Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Câmera, protesto, ação

NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO

Luiz Antonio Magalhães

Desembarquei no Aeroporto Internacional de Dulles, em Washington, quase ao
meio-dia de 20 de março, pouco mais de 12 horas após o início
da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque. Viajei para a capital dos Estados
Unidos para proferir uma palestra sobre o início do governo Lula, a convite
de uma organização não-governamental chamada Esquel Group
Foundation. Enquanto esperava para retirar minha bagagem, pude acompanhar notícias
sobre a guerra: todas as televisões do aeroporto estavam sintonizadas
na CNN, que transmitia ininterruptamente o noticiário do conflito. A
primeira impressão foi de uma certa euforia da mídia local com
a perspectiva de uma batalha muito rápida e totalmente favorável
aos Estados Unidos.

Passei o resto do dia 20 terminando de preparar a palestra e acompanhando os
telejornais e alguns sites na internet, mas sobretudo a cobertura da CNN, que
prosseguia com um tom bastante favorável aos ataques americanos. No fim
da noite, a impressão que se tinha era que o regime do "ditador"
iraquiano estava prestes a ruir, tamanho o poderio das forças anglo-americanas.

Na manhã seguinte, fui logo cedo para o centro de Washington participar
do encontro da ONG, realizado em um prédio vizinho ao Capitólio,
a poucas quadras da Casa Branca. No caminho, a movimentação da
polícia não chegava a chamar muita atenção e tampouco
havia sinais de gente protestando contra a guerra. Quando a palestra terminou,
no final da manhã, fui ver de perto como estava a situação
no coração do império. A presença policial crescia
à medida que se aproximava da Casa Branca. Toda a área em frente
à sede do governo dos Estados Unidos estava bloqueada e, diante dos bloqueios,
um amontoado de turistas tirava fotos do prédio. Os policiais apenas
observavam. Nenhum manifestante dava o ar da graça.

Contornei o bloqueio e tentei ver se do lado oposto a situação
era a mesma. No caminho, encontrei a primeira manifestante contra a guerra.
Era uma senhora que, sozinha, empunhava uma plaqueta com o slogan "Not
in my name". Ela não ficou surpresa ao ouvir que era a primeira
manifestante que eu encontrava na cidade: "Washington é muito conservadora
e boa parte das pessoas aqui trabalham no governo ou em companhias que mantêm
relações estreitas com o governo. Mas você irá encontrar
mais gente protestando", disse.

Três quadras depois, na Lafayette Park, praça localizada bem atrás
da Casa Branca, os manifestantes somavam cinco. Comecei a conversar, mas fui
interrompido pela chegada de um fotógrafo. O rapaz simplesmente parou
a explicação que me dava sobre os motivos que o levavam a lutar
contra o seu presidente e correu para posar ao lado de seu indefectível
estandarte com a inscrição "No blood for oil". Preferi
não me alongar sobre os motivos do protesto, que já me pareceram
suficientemente claros, e, quando os flashes pararam, questionei sobre as chances
de George Bush dar ouvidos a tão pouca gente. "Ele não vai
ouvir mesmo se houver muita gente. Ele não foi eleito, a Suprema Corte
o colocou naquela sala", disse o jovem, apontando para o topo da Casa Branca.

Resolvi continuar andando pelo centro de Washington para sentir o clima na
cidade. Passei em frente das futuras instalações do Newseum, um
museu sobre a imprensa que será construído quase em frente à
National Gallery. A área hoje é apenas um estacionamento público,
mas já há o anúncio do início das obras e, ao lado,
um longo quiosque, parecido com um enorme ponto de ônibus coberto, onde
diariamente são expostas, em tamanho ampliado, as primeiras páginas
de cerca de cem jornais, a maioria norte-americanos, mas também de países
como França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Japão, China
e Arábia Saudita. Tive a sorte de poder ver ali o retrato do primeiro
dia da guerra, segundo a imprensa americana e mundial. Novamente, a impressão
que ficava era de que a guerra não poderia durar muito mais do que uma
semana. Em termos gerais, os jornais americanos pareciam panfletos pró-guerra
ou diários oficiais das forças de coalizão. Com exceção
do The New York Times, The Washington Post, Los Angeles Times
e até mesmo do USA Today, os jornais dos Estados Unidos tratavam
o começo do conflito como uma campanha de libertação do
povo sofrido do Iraque e saudavam os primeiros bombardeios sobre Bagdá,
além de enaltecer a potência e o aparato tecnológico da
máquina de guerra americana.

No fim do dia, estava bastante cético sobre a força da oposição
norte-americana: afinal, em quase seis horas de caminhada pelo centro de Washington,
foram exatamente seis os manifestantes que encontrei. Ao mesmo tempo, nos subúrbios
mais humildes da capital o que mais se via eram as bandeiras americanas desfraldadas
nas janelas, lembrando o Brasil em época de Copa do Mundo. Já
de volta ao Brasil, li a notícia de que a venda das bandeiras aumentou
20% nos primeiros dias do conflito.

Nova York, 22/3/03

Nova York, porém, mudou um pouco ? mas não muito ? a percepção
sobre o poder da reação interna dos americanos à guerra.
Desembarquei no aeroporto de La Guardia no final da manhã do dia 22 e
segui para Manhattan de ônibus. Mais uma vez notei o patriotismo do americano
que vive no subúrbio: a região de Queens, vizinha a Manhattan,
também estava repleta das bandeiras que vi em Washington.

Desci na Rua 125 e de lá tomei um táxi em direção
à Rua 59, onde ficaria hospedado na casa de um casal de brasileiros sobreviventes
do ataque às torres gêmeas (meu amigo trabalhava no 25? andar da
primeira torre e conseguiu deixar o prédio minutos antes do desabamento).
Entre a 125 e a 59, o motorista peruano me informou sobre a manifestação
contra a guerra, que àquela altura já estaria começando
em Time Square.

Deixei a mala na casa dos meus anfitriões e fui andando até a
praça, onde me informaram que a passeata já havia saído
rumo à Washington Square. Tomei o metrô e cheguei à praça
praticamente junto com as quase 200 mil pessoas que participavam do protesto.
Nem todas permaneceram em Washington Square, mas pelo menos um quarto do total
decidiu continuar protestando na praça.

Predominavam nitidamente os jovens brancos que pouco se diferenciariam dos
estudantes das universidades públicas brasileiras. A idade média
na praça certamente não passava dos 25 anos. A polícia
cercou alguns prédios públicos, talvez com medo de algum ativista
mais arrojado. O protesto foi pacífico, mas a bem da verdade, houve momentos
de tensão entre a polícia e os manifestantes, especialmente quando
dois ou três deles foram presos. De modo geral, porém, o ato terminou
com muita tranqüilidade, no final de uma ensolarada tarde nova-iorquina.

O tom da manifestação evidentemente era o do slogan "No
blood for oil", dominante nas palavras de ordem e nas performances dos
manifestantes, que eram tão mais entusiasmadas quão mais perto
chegavam as câmeras das redes de televisão e os flashes dos fotógrafos.
Também chamava a atenção o grande número de cartazes
e palavras de ordem sobre a falta de legitimidade do presidente Bush, acusado
de ter vencido a eleição no "tapetão" da Suprema
Corte.

Apesar do entusiasmo em protestar em frente às câmeras e do clima
paradoxalmente eufórico do ato em Washington Square, os jovens americanos
mostraram alguma maturidade quando perguntados sobre as conseqüências
dos protestos: "Bush, neste momento, não está nem aí
para a opinião pública, mas é melhor que haja algum protesto
do que nenhum", explicou um rapaz loiro que vestia uma camisa com a estampa
de Columbia University. Outro apostava que só o cenário de uma
guerra longa e sofrida como a do Vietnã seria capaz de mobilizar de verdade
a opinião pública norte-americana. De fato, naquele dia as pesquisas
Gallup/USA Today mostravam que o apoio do povo americano à guerra
era de incríveis 76% da população.

Os ativistas mostraram conhecer muito bem esses números e estavam conscientes
de que têm um longo caminho a percorrer para ganhar apoio do povo do subúrbio,
que pelo menos até aquele momento continuava preferindo desfraldar a
bandeira e apoiar os falcões de Bush. Em Washington Square, a aposta
de uma moça ruiva e sardenta era de que o jogo poderia começar
a virar quando os primeiros corpos dos amarelos, negros e latinos mortos no
campo de batalha chegassem de volta aos Estados Unidos. Não deixa de
ser uma triste aposta, mas o fato é que esses corpos já estão
chegando.