Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

CNBC, a vendedora de ilusões

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MERCADO DE AÇÕES

Arnaldo Dines, de Nova York

Na falta de uma explicação melhor, nada mais fácil para os economistas do que justificar as recentes oscilações dos mercados financeiros americanos como decorrência natural do esfriamento radical da economia do país após 8 anos de expansão, assim como resultado direto do passo de tartaruga empregado por Alan Greenspan, chairman do Federal Reserve, na redução da taxas de juros.

Mas a visão puramente financeira dos analistas tende a obscurecer a crescente relevância de fatores psicológicos para o desempenho diário dos principais índices da New York Stock Exchange e da Nasdaq. Dentre esses fatores constam, principalmente, a facilidade de acesso direto dos investidores ao mercado, adquirida pelo avanço dos serviços de cotações e compra de ações através da internet; e, mais importante, a intensificação da cobertura televisiva ao vivo dos pregões, dominada nos Estados Unidos pelo canal de cabo CNBC.

Enquanto os economistas apontam para a aparição de uma nova economia baseada em novas tecnologias como fator catalítico para o boom iniciado na última década do século 20, eles negligenciam a importância do senso de comunidade criado pela internet e pela televisão ao vivo para a solidificação do chamado "efeito bolha", cuja presença se fez sentida principalmente nas ações de companhias de internet, de tecnologia e de biotecnologia. Os mercados deixaram de ser uma imagem distante, acompanhada no passado através de telefonemas aos corretores ou por cotações publicadas com um dia de atraso nos jornais. Os investidores se libertaram da tirania dos intermediários e passaram a ter acesso direto a informações que antes lhes eram vedadas.

Por outro lado, essa democratização dos mercados criou um ambiente propício para a criação de mitos, geralmente imerecidos, dos quais as companhias de internet foram as maiores beneficiadas. Subitamente, os noticiários passaram a se preocupar mais com inutilidades como a multiplicação mensal da fortuna de Jeff Bezos, fundador da Amazon.com, ou de Steve Case, da America Online, do que com as irrelevâncias habituais sobre as últimas travessuras românticas dos astros de cinema de Hollywood.

De todos os veículos de comunicação, nenhum foi mais relevante para a criação desse novo meio-ambiente do que o canal de televisão CNBC ? criado na década passada como um modesto canal de cabo afiliado à NBC, uma das maiores redes de televisão nos Estados Unidos que, por sua vez, faz parte do grupo General Electric.

Poder de sugestão

Cobrindo apenas os mercados financeiros, a CNBC consegue hoje uma audiência diária maior do que a CNN cobrindo eventos jornalísticos nacionais e internacionais. A programação da CNBC, das 5 horas às 19 horas, é transmitida por cabo e satélite para 75 milhões de residências nos Estados Unidos. Como comparação, o canal financeiro da CNN, conhecido com CNNfn, atinge apenas 17 milhões de residências. A CNBC possui ainda versões na Europa e Ásia, contribuindo para uma presença e influência decisiva nos mercados das mais importantes capitais financeiras do planeta.

O problema é que justamente devido ao seu poder de penetração, a CNBC se tornou indiretamente a maior ferramenta de manipulação dos mercados. Esta manipulação não vem da boca de seus âncoras ou repórteres, mas na forma de entrevistas com analistas financeiros, corretores e gerentes de fundos que constituem o núcleo de sua programação. Foram os analistas das grandes companhias financeiras como Goldman Sachs, Fidelity Investments, Merrill Lynch e Lehman Brothers, entre muitas outras, que conseguiram, por meio de uma lógica distorcida, justificar os valores absurdos das companhias de internet para milhões de telespectadores ingênuos. Enquanto isso, essas mesmas firmas estavam ativamente envolvidas na avalanche de lançamentos iniciais de ações (que o jargão chama de IPO) de novas companhias de internet nos mercados, especialmente na Nasdaq, cujas regras para inclusão de empresas são menos rigorosas do que as da New York Stock Exchange.

Se essa convivência entre um meio de comunicação e empresas financeiras não chega a se caracterizar como uma conspiração para a manipulação artificial dos preços de ações, é no mínimo uma forma conivente de participação nesta fábrica de ilusões. O processo de cumplicidade involuntária é simples, começando geralmente com uma entrevista no programa Squawk Box com algum analista oferecendo sugestões de investimentos em ações de companhias recomendadas pela sua firma. Apresentado de 7 às 10 da manhã pelo âncora Mark Haines ? e com participação ao vivo diretamente da Bolsa de Nova York da repórter superstar Maria Bartiromo ?, o Squawk Box é o programa de maior audiência e repercussão no quadro de programação da CNBC.

A reação a qualquer informação ou sugestão apresentada no Squawk Box é imediata e fulminante, alimentada principalmente pela fúria especulativa dos day traders, investidores que executam múltiplas operações de compras e vendas de ações no mesmo dia. E mesmo quando os analistas entrevistados alegam não investirem pessoalmente nessas companhias, nada impede as firmas que os empregam de manterem investimentos substanciais nas ações recomendadas, o que tende a se converter em um lucro proporcional ao poder de sugestão dos seus analistas. O resultado é a elevação artificial do preço da ação em questão para níveis insustentáveis (e irracionais) no longo prazo.

Analistas e cartomantes

Inexplicavelmente, este tipo de procedimento é raramente investigado pelo SEC (Securities and Exchange Commission, o equivalente americano à Comissão de Valores Mobiliários brasileira), que, ao contrário, prefere se concentrar no problema da disseminação de boatos nos chat rooms da internet a partir de pequenos especuladores.

O casamento de conveniência da CNBC com a comunidade financeira funcionou perfeitamente até meados do ano passado, quando ficou flagrante que a situação não era nada mais do que uma versão sofisticada do famoso e antiquado "esquema de pirâmide" ? o investimento crescia à medida em que novos investidores continuavam a comprar mais ações, atraídos por sonhos de lucros imediatos. Mas após anos em um processo de inflação artificial, a deflação natural dos preços das companhias de internet e de tecnologia tornou-se inevitável. E com o primeiro sinal de alarme, a debandada das corretoras e dos fundos de investimentos foi geral, deixando os investidores individuais desiludidos e desnorteados com perdas de até 95% para ações de uma típica companhia de internet.

Neste quadro, a própria CNBC foi obrigada a mudar seus procedimentos para conseguir manter um mínimo de credibilidade junto ao público. Atualmente, acoplados às entrevistas com os analistas, aparecem gráficos do desempenho das ações recomendadas anteriormente por estes, geralmente com perdas significativas. Para o grande público, isso funciona ao menos como um alerta disfarçado para a falta de credibilidade dos entrevistados, assim como uma lembrança remota da impossibilidade de previsão do comportamento futuro dos mercados, seja por cartomantes ou analistas econômicos.

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