Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como sempre, a culpa é do mensageiro

NOTAS DE UM LEITOR

Luiz Weis

Admita-se, apenas para argumentar, que talvez até haja “uma certa histeria no ar”, como escreveu na sua coluna de 28/7 o jornalista Fernando Barros e Silva, da Folha de S.Paulo, endossado, no dia seguinte pelo titular do espaço, Clóvis Rossi. Este citou como exemplo um editorial do Estado de S.Paulo sobre as beligerantes declarações do coordenador do MST, João Pedro Stedile, na semana anterior.

Mas é miopia ou má-fé culpar a “hipertrofia (sic) da mídia” pelo clima de tensão no país, como fez o assessor presidencial Frei Betto, numa declaração ao mesmo Estado no domingo, 3/8.

Só não vê quem não quer que o governo Lula vive os dias mais difíceis desde a posse e que é de crispação a atmosfera que os brasileiros passaram a respirar. Não foi por descaso com os seus potenciais anfitriões que o presidente adiou a viagem que faria esta semana a cinco países africanos. E não foi por falta do que fazer que a medonha TFP voltou às ruas.

Mas dizer que o noticiário da imprensa está exacerbando, ou mesmo fabricando, o que chama de turbulência, tensão, pressões e crise social é apelar para o imemorial costume de matar o mensageiro que traz más novas. Ou, no caso, tratar a mídia como “a nova Geni” [OI, edição de 30/7, remissão abaixo], o que de novo não tem nada.

O que pode haver de criticável no modo como a imprensa vem cobrindo a conjuntura são as tentativas de juntar todos os seus componentes em um único balaio, como se formassem um conjunto articulado.

Quando isso acontece, fica parecendo que fazem parte da mesma família de problemas, por exemplo, as invasões de terras e terrenos e as queixas dos governadores a propósito das reformas da Previdência e do sistema de impostos; a já abortada ameaça de greve de juízes estaduais e as demandas dos empresários por medidas de reativação da economia; a guinada dos indicadores financeiros e as dificuldades do Planalto com os seus aliados no Congresso; a baixa produtividade da administração federal e a impaciência com o “fiscalismo” do ministro Antonio Palocci.

Claro que tudo isso assombra as noites de Lula e dos brasileiros mais bem informados, mas não da maneira como às vezes a mídia dá a entender ? quem sabe até com a boa intenção de oferecer ao leitor uma visão integrada daquilo em que se transformou a lua-de-mel com o presidente.

Outra boa intenção malsucedida foi a enquete da Folha com 32 personalidades, a quem perguntou se existe risco de desordem ou de caos social no Brasil, que condições tem o governo de melhorar a situação do país e se o governo Lula perdeu apoio no grupo social do entrevistado (domingo, 3/8, páginas A 7 a A 10).

O erro não está na enquete ? embora já se tenha dito que essa é a modalidade mais preguiçosa de jornalismo, sem falar no seu cheiro de mofo. O erro está em usar como produto acabado (as respostas) o que deveria ter sido matéria-prima (para uma reportagem de idéias).

O resultado é uma profusão desconexa de aspas que deve ter deixado a grande maioria dos leitores onde estavam antes de abrir o jornal.

Pior foi a acachapante obviedade do título (“País vive tensão, mas não caos, diz enquete”) e do antetítulo (“Personalidades apontam como saída a necessidade de crescimento econômico e de distribuição de renda”).

É de pedir o dinheiro de volta.

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A culpa é sempre da mídia ? Alberto Dines

 

Merece ser punido com uma passagem ? só de ida ? para Tikrit o jornalista que não souber dizer o que foi que a imprensa brasileira publicou de melhor entre o domingo (27/7) e o sábado seguinte.

Quem der a resposta certa não ganha nada porque é fácil demais: a série de sete reportagens de página inteira que O Estado de S. Paulo publicou sob a retranca “Diário do Iraque”, de autoria do escritor peruano Mario Vargas Llosa.

Publicado originalmente no El País, de Madri, de que ele é colunista, “Diário” cobre o período de 25 de junho a 6 de julho, quando Llosa andou pelo Iraque acompanhando uma missão humanitária da Fundação Ibero-América-Europa.

É daqueles relatos do gênero new journalism para Norman Mailer nenhum pôr defeito. (A não ser, talvez, por uma ou outra referência deslumbrada à filha Morgana, que o acompanhou e de quem diz, às folhas tantas, como se isso pudesse ter o mínimo interesse para o leitor, que, em criança, “fazia tremer o berço com seus faniquitos estentóreos”.)

Mas tudo mais é mercadoria jornalística e literária de refinada qualidade ? não fosse o autor quem é. Proporciona uma visão vívida do que é o Iraque pós-Saddam e do que é estar ali. A tentação é de transcrever passagem após passagem dos textos (cada um, em média, com 15 mil toques). Fique-se com uma:


“Não vim ao Iraque para escutar só as verdades, mas também as ficções nas quais os iraquianos acreditam, pois as mentiras que um povo inventa expressam freqüentemente uma verdade muito profunda?”.


Agora, não seria coisa do outro mundo se o Estado tivesse disparado um e-mail pedindo a uma agência noticiosa que mandasse via internet uma foto do iraquiano Ahmad Hadi para publicar junto com o quinto relato da série.

Não por ser ele o personagem central do capítulo. Mas porque não haveria leitor que não quisesse vê-lo, ao lado do texto, depois de ler, logo na abertura, que esse “dramaturgo, jornalista, militar, soldado de artilharia, bon vivant e otimista ferrenho, alto, forte e simpático, parece enjaulado, com sua exuberante anatomia, nos estreitos quartos da casa onde o jornal Azzaman (?O Tempo?) instalou sua redação”.

Ou muito se engana este leitor, ou a imprensa não está dando a mínima para os padecimentos dos brasileiros causados por quase dois meses de greve dos funcionários do INSS contra a proposta de reforma da Previdência.

Na semana passada, não fosse por uma matéria do Globo de domingo (3/8, pág. 15) o assunto teria rendido apenas 19 linhas na seção “Curtas” do Valor (31/7), dizendo que cerca de 66 mil segurados deixaram de ser atendidos nos postos do Instituto.

A matéria do Globo, de Ana Cristina Campos, além de trazer os números ? pena que restritos ao Rio de Janeiro ? entrevista duas vítimas da paralisação. “Nunca passei por situação tão difícil na vida”, diz um entrevistado que sofreu um acidente de trabalho em 18 de maio e não consegue receber o benefício devido. “É desesperador”, conta. “Tudo o que me dizem é que a greve é por tempo indeterminado”.

Está certo que a mídia tem de cobrir o óbvio ? os protestos (violentos) dos servidores descontentes. Mas é preciso também sair do âmbito do poder público, onde se trava a batalha da reforma previdenciária, para mostrar o preço pago, enquanto ela transcorre, pela parte mais fraca: as pessoas comuns que têm a desventura de depender dos serviços do Estado.

Seria interessante saber como o recém-anunciado ombudsman, ou editor público, do New York Times, se já estivesse na ativa na terça-feira, 29/7, explicaria aos leitores um problema incomum ocorrido na edição desse dia.

O problema está no lapidar obituário de 18.600 toques ? ou 3.200 palavras, como os americanos contam os seus textos ? do comediante Bob Hope, falecido na antevéspera, aos 100 anos.

Nada de errado com o materião, prato de resistência do especial dedicado a um dos mais populares atores da história de Holywood (nascido na Inglaterra, por sinal).

Nem era de esperar outra coisa, dado que o texto trazia a assinatura de Vincent Canby, crítico-sênior de cinema do Times durante 24 anos, a contar de 1969.

Só que Mr. Canby morreu em 15 de outubro de 2000.

Como sabem todos quantos já puseram os pés numa redação, jornais, revistas e agências de notícias preparam com antecedência ? e atualizam periodicamente ? obituários de celebridades das mais diversas áreas.

Nada mais natural que de há muito o editor da página fúnebre do Times tivesse encomendado ao mais estrelado crítico de filmes da casa o perfil definitivo de Bob Hope, para estar com tudo em cima no dia inevitável.

Este leitor não conseguiu apurar quando foi escrita a eulogia. Mas ela contém seis breves atualizações desde 1993, quando Canby se aposentou. Uma delas é deste ano. Nenhuma importante a ponto de justificar uma remontagem da versão original.

Tecnicamente, portanto, não haveria por que tirar a assinatura do autor ? estivesse ele vivo. Morto, o jornal tinha a alternativa de acrescentar um rodapé ao necrológio, informando o leitor do fato, da data em que a peça foi preparada e de que outros a atualizaram.

Mas que não ficaria bem revelar que a maior matéria oferecida ao público pagante naquela terça-feira, salvo um punhado de acréscimos, aqui e ali, estava pronta há tantos anos ? lá isso não ficaria.

Leitor, ainda mais de jornal e ainda mais de jornalões, tem que ter a ilusão de estar lendo palavras que acabaram de sair do forno. Faz parte da magia que leva milhões e milhões de pessoas, no mundo inteiro, como em um ritual, a apanhar o seu matutino na soleira da porta, assim que se levantam.

E o Times, ou por não saber como sair da enrascada, ou por absoluta distração de todos aqueles por quem passou o textaço, deu-se mal.

E a Reuters, em um despacho, dedou o diário para os assinantes do seu serviço nos quatro cantos do globo.