Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Como fabricar radicais

A IMPRENSA E O PT

Muniz Sodré (*)

"Radicalismo" designava originariamente os adversários da Lei da Reforma de 1832, na Inglaterra. O termo tem sofrido alterações semânticas importantes ao longo dos tempos. Nos dicionários mais apressados, trata-se de um sistema político que preconiza reformas básicas na organização social do Estado. Nos mais ponderados, acrescenta-se o significado da reivindicação de mudanças drásticas nas instituições sociais.

O adjetivo "drástico", ou mesmo "imediato", traz a designação de radicalismo para a extrema-esquerda política, visceralmente oposta às posições liberais, identificadas com comedimento e lentidão. Já houve filósofos da Modernidade também denominados "radicais", como o utilitarista inglês J. Bentham, sem que a semântica colidisse com a do liberalismo. De um modo geral, porém, para a filosofia, radicalismo é tomar as coisas pela raiz, ao invés da superfície.

Jogo do bicho

Dentre todas estas acepções, a mídia prefere a do senso comum, segundo a qual radicalismo é o atributo de quem adota posições extremadas. Pode, assim, chegar a falar de radicais de direita, quando se mencionam figuras do conservadorismo irado na Europa, no Oriente Médio, nos Estados Unidos etc. Na atual conjuntura política brasileira, a designação tem sido corrente na imprensa escrita, incidindo especialmente sobre parlamentares cujo modo de pensar, por alguma fidelidade ao ideário antineoliberal, deixe de coincidir com os interesses predominantes na liderança editorial dos jornais.

Na realidade, a imprensa termina fabricando um tipo específico de radical.

Para melhor explicar este ponto de vista, vale reportarmo-nos a um pré-requisito, que é a noção de política. Já se vai uma década, o pensador francês Alain Badiou conferenciava, durante uma visita a Minas Gerais:


"Na política, há sempre três elementos. De início, há as pessoas, aquilo que elas fazem, o que pensam, o conjunto de suas atividades concretas, o conjunto da vida popular. Em segundo lugar, há as organizações. Organizações que tentam formular perspectivas coletivas: os sindicatos, as associações de bairros, os grupos, os comitês e, finalmente, os partidos políticos. Em terceiro lugar, há os órgãos do poder do Estado, os órgãos constitucionais e oficiais do poder: as Assembléias Legislativas, o poder do presidente, do governo e o conjunto dos poderes locais. Podemos dizer que toda a política será uma articulação desses três elementos".


Uma visão mais próxima do marxismo preferiria enfeixar povo e organizações (enfatizando a escola e a mídia) no conceito gramsciano de "sociedade civil". Mas o esquema de Badiou, por pouco que dê conta da complexidade da política, serve-nos didaticamente: política é, na prática, a articulação de três elementos heterogêneos, que são o povo, as organizações e o Estado. São várias as formas de se conceber essa articulação, que visa sempre a ocupar o poder de Estado para levar a cabo objetivos específicos de classe: a forma conservadora, a reformista, a revolucionária e a fascista. A disputa pelos aparatos estatais pressupõe logicamente um conflito político.

"Tanto a concepção revolucionária quanto a fascista dizem que o conflito é forçosamente violento, enquanto que as concepções reformista e conservadora dizem que o conflito pode permanecer dentro das regras constitucionais", assinala o francês. No entanto, a política, para qualquer uma dessas formas, é a representação dos interesses em conflito.

Ora, o que se tem chamado de radicalismo é a posição sustentada por indivíduos, organizações ou partidos que preconizam a resolução do conflito político por meio da quebra das regras constitucionais, o que implica sempre exceção e violência. Não é esta de modo nenhum a posição do PT que, desde os seus começos, acatou o regime formal da representação parlamentarista, mas sempre associada a certos interesses populares que incluíam direitos (greve, livre manifestação pública etc.) especialmente sufocados durante o regime militar.

Instalando-se progressivamente no poder por vias eleitorais, esse partido pautou-se pelas mãos limpas no que diz respeito ao lodaçal da corrupção política, por experiências participativas no âmbito de algumas prefeituras, pela oposição doutrinária ao neoliberalismo, pela sugestão de uma política de emancipação e pela defesa parlamentar de interesses populares ? dentre os quais os dos funcionários públicos, que hoje integram em números expressivos a sua base eleitoral.

Sustentando que uma política de emancipação é necessariamente uma política de ruptura com a ordem estabelecida, Badiou dizia durante sua referida visita a Minas que "a participação em eleições é uma forma inevitável de adaptação à ordem". Foi chamado de "indiferentista", incapaz de compreender a "práxis libertária" de um partido político. Entretanto, em pouco meses depois de conquistar as rédeas do Executivo federal, o PT dá margem a fortes suspeitas de que esteja esquecendo os compromissos históricos com um dos três elementos da articulação (o povo), em favor da coalizão neoliberal (capital financeiro, organismos internacionais), aquela mesma que levara o sociólogo-presidente FHC a pedir que se esquecesse de tudo que ele havia escrito. Ao que tudo indica, diferentemente do jogo do bicho, no poder não vale o que está escrito.

Ignorância civil

Pois bem, o que a imprensa vem chamando de "radicais" são simplesmente aqueles parlamentares petistas mais agarrados às raízes do que aos galhos carunchosos do partido. É gente com memória, que está lembrando aos confrades não um velho ideário, mas a linha política de pouco tempo atrás. E mais: gente com argumentação coerente, boa catadura e cheia de civilidade, mesmo diante da ameaça de expulsão partidária, mas certamente inquieta com o novo ethos liberal de sua organização.

Aqui e ali, porém, os enunciados jornalísticos insistem na pecha negativa do radicalismo, sustentada pelos mais estranhos atributos. Um exemplo: mesmo no texto em que advertia o PT contra seu "rolo compressor", uma colunista fazia a ressalva de que "o rolo compressor de que se fala aqui não deve ser confundido com o processo contra os radicais, um caso que até parece ter componentes psicopatológicos" (Teresa Cruvinel, O Globo, 23/5/2003, grifo meu). A colunista referia-se ao fato de a senadora Heloísa Helena (PT-AL) ter chorado, ao antecipar emocionalmente a sua expulsão. O choro de uma suposta "radical" torna-se, midiaticamente, psicopatológico.

Em toda essa construção de uma identidade fantasmática, a do político radical, a imprensa parece esquecer-se, como os quadros dirigentes do PT estão-se esquecendo, de que o processamento do conflito político, exatamente por ser conflito, é feito de divergências ou de pluralismo de opiniões. Este esquecimento é, não no fundo, mas na superfície mesmo, ignorância civil das regras do jogo democrático. A questão de fundo é aquela dúvida que se forma aos poucos. E não é que o abstrato francês parece ter mesmo razão?

(*) Jornalista, escritor, professor-titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro