Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Clóvis Rossi

COBERTURA DA GUERRA

"Jornalistas são alvo de ataque de soldados", copyright Folha de S. Paulo, 06/04/02

"Se uma guerra é também uma batalha pela conquista da mídia, o governo de Israel está perdendo, ainda mais depois de suas tropas terem atacado os jornalistas que ousaram dirigir-se a Ramallah para acompanhar o encontro entre Iasser Arafat e o enviado norte-americano, Anthony Zinni.

Eram 25 jornalistas em cinco veículos, devidamente blindados e identificados como da mídia, mas, assim mesmo, foram atacados com bombas de gás lacrimogêneo e granadas de ruído, além de balas de borracha.

Ninguém se feriu, mas, como ironizou depois Michael Holmes, da TV CNN, ?não é confortável servir de alvo?. O carro da CNN foi atingido pelas balas de borracha.

O general Giora Eiland, chefe de Planejamento das IDF (Forças de Defesa de Israel), justificou mais tarde: ?As IDF já haviam anunciado publicamente que Ramallah é zona militar fechada?, o que significa que ninguém pode entrar ou sair dela, situação em que estão outras sete localidades palestinas.

Justificou também o gás lacrimogêneo: ?É, às vezes, a única maneira de dispersar pessoas sem causar danos irreversíveis?.

Não convenceu os jornalistas, que reclamaram dos disparos de rifles. Eiland disse que as cápsulas de gás são de fato disparadas de rifles, no que parece um tiro, mas não mencionou as balas de borracha.

Que Israel está perdendo a batalha da mídia, fica claro pela reação internacional.

A Federação Internacional de Jornalistas pediu que ?os israelenses deixem de pôr sob a mira o pessoal da imprensa?."

"A realidade do show", copyright Folha de S. Paulo, 05/04/02

"Não me dei ao respeito de assistir a nenhum desses shows da realidade que entraram em moda na TV de alguns países, Brasil inclusive.

Nada tenho contra eles, apenas as realidades que eles mostram não me interessam. Não me comovo com elas, nem me revolto pelo fato de um cara dormir de boca aberta ou fechada, de determinada mulher ser assim ou assado. A realidade desses programas é óbvia, e a interação que provocam, excitando o público a torcer por um ou por outro, é primária. Ou, como se dizia antigamente, ??de quem não tem nada que fazer?.

Infelizmente, há um show da realidade diferente das produções mais ou menos macetadas da TV. A crise do Oriente Médio, por exemplo, com seus desfiles de mortes e massacres, sua não-solução, é uma realidade que entra pelos nossos olhos, diariamente, e tem um significado de cruel advertência.

Entramos num novo século, num novo milênio, e a história do homem continua a fabricar um tipo de realidade abominável. Ao contrário da guerra na Ásia Central, que me parece episódica, em torno da caçada a terroristas, e que sempre existirá enquanto houver fortes e fracos, os conflitos entre israelenses e palestinos têm um DNA mais complicado, que envolve, queiramos ou não, a própria condição humana.

Não se trata de uma luta religiosa nem mesmo territorial, embora os dois ingredientes também atuem nas motivações de uns e de outros.

Lendo-se a Bíblia, que gerou as três principais religiões monoteístas, vê-se que a maldição do inimigo está presente em todos os textos. E o inimigo não é espiritual, mas guerreiro. Daí que até certo ponto eu considero a Bíblia uma obra em progresso, que continua sendo escrita com o sangue da estupidez humana."

 

Eugênio Bucci

"A bandeira do MST vai à Palestina", copyright Jornal do Brasil, 04/04/02

"Yasser Arafat estava ilhado em seu QG na cidade de Ramala, na Cisjordânia, cercado pelos tanques de Ariel Sharon por todos os lados, e mesmo assim o MST conseguiu chegar até ele. Inacreditável. Na segunda-feira, o Brasil acordou com Arafat sorrindo na capa dos grandes jornais. Sorrindo e segurando a bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Segurava-a com as duas mãos, como quem se prepara para estender a colcha sobre a cama, ou a toalha sobre a mesa. Ou como quem mostra um presente aos amigos. Ou, sejamos exatos, como quem mostra uma causa política para o mundo inteiro. Que imagem impressionante: Yasser Arafat promovendo a causa dos sem-terra brasileiros! Isso sim é agitação e propaganda. Nem o Greenpeace faria melhor. Não há limites geográficos para a capacidade do MST de produzir imagens sensacionais.

Na segunda-feira à noite, o Jornal da Record, de Boris Casoy, pôs no ar uma boa reportagem sobre a ida do agricultor gaúcho Mário Lill, da coordenação nacional do MST, ao Oriente Médio. A história começa no primeiro Fórum Mundial Social de Porto Alegre, realizado no ano passado, passa pelo contato com o barulhento camponês francês José Bové e daí desemboca na causa palestina. Bové estava com Mário Lill na delegação internacional que atravessou trincheiras até Ramala. A mulher de Mário Lill, Irene Manfio, que ficou por aqui, foi entrevistada pelas câmeras da Record. Respondeu às perguntas enquanto amamentava o filho do casal e foi firme ao declarar apoio à viagem do marido e à luta de Arafat. Ao final da reportagem, Casoy fez o seu comentário personalíssimo, sua marca registrada. Nesse caso, foi um comentário irônico, embora respeitoso. Ele não disse que o episódio era ??uma vergonha??, longe disso. Apenas brincou, insinuando que talvez os militantes brasileiros pretendessem fazer uma reforma agrária no Oriente Médio. Encerrou sua nota com aquele risinho seco, ultra-rápido e silencioso, emoldurado por um leve balançar de cabeça, com os olhos voltados para baixo.

Piadinhas à parte, o MST não foi até lá para fazer reforma agrária, mas para dizer de que lado está nessa guerra, um conflito diante do qual ninguém no planeta parece conseguir se manter neutro – mas ninguém consegue também assumir uma posição sem titubear. O MST foi lá dizer que apóia os palestinos. Pronto. Na lata. E também foi lá fazer divulgação de si mesmo. O internacionalismo do MST é marcado pela imagem de alto impacto e pela extrema consciência do modus operandi da mídia, que só é sensível às imagens espetaculares. Estamos diante de um internacionalismo-espetáculo ou, mais ainda, de um internacionalismo-espetáculo de esquerda. É espantoso. Esses conceitos, internacionalismo de esquerda e espetáculo, designam idéias antagônicas. Se há alguma coisa que o internacionalismo de esquerda deveria combater é justamente o espetáculo, ou seja, a indústria do entretenimento, a linguagem publicitária corroendo o pensamento, a redução da política a truques de marketing, a transformação das notícias mais trágicas em videoclipe, o esvaziamento em todos os sentidos. Mas não, o MST é ele mesmo um espetáculo sui generis.

O MST é um exímio fabricante de imagens polêmicas. Antes dessa, do Arafat, foi aquela imagem em que os militantes apareciam estirados nos sofás e nas poltronas da sala de visitas da fazenda dos filhos de FHC. Foi um choque. A visão daquela ocupação deseducada irritou até mesmo a alta cúpula do Partido dos Trabalhadores, que a desaprovou, alegando, com razão, que uma fazenda produtiva não deveria ser alvo do movimento. Alguns dirigentes de esquerda chegaram a temer que a foto da sala invadida representasse para a campanha de Lula o que a foto da montanha de notas de R$ 50 representou para a campanha de Roseana: um tiro fatal. Temeram indevidamente. Não houve maiores estragos. Imagem por imagem, a cena da sala tomada foi neutralizada pela cena seguinte, a dos invasores algemados, deitados de rosto contra o capim, imobilizados como bichos. Imagem por imagem, a violência da sala invadida foi anulada pela violência com que foram presos os trabalhadores. A campanha de Lula segue ilesa e a reforma agrária continuou na primeira página dos jornais. Ponto para o MST.

Para a estratégia do MST, parece secundário saber se suas imagens são ?positivas? ou ?negativas?. É como se essa história de ?positivo? ou ?negativo? fosse um atributo menor, conjuntural, coisa que muda com o vento, o que não deixa de ser verdade. Não dá para saber se essa é uma estratégia inteiramente planejada – creio que não é -, mas é uma estratégia compreensível, provavelmente instintiva. Durante décadas, a luta pela terra no Brasil foi condenada à escuridão pela imprensa brasileira. Foi só depois de uma novela, O rei do gado, de 1996, que o assunto entrou para a sala de visitas (sempre elas, as salas de visitas) das famílias brasileiras e, por aí, entrou para a agenda nacional. Desde então, a reforma agrária não sai mais das manchetes. Os trabalhadores sem-terra aprenderam, na base do sofrimento e da exclusão, que não se faz política sem visibilidade. Aprenderam que, sem visibilidade, não se tem cidadania. Sem visibilidade, ninguém conquista terra nenhuma. Nem no Brasil nem no Oriente Médio. Agora, o MST conseguiu que Arafat posasse de seu garoto-propaganda. Uma proeza. Não sei se isso é bom para Arafat, que também depende de visibilidade, mas certamente é bom para os sem-terra e melhor ainda para ajudar a apressar a reforma agrária no Brasil. E esta, a reforma agrária, quando acontecer de fato, penso que será boa para o país inteiro."