Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cobertura e delito de informação

CRISE ARGENTINA

Isabela Nogueira (*)

Acrescente uma nova palavra ao seu dicionário de economês: "pesificação". O termo, que só foi descoberto pela imprensa da Argentina no dia da renúncia do presidente Fernando de la Rúa, parece ser uma saída lógica para a camisa de força cambial em que o país se meteu. Pela pesificação ? ou a desdolarização, como alguns preferem ?, todas os depósitos e as dívidas argentinas, hoje em grande parte dolarizados, são convertidos em pesos antes de uma desvalorização da moeda.

Assim, seria afastado o maior temor do povo argentino com o abandono da paridade cambial, que estabelece que 1 peso vale 1 dólar. Nenhum argentino teria que pagar dívidas em dólares ao mesmo tempo em que recebe seu salário em pesos desvalorizados.

Para ter uma idéia do temor argentino basta saber que 85% das dívidas do país estão em dólares. Imagine, agora, que você, um argentino que deve US$ 1.000 ao banco, enfrente uma desvalorização tradicional. Se as apostas mais corriqueiras estão certas, a desvalorização do peso deve ficar na casa dos 50%, o que faria sua dívida saltar para 1.500 pesos. Assim, é fácil entender por que os argentinos fogem de uma desvalorização tradicional como o diabo foge da cruz.

Mas com a pesificação, a dívida seria primeiro transformada em 1.000 pesos para depois haver uma desvalorização. Assim, quando o valor da moeda nacional cair, o valor da dívida cai junto. E ficam elas por elas.

Boca de siri

A questão chave é desvendar por que a mídia argentina não trouxe a discussão da pesificação antes. Não é preciso ter memória de elefante para lembrar que desde o início de 2001, quando a paridade cambial começou a ser colocada em xeque, as alternativas levantadas pelos economistas por meio da imprensa eram duas: desvalorizar ou dolarizar. A desvalorização tradicional levaria o povo argentino a pagar a conta por uma estupidez monetária (a paridade) que já dura dez anos. E a dolarização é o completo abandono da soberania de um país (pode fechar o Banco Central da Argentina que o Federal Reserve americano toma conta de tudo).

A grande diferença da pesificação é que quem fica com o ônus da mudança cambial não é a população, mas os grandes credores que emprestaram em dólares. São eles que vão receber 50% a menos, no caso de uma desvalorização nessas proporções. Daí o silêncio dos economistas de manual, que, por sua vez, nunca foram seriamente questionados pela mídia argentina.

No Brasil, as alternativas apresentadas pelos jornalões foram as mesmas. E a omissão também não mudou em nada. Quando o megaempréstimo do FMI para a Argentina saiu, em janeiro de 2000, houve efeito manada: dois ou três economistas de manual bradaram que a salvação havia chegado. E a mídia saltou de cabeça.

Faltou senso crítico, lógica econômica e respeito aos contribuintes, sobretudo os argentinos, que têm o direito de saber em detalhes quais as alternativas que estão sendo discutidas nos bastidores da cena política, nas consultorias e nas universidades. A consultoria argentina CenterGroup fala em desdolarização há pelo menos seis meses. E a imprensa grande só a descobriu às vésperas do Natal.

A democracia argentina sofre dupla ameaça. Uma da classe política, que desde a saída dos militares não conseguiu elaborar um plano de desenvolvimento inteligente e soberano para o país. E outra da mídia, que dá eco a essa a falta de pensamento crítico.

Em tempo: para quem gosta de números:

  • Só em 2000, o número de pobres na Argentina cresceu em 3 milhões
  • 44% da população, ou 14 milhões de habitantes, vive abaixo da linha de pobreza
  • Desde 1991, 45% dos adolescentes argentinos abandonaram a escola secundária por falta de dinheiro para prosseguir os estudos
  • O desemprego está na casa dos 18% da população economicamente ativa, o maior da história.

(*) Jornalista