. A Ciência foi despida do seu manto de integridade e perfeição e mostrada como um ramo de atividade profissional no qual não faltam os ingredientes humanos da cobiça, da intriga, da incredulidade, da incerteza, da pressão.
  • Os textos analisados evidenciam que o jornalismo científico também incorpora uma prática que toma conta da imprensa em geral, no Brasil: não costuma ouvir versões diferentes sobre um mesmo fato. Enquanto o material vindo do exterior, desde o primeiro momento do episódio, continha opiniões variadas, o material produzido no Brasil apoiava-se constantemente nas fontes envolvidas com a repetição da experiência. Esta crença cega na fonte envolvida com o fato talvez seja reflexo da idéia generalizada de que o jornalismo científico deva ser, perante a sociedade, um mecanismo de afirmação unívoca da própria Ciência, ao encampar a opinião autoral e adotar o pressuposto de que, se é uma afirmação científica, nada mais há a fazer senão aceitá-la sem restrições.

Evidencia-se que a Imprensa comprou, desde o primeiro momento, as argumentações oferecidas pela Universidade de Utah no release distribuído na entrevista coletiva. Na verdade, ao percorrer o caminho da notícia desde a fonte primária de emissão, verificamos que as argumentações contidas no release foram imediatamente aceitas pelos 20 repórteres que compareceram à entrevista coletiva, em 23/3/1989.

Gancho de pauta

No caso fusão a frio fica evidenciada a ação passiva da imprensa. O processo de divulgação foi deliberadamente iniciado pela vontade da Universidade de Utah. Mesmo o material publicado pelos jornais Wall Street Journal e Financial Times, no dia da entrevista coletiva, não foi um “furo” desses jornais, pois a informação lhes foi passada propositadamente e não ocorreu mediante investigação dos respectivos editores ou repórteres.

Esta passividade é indicativa de que mesmo os editores experientes de Ciência & Tecnologia (no Brasil ou no exterior) não parecem manter-se suficientemente antenados com linhas de pesquisa potencialmente promissoras. Pode-se contra-argumentar, a favor dos jornalistas, que Fleischmann e Pons conseguiram, nos cinco anos precedentes, manter sigilo sobre as experiências. A passividade ? com a aceitação plena do release de Utah ? evidencia-se com a ausência de informações que somente estariam presentes nos jornais caso os jornalistas tivessem feito perguntas que, aparentemente, não fizeram.

Desde 1990, quando iniciei os procedimentos que culminariam com a dissertação de mestrado, em 1996, ouvi de pessoas com formação universitária colocações que poderia sintetizar como representativas de um senso comum dominante, quando se trata de fazer um juízo da imprensa: a fusão a frio foi uma invenção de dois pesquisadores inescrupulosos aos quais a imprensa deu ouvidos e, com isto, diminuiu ainda mais suas credenciais para divulgar Ciência & Tecnologia.

O que este senso comum escamoteia e, paradoxalmente, acaba por revelar?

O público mais esclarecido sabe que a ciência é um terreno minado de incertezas ? é a ignorância sobre determinado tópico que impulsiona a mente criativa dos cientistas ?; mas, simultaneamente, ainda é muito arraigada a idéia de que essas incertezas não devem ultrapassar a fortaleza em direção à planície, lugar dos leigos.

Esta transposição deveria ser feita somente nos momentos oportunos, quando as incertezas (de conhecimento interno, dos cientistas) estivessem superadas e restasse somente mostrar que, mais uma vez, prevaleceu o triunfo da razão. Nesse sentido, a imprensa (e, em particular, o ramo especializado de jornalismo científico) deveria ser um mero repositório de informações seguras, objetivas, incontestes.

A fusão a frio é uma quimera? O anúncio em 1989 foi precipitado? Interesses subjacentes à Ciência forçaram os dois químicos ? Fleischmann e Pons ? a colocarem seus nomes no pelourinho? A imprensa foi imprudente ao “comprar” a história? O questionário é imenso e pode servir para novos estudos acadêmicos. Talvez o senso comum limite a visão e impeça a compreensão de um fenômeno muito complexo, tanto do ângulo estritamente científico (a fusão em temperatura ambiente) quanto do ângulo da ação jornalística (motivada pelo fato científico).

Creio que um dos numerosos personagens ouvidos nesta história resume bem a complexidade do tema, pelo menos do primeiro ângulo. Carlo Rubbia, eminente cientista com status de Prêmio Nobel em Física, numa sessão científica à qual Fleischmann compareceu, declarou: “As descobertas jamais nascem adultas. E essa de Fleischmann e Pons não é uma exceção à regra: deve obedecer à mecânica do conhecimento científico. A verdade é que sua experiência deverá ser repetida muitas vezes”. O mesmo Rubbia, na primeira hora, já havia advertido, de modo quase poético: “A natureza não é tão gentil de presentear o homem com uma solução tão simples para um problema tão complexo”. O diabo é que sempre achamos que ciência é sinônimo de “Eureka!”

Obviamente, os textos sobre a fusão a frio contrapuseram-se a esse senso comum, ao trazer à tona diversos episódios que, em circunstâncias normais, tenderiam a ficar imersos e longe do conhecimento público. Do ponto de vista do direito à informação, é evidente que o leitor foi o beneficiário da decisão da imprensa de dar continuidade aos inúmeros e controversos aspectos que permearam o episódio da fusão a frio.

Os textos sobre fusão a frio publicados entre 24/3/1989 30/6/1989, na Folha, Estado, JB e Globo, contêm equívocos típicos do despreparo dos jornalistas frente à complexidade do tema (que, diga-se ainda a favor dos jornalistas, é juízo também aplicável à maioria dos cientistas ? mesmo os químicos e físicos). Vale lembrar que os repórteres que cobriram o episódio seguiram a clássica receita de ouvir fontes consideradas credenciadas, no âmbito acadêmico, dispondo de escassos recursos referenciais capazes de lhes propiciar uma mais adequada contestação a certas afirmações feitas pelas fontes.

Mas ficou evidenciado também que os textos analisados mostram que o jornalismo científico pode ir muito além de seus contornos habituais, inclusive manifestando-se por meio de gêneros pouco usuais nesta área ? em especial na prática cotidiana da imprensa brasileira ? ao recorrer, para além da informação factual, ao texto de opinião e interpretação.

A data redonda de dez anos do episódio era um excelente gancho para pauta. Seria interessante investigar, por exemplo, o que Fleischmann e Pons têm realizado ou, no caso dos cientistas brasileiros, quantos deles ainda trabalham com o tema, quais as perspectivas que existem na área da fusão a frio.

Ao não fazê-lo, dão os editores responsáveis por Ciência & Tecnologia a nítida impressão de que continuam sendo motivados exclusivamente por informações que lhes chegam de fora das redações. Desta vez, a Universidade de Utah não mandou release.

(*) Jornalista, mestre em Comunicação pela ECA/USP, assessor de Comunicação do Laboratório Nacional de Luz Sincrotron/CNPq, professor da Universidade de Mogi das Cruzes, SP