Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Colaborador e advogado de defesa

CASO SARNEY-MURAD

José Antonio Palhano (*)

O doutor Saulo Ramos, bem o sabem os leitores, é freqüentador assíduo da página três da Folha de S. Paulo. Condição conquistada, sem dúvida, graças a sua competência profissional, que lhe permite discorrer muito à vontade sobre questões de Direito e suas implicações constitucionais e civis. Mais que advogado, tornou-se respeitado jurista, tanto que seus doutos pareceres são cotados a peso de ouro.

Na sexta-feira passada, o doutor Saulo ocupou aquele espaço para fazer candente, dramática e comovedora defesa da governadora do Maranhão. Nada de mais se o fizesse na conta de prócer de seu partido, o PFL. Ou até na pele de um ardoroso e anônimo torcedor de sua candidatura à Presidência da República.

Desgraçadamente, não foi bem assim. No artigo "Ministro ou oficial de Justiça?", o doutor Saulo se atirou em apaixonada defesa de uma cliente da sua célebre e caríssima banca de advocacia. Estava lá, no olho, por exemplo: "Roseana tem a alma enorme. Que os santos e poetas orem por ela. Que o povo diga amém e que Deus a proteja."

O estilo segue neste nível, de forma a sugerir aos mais ingênuos que madame Sarney Murad é ora vítima de covarde campanha difamatória, devendo-se providenciar, em tempos em que o Vaticano finalmente é magnânimo em homologar como santa uma nossa beata, sua urgente beatificação. Certamente uma influência do soba Jorge Bornhausen, que já a comparou à lendária Joana D?Arc.

Ninguém tem nada a ver com as preferências eleitorais e ideológicas do doutor Saulo. Coisa bem diferente é não reagir ao descalabro pelo qual um dos maiores causídicos do país se apossa da mais nobre página do maior jornal do mesmíssimo país para vender uma causa profissional sua. Quando menos, por se tratar de flagrante e inaceitável discriminação. Fosse, em lugar de madame Sarney Murad, um preto qualquer, desses que infestam as delegacias, é de duvidar que o doutor Saulo mexesse uma palha, quanto mais sua aurífera e sapiente pena, para sair em seu socorro.

É de escandalizar qualquer chefete de terceiro nível da política paraguaia que uma publicação do porte da Folha se permita passar por semelhante vexame, uma infame e oportunista terceirização de um dos seus mais caros espaços. Mas, é preciso dizer, o jornal é o menos culpado por essa mixórdia. Afinal, presume-se que o autor da falsificação tenha, ao longo dos anos, conquistado a plena confiança de seus editores enquanto colaborador, restando que seria um despropósito que algum deles se dispusesse a censurar previamente seus textos. Absolvida a Folha, resta-lhe curtir aquele que pode ser um dos maiores e mais emblemáticos micos jornalísticos de que se têm notícia neste alvorecer de século.

Fiquemos, pois, com o doutor Saulo. Quais seriam suas motivações, capazes de atirá-lo a tamanho desatino? Como é possível que, após décadas de praia, se exponha tanto, lanhando e afrontando os princípios éticos do seu nobre ofício, cujos degraus galgou-os todos com admirável competência? É de se esperar que seu triste feito, sem prejuízo dos seus direitos individuais, seja prontamente analisado e refletido pelos seus pares, acadêmicos e especialistas, à luz dos códigos e regulamentos competentes.

As razões do doutor

Até para que não persista a feia suspeita de esteja a engabelar a todos nós. Afinal de contas, até os analfabetos sabem das suas medulares ligações com o clã Sarney, ora delirantemente tentado a se transformar em dinastia. Tão profundas e amazônicas são essas ligações que lá está escrito, nos créditos do seu apologético e aético artigo: "José Saulo Pereira Ramos, 72, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney)".

Dito isto, é constrangedor que nós, estúpidos leitores, tenhamos que dizer ao doutor Saulo que madame Roseana Sarney Murad, politicamente, não passa de um peixe podre. Desses que não merecem nem mesmo ser embrulhados pela Folha de S. Paulo da véspera. Circunstância infeliz que, bem à afeição da nossa índole de povo tão afável quanto politicamente alienado, em absoluto não se faz em impedimento para que contrate o advogado que bem entender para defendê-la. Até mesmo o doutor Saulo, posto que honorários de calibre saudita não assustam quem guarda R$ 1,3 milhão num reles cafofo de São Luís do Maranhão.

Assim, que o doutor Saulo vá defender sua cliente e seu marido de tantas e horrorosas referências no sossego e na privacidade do seu badalado escritório, nas instâncias ditas cabíveis ou até mesmo nos quintos dos infernos. Menos numa página de opinião tão cara ao jornal e aos seus leitores, ora tão inesperada e repulsivamente manipulada.

Mas pior do que ver e se estarrecer com a asnice do doutor Saulo é se aprofundar um pouco mais a respeito das suas razões. Reside aqui, talvez, o único desdobramento aproveitável da coisa: reconhecermo-nos melhor como povo e nação. A propósito, há 500 anos nos doutrinam com a idéia de que Deus escreve certo com letras tortas (com as antecipadas desculpas ao Criador caso interprete que estejamos a outorgar ao doutor Saulo uma dimensão espiritual que ele, decididamente, não tem).

O padrinho e a mala

O tal artigo, isso sim, é a mais perfeita tradução do nosso secular e incurável paternalismo. Ali, o doutor Saulo, mandando ás favas seu currículo, sucumbiu espetacularmente à tentação de que é possível enfiar goela abaixo da nação um embuste político da envergadura de madame Sarney Murad. Trata-se de algo sociologicamente extraordinário. Como não é sensato supor que o doutor Saulo tenha agido empurrado por argumentos financeiros, assusta que o Papa Doc de madame destile poder o suficiente para reduzi-lo a algo como uma espécie de jagunço letrado a seu exclusivo serviço, disposto a escrever baboseiras tais como "Sou amigo de José Sarney há mais de 40 anos. Vi Roseana crescer. Sei de sua formação moral e de sua tenacidade em lutar pelo bem de seu país. Quando a menina, culta e estudiosa, que conheci foi eleita deputada federal e liderou a deposição constitucional de Fernando Collor, tive, por ela, medo das reações de banditismo e das vinganças. Hoje, se ela me pedisse um conselho, diria que se candidatasse a senadora e saísse da campanha presidencial, porque não desejo vê-la alvo de atrocidades morais sob ataques de tantas e cruéis falsidades, que viram verdades provisórias ao menos até as eleições."

Dispensemos as prerrogativas a nosso dispor que nos permitiriam discordar da sua avaliação do caráter de madame Sarney Murad e dos seus familiares. Fiquemos com a mui grave preocupação advinda dessa sua tão vesga e comprometida visão das coisas (e das pessoas) à sua volta. Como pode o doutor Saulo supor que qualquer pessoa, seja homem ou mulher, tenha moral e grandeza pessoal e política para chegar á Presidência da República, se tão presa está desses seus conceitos? O doutor Saulo, suposta e vergonhosamente empenhado em fazer uma defesa, está nada menos expondo o quão madame Sarney Murad é refém dele próprio. E de quem mais conquiste sua confiança caso seja eleita, para desgraça nossa.

É mesmo de assustar que o doutor Saulo não se constranja em se apresentar como ilustre padrinho de uma candidata cuja formação político-familiar a faz conviver com um homem da mala na condição de marido.

E nós com isso, doutor Saulo?

(*) Médico e jornalista