Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Clóvis Rossi

COBERTURA DE GUERRA

“A vítima na guerra da notícia”, copyright Folha de S. Paulo, 30/03/03

“Noite dessas, em debate sobre o ataque ao Iraque na TV-5, o canal a cabo da francofonia, um ex-presidente da organização ?Médicos sem Fronteira?, disse que ?nunca antes houve tantos jornalistas no teatro de operações, mas nunca antes houve tanta desinformação?.

Exagero à parte (desinformação é tão ou mais comum em guerras do que tiros), o fato é que choca comprovar que, mesmo com a cobertura ao vivo e em cores dos ataques, mesmo com a tecnologia dos videofones, mesmo com a facilidade de comunicações hoje existente, é tremendamente difícil entender o que está acontecendo.

Seria tentador concluir daí que o primeiro derrotado do conflito é o jornalismo. Talvez até seja verdade, mas é sempre bom tomar cuidado com as generalizações. Por mais que elogio em boca própria seja vitupério, é óbvio que os bravos Sérgio Dávila e Juca Varella estão prestando inestimável serviço ao leitor.

Quem, na verdade, está perdendo a guerra é o jornalismo norte-americano. O que torna a derrota mais grave é o fato de que a mídia dos Estados Unidos é tida como modelo em todo o mundo, em especial no Brasil.

Um modelo que se tornou mais respeitável ainda durante a guerra do Vietnã, em que a independência e a crítica foram exercidas em circunstâncias extremamente delicadas pelo emocionalismo de toda guerra.

Até os atentados de 11 de setembro, qualquer leitor/telespectador que só pudesse consultar uma fonte jornalística internacional recorreria ao jornalismo norte-americano e estaria razoavelmente bem servido.

Agora não. No caso do ataque ao mercado de Bagdá, na quarta-feira, a britânica BBC fez um trabalho muito mais decente e informativo. E trata-se de uma emissora pública, financiada por um governo que entrou com tudo na guerra.

Não é só a BBC. A Rede Globo, mesmo com todas as imensas limitações orçamentárias e sua pobreza comparativa em relação às redes dos EUA, deixa seu público mais informado.”

“?EUA têm estratégia errada?, diz Arnett”, copyright Folha de S. Paulo, 1/04/03

“O neozelandês Peter Arnett, famoso por ter sido o único jornalista a transmitir o bombardeio de Bagdá durante a Guerra do Golfo, em 1991, num episódio que colocou a emissora de notícias CNN no mapa mundial da mídia, foi demitido ontem de seu atual empregador, a emissora NBC, por ter falado mal da estratégia militar dos EUA durante entrevista à TV estatal iraquiana. Horas mais tarde, foi contratado pelo tablóide britânico ?Daily Mirror?, feroz opositor à guerra.

?Consideramos um erro Peter Arnett ter dado uma entrevista à TV estatal iraquiana, especialmente em tempos de guerra?, disse a NBC em comunicado.

?Foi um equívoco também discutir considerações e opiniões pessoais na referida entrevista.? Na mesma ocasião, o jornalista de 68 anos pediu desculpas ao público americano. ?Quero me desculpar com o povo americano por ter feito um mau julgamento?, disse.

Antes, durante o fim de semana, o jornalista havia dado uma entrevista à Folha em Bagdá na qual também criticou o plano norte-americano para a tomada da cidade. Arnett estava na cidade enviado pelo MSNBC, o canal de notícias da NBC, e para o canal National Geographic Explorer.

Não é sua primeira polêmica: há quatro anos ele foi demitido da CNN depois de o documentário ?Operation Tailwind?, que alegava que os EUA tinham usado o gás sarin no Laos em 1970 e era narrado por ele, ter sido completamente desmentido.

Arnett já cobriu 19 conflitos ao longo de sua carreira e foi ganhador do Prêmio Pulitzer. Leia trechos de sua entrevista:

Folha – Qual a diferença principal entre a Guerra do Golfo e esta?

Peter Arnett – Da primeira vez, quando começou a guerra, eu estava sozinho, todo mundo tinha deixado a cidade ou sido expulso. Além disso, o bombardeio foi muito pior então. Não havia água, não havia eletricidade, telefone. Tudo era mais perigoso. Mas, quando os americanos invadirem a cidade, acho que aqui vai ficar tão ruim quanto em 1991.

Os EUA não tomam uma capital ou uma grande cidade inimiga de assalto desde a Segunda Guerra. E têm a estratégia errada para esta guerra, estavam superconfiantes e contavam com um apoio popular local que não veio.

Mas há semelhanças entre as duas guerras no Iraque, claro. É o mesmo governo, o mesmo vice-premiê, o mesmo ministro da Informação. Veja, o Iraque não muda. O resto do mundo, sim, mas o Iraque continua o mesmo há muitos anos.

Folha – Na primeira guerra, a CNN era a única emissora a transmitir, com o senhor. No meio do caminho, eles o demitiram. E agora a CNN foi expulsa, e o sr. continua. Consegue apreciar a ironia desta situação?

Arnett – (Risos) Sim, acho irônico. Mas não se iluda. Da primeira vez a CNN queria ir embora e eu que quis ficar. Então, fui eu que cobri a guerra, não a CNN. Eu trabalhava para eles, mas eles partiram. Agora, eu trabalho para a NBC. E o que aconteceu? Todos eles partiram de novo, e eu fiquei. Então, o mérito nunca foi da CNN ou da NBC, mas meu.

Folha – Como e quando o sr. acha esta guerra vai terminar?

Arnett – A missão desta coalizão é derrubar o governo e eles não vão parar antes disso.

Folha – Não há um plano B, uma trégua, um acordo negociado, um exílio para a família de Saddam Hussein em troca de não invadirem Bagdá?

Arnett – O único acordo diplomático seria a saída de todo o núcleo de Saddam Hussein do país. Isso não só acabaria com a guerra como acabaria com a polêmica toda. Os EUA ocupariam este país, que é a intenção deles, com ou sem Saddam.

Folha – E quando?

Arnett – Ninguém sabe. Basra ainda está lutando, e já estamos há doze dias em guerra. E Basra é uma cidade bem pequena se comparada a Bagdá. Pode levar um mês, dois meses para que a coalizão decida invadir a capital. Muitas pessoas vão morrer nas ruas, muitos prédios vão ser destruídos, vai ser tudo ou nada, quem sabe quanto vai durar?

Folha – A coalizão parece estar errando além da conta ao atingir alvos civis. Com isso, estão perdendo qualquer sombra de apoio que poderiam ter da população local, o sr. não acha?

Arnett – Houve dois ou três, não são muitos, se você levar em conta o número de bombas. Mas acho que esses incidentes vão aumentar muito com o passar dos dias. É pena, mas é inevitável.

Folha – Como o sr. se protege?

Arnett – Cobri muitas guerras, então sei o que fazer. Conheço o som de uma bala, sei como os exércitos se movem. Então, não me assusto e não saio correndo. Além disso, tenho dois refúgios aqui na capital para onde posso ir. Tenho dois carros especiais, que me levam para onde quiser.

Tenho uma estratégia de fuga para quando for preciso. Ando o tempo todo com seguranças, e seguranças iraquianos, não estrangeiros. No Afeganistão e na Somália, você podia contratar seus próprios soldados. Planejo fazer o mesmo aqui. Tenho colete à prova de balas, tenho capacete, umas duas máscaras antigás.

Eu planejo sobreviver a esta guerra. Não estou aqui para ser mártir ou herói. Só quero contar boas histórias, é o que venho fazendo por 40 anos. Não por glória, nem por honra, só pela notícia. Quando achar que não dá mais, vou embora.

Folha – O sr. não tem medo?

Arnett – Não. Do que eu teria?

Folha – De morrer?

Arnett – A bomba mais próxima que eu vi caiu a quase um quilômetro de distância de mim. Os norte-americanos est&atildatilde;o jogando bombas em alvos militares, não há por que ter medo.

Folha – Mas já houve ao menos três ataques em áreas residenciais ou comerciais por engano.

Arnett – Mas eu não estava lá, estava? A realidade é que esta é uma cidade de 5 milhões de habitantes. Até agora, talvez cem pessoas tenham morrido. E já foram jogadas pelo menos 2.000 bombas sobre a cidade. Não parece tanto assim, parece? Além disso, não estamos falando de armas terroristas. Em Israel, um homem-bomba pode matar 20 civis, porque este é o alvo deles. Estas bombas não têm civis como alvo, mas o governo, os comandantes e as telecomunicações.”

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“Atingidas, duas TVs saem do ar”, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/03

“Carregando debaixo do braço o motor de um dos quatro mísseis terra-ar Tomahawk que teriam atingido a sede da rádio e televisão iraquiana, o ministro da Informação do país, Mohammed Said al Sahaf, confirmou que houve dois ataques ao prédio da emissora, um na noite de terça-feira e outro na manhã de ontem.

?Dos quatro, conseguimos derrubar um?, afirmou Al Sahaf. Pela manhã, o prédio que abriga os estúdios dos três canais televisivos e das três emissoras de rádio soltava fumaça preta e mostrava sinais de rachadura e janelas quebradas.

Apenas um canal de vídeo e um de áudio continuam no ar. Pararam de transmitir por tempo indeterminado a TV Iraque e a TV Jovem, dirigida por Uday Hussein, primogênito de Saddam.

O primeiro ataque da coalizão militar anglo-americana ocorreu por volta das 23h30 locais (17h30 de Brasília) de terça e tirou todas as TVs do ar por algumas horas.

De volta com um gerador de emergência, o sinal sumiu de vez às 4h50 de hoje, após nova explosão. No final da manhã, voltaram apenas as transmissões do canal por satélite, em caráter precário e de local não identificado.

O ataque foi condenado por diversas entidades internacionais civis e de jornalismo, mas o prédio foi considerado um alvo militar legítimo pelas Forças Armadas dos EUA, já que a emissora transmitiria ordens da direção para as tropas que combatem no sul do Iraque contra a coalizão invasora.

Retaliação

Rumores na cidade davam conta de que seria uma retaliação dos Estados Unidos ao fato de a emissora de TV iraquiana ter exibido imagens de prisioneiros de guerra norte-americanos e de corpos de soldados da coalizão.

Segundo a TV norte-americana CBS, a emissora iraquiana teria sido atingida por uma bomba experimental eletromagnética secreta, chamada de ?bomba E?, que provoca uma emissão de microondas que paralisa computadores, radares e rádios, corta a energia e afeta a ignição de carros e aviões.

O Pentágono não confirmou a informação, mas afirmou que ao menos 40 mísseis de cruzeiro foram lançados de embarcações no golfo Pérsico e no mar Vermelho tendo como alvo locais que dispunham de contato com satélite.

Guarda Republicana

Durante todo o dia de ontem, bombas e mísseis continuaram a cair sobre Bagdá, pelo menos 24 deles no sul da cidade, tendo como alvo principal posições da temida Guarda Republicana.

No final da noite, era possível ouvir o que parecia ser barulho de artilharia vindo daquela área, fato não confirmado pelo governo iraquiano, segundo o qual as tropas da coalizão estão longe da capital.

Na cidade inteira, as barricadas ganharam reforço em sua estrutura, às vezes até com sacos de adubo, e bandeiras nacionais, que foram fincadas em cada esquina. Segundo o ministro da Informação iraquiano, mais um avião e dois helicópteros norte-americanos teriam sido derrubados em Bagdá nas últimas 24 horas.”

“?Estilo BBC? é alvo de críticas”, copyright O Estado de S. Paulo / The Washington Post, 29/03/03

“A âncora entoa: ?Seja paciente, disse Saddam Hussein, hoje.

A vitória está próxima.? Pouco depois, a imagem pára numa pilha de escombros. ?Os iraquianos dizem que isto é – ou foi – uma escola para meninas em Basra.? A apresentadora é Lyse Doucet, que trabalha para a BBC World – emissora de tom tão diferente do das redes americanas que, às vezes, parece estar falando de outra guerra. O segredo, diz o diretor da BBC News, Richard Sambrook, em Londres, é ?não adotar pauta ou valores de determinado país. Tentamos dar às notícias uma abordagem internacional, numa dimensão bem maior que qualquer rede americana. Tentamos mostrar uma perspectiva a partir de outros países árabes.?

Com esse estilo de cobertura que procura abranger todos os lados da guerra, a BBC tem sido alvo de uma saraivada de críticas. ?Cada vez mais a BBC está sendo percebida como a voz das forças contrárias à guerra?, escreveu o expatriado inglês Andrew Sullivan em seu site na internet. Das autoridades britânicas, chovem mensagens dizendo ser preciso ?ressaltar ainda mais a história de violações de direitos humanos do regime de Saddam Hussein?. ?Acham que não estamos dando ênfase suficiente aos atos errados do inimigo,? diz Sambrook.

O tom moderado faz a transmissão americana parecer fanaticamente patriótica – por trás das notícias parece haver o consenso de que os EUA lutam por uma causa justa – e os correspondentes estão abertamente solidários à essa luta.

Na transmissão de terça-feira da BBC World, a âncora em Washington, Mishal Husain, pareceu cética quanto a relatos militares britânicos sobre uma revolta em Basra, no sul do Iraque. ?O Iraque negou que tenha havido um levante.? A seguir, o ministro de Informações do Iraque, Mohamed Said Sahhaf declarou: ?Nego oficialmente as alucinações dos americanos divulgadas na CNN e outras redes. Os invasores encontraram resistência e morte. Alegações contrárias são apenas propaganda política.?

Em outro dia, da Jordânia, Doucet disse que ?muitos comentaristas alegam que não é apenas Saddam que está sendo atacado, mas o Iraque, sua honra e a honra do mundo árabe?. Um repórter leu a manchete de um jornal árabe: ?Dia de gloriosas perdas?.

Sambrook ressalta que a maioria dos britânicos se opôs à guerra antes dos primeiros ataques. ?Se apenas adotássemos os argumentos a favor da guerra, teríamos perdido metade da audiência. Há uma forte massa de opinião na Europa para a qual as razões para a guerra não estão nítidas. Nossa cobertura tem de refletir isso.?”