Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

"Coice de Mula" e "Elias Maluco"

TIM LOPES (1951-2002)

Alberto Dines

Dois bandidos, com 48 anos de diferença entram para a história do jornalismo brasileiro pela mesma via. Um, condenado e já esquecido, o outro, por enquanto, suspeito. Pelas evidências, não apreciavam a imprensa. Pelos resultados, a solução empregada foi a eliminação de jornalistas.

Coice de Mula era a alcunha do guarda-civil Paulo Ribeiro Peixoto, que espancou até a morte na 2? DP de Copacabana (onde servia), o repórter Nestor Moreira, preso por promover desordens em frente à então famosa boate Vogue [veja abaixo].

O guarda assassino era produto da zona cinzenta entre o crime e a lei e, pela sugestiva alcunha, dispensa por ora grandes biografias: não era um modelo de delicadeza ou inteligência. O espancamento do repórter Nestor Moreira não foi fruto de uma estratégia para calar a imprensa. Queria bater, soltar sua raiva, eliminar com as próprias mãos aquele preso, certamente impertinente, entregue aos seus cuidados.

Elias Maluco, aliás Elias Pereira da Silva, ao contrário, não é um pobre diabo é um rico diabo que, se não tem apartamento em Miami é por falta de tempo para gozá-lo. Não há provas ainda para considerá-lo responsável pelo desaparecimento do repórter Tim Lopes, da Rede Globo. Mas, pela alcunha, não deve ser modelo de moderação ou urbanidade.

Mesmo na condição de suposto assassino, Elias Maluco tem todos os motivos para intimidar a imprensa: só os jornalistas podem chamar a atenção para a extensão de seus domínios, que começam no narcotráfico e se esparramam pela vasta zona cinzenta que inclui o narcoconsumo e as diferentes marginalidades que gravitam em torno do eixo das drogas (inclusive o show-business).

A agonia de Nestor Moreira estendeu-se da madrugada de 11 de maio de 1954 até 23 de maio. Nessa dolorosa vigília, alertada pela imprensa, a sociedade despertou para a impunidade, a corrupção e a violência que grassavam numa polícia despreparada e desacreditada. Pode-se mesmo afirmar que a morte do repórter foi a responsável pela mobilização popular que, três meses depois, obrigou as autoridades a agir com fulminante rapidez identificando e prendendo os autores do atentado da Rua Toneleros (também em Copacabana) que feriu o jornalista-deputado Carlos Lacerda, matou seu acompanhante, o major-aviador Rubem Vaz e culminou com o suicídio de Getúlio Vargas.

A discussão em torno do uso das microcâmeras pelos repórteres de TV ou de uma eventual demora da Rede Globo em acionar a polícia depois do desaparecimento do jornalista, é importante. Porém posterior. Além da angústia em torno do paradeiro de Tim Lopes e do drama vivido pelos familiares e amigos, não se podem perder de vista dois problemas prementes, interligados.

Nestor Moreira e Tim Lopes representam o repórter de rua, jornalistas de ação, espécie infelizmente quase extinta. Em nossa imprensa, hoje – salvo honrosas exceções etc. -, a investigação confunde-se com a divulgação de dossiês e grampos produzidos por terceiros, normalmente com interesses contrariados. O mito do escândalo político obliterou a capacidade da nossa imprensa de desvencilhar-se do conforto para o trabalho de campo.

A violência e o crime organizado deixaram de ser assunto exclusivo das autoridades policiais ou judiciais. É assunto da sociedade. E o olho da sociedade é a imprensa. Por enquanto, nossas polícias são empurradas pelos B.O.’s, os Boletins de Ocorrência, despreparadas e/ou sem recursos para fazer o trabalho preventivo de inteligência e investigação (salvo as honrosas exceções etc., caso do cantor Belo). Só o olhar atento, o inconformismo e a coragem dos jornalistas são capazes de realizar o trabalho escoteiro de localizar e dimensionar o poderio do mundo do crime interligado aos diversos submundos.

Mesmo que as empresas jornalísticas, por sua própria natureza comercial, estejam dominadas pela busca de intensas emoções, o tipo de jornalismo praticado por profissionais como Tim Lopes, embora possa produzir picos de audiência, é incomparavelmente mais necessário, mais salutar, mais generoso, mais digno e mais cívico do que o sensacionalismo de auditório promovido pelos Ratinhos da vida.

Precisamos de muitos Tim Lopes e outros tantos Daniel Pearl (repórter americano degolado pela al-Qaida no Paquistão). A sociedade precisa deles e as empresas jornalísticas precisam preparar-se para defendê-los.

(*) Copyright Jornal do Brasil, 8/6/02