Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Comunicação, a chave para o novo mundo

GLOBALIZAÇÃO

Pedro Celso Campos (*)


A noção de progresso entrou em crise. Agora a natureza impõe limites. (Renato Ortiz)


O sociólogo Renato Ortiz, professor da Unicamp e de várias outras universidades brasileiras, participou da Jornada Multidisciplinar promovida pelo Departamento de Ciências Humanas da Unesp Bauru entre 17 e 19 de setembro de 2002, com a palestra Comunicação, Política e Mundialização. Trata-se de um tema que Renato Ortiz discute, em seus livros e publicações acadêmicas, desde a década de 80.

Ele iniciou a palestra esclarecendo o que a globalização não é: "Não é paradigma. É, isto sim, um contexto histórico em que se define o velho (influenciado pela religião) e o novo (influenciado pela tecnologia). Também não é o fim da nação. Não é homogeneização do mundo. Permanecem tanto hegemonias como diversidades, mas não há homogeneização, e isso distingue globalização de mundialização. Não é sinônimo de neoliberalismo, pois não é ideologia."

Então, o que é globalização afinal? Esta é a visão de Renato Ortiz:


"Globalização é processo. Ela configura um espaço novo. Para compreender melhor, devemos fazer um contraponto histórico entre o momento atual e o passado, mais precisamente o passado situado no século 19. Estudar o passado serve para nos retirar do presente, nos desenraizar pelo distanciamento histórico, o que permite melhor visão do processo, enquanto o presenteísmo ? quer dizer, estudar o presente, sem pesquisar os antecedentes históricos ? encerra-se nele mesmo, como ocorre, muitas vezes, na universidade, nos meios de comunicação, o que é, afinal, um traço da modernidade. É necessário, portanto, fazer este contraponto com o século 19, lá onde se deu o advento da modernidade, com a Revolução Industrial.

Foi só com a modernidade que a comunicação se tornou importante. Antes, seu papel era secundário. Não era central, pois as sociedades eram estamentais, sem comunicação entre os seus níveis. Por exemplo, não havia comunicação possível, na sociedade japonesa, entre samurais, camponeses e artesãos. Na Europa iluminista era próprio dos nobres sobreviver com dinheiro emprestado, mas, trabalhar, jamais. O camponês continuaria sendo camponês até morrer mesmo se encontrasse uma arca cheia de ouro. Não havia ascensão vertical. O segredo entre os estamentos era fundamental. A comunicação ? que poderia romper tais segredos ? não interessava a este tipo de sociedade."


Após este balizamento histórico da questão, Renato Ortiz situou o surgimento da comunicação não como conhecemos hoje, mas por meio do estímulo que os vários inventos da época proporcionaram ao inter-relacionamento das classes, das cidades e dos países. Para ele, o surgimento da moda, na Revolução Francesa (século 18), configura um antecedente histórico da comunicação, se considerarmos o conteúdo semiótico representado pelo modo de se vestir, cada um à sua maneira ou de acordo com influências do meio. Ele também situa o surgimento do elemento comunicacional em invenções importantes como o telégrafo, o trem de ferro, os transportes públicos, a padronização da língua, a escola e o fortalecimento da própria imprensa, que ocorre na segunda metade do século 19. É nesse contexto que, na análise de Ortiz, a comunicação passa a estruturar as relações sociais, estimulando a economia, a política, o social em geral. Ela revoluciona o conceito de espaço/tempo e torna-se decisiva na estruturação da idéia de nação e de modernidade.

O conferencista lembrou, neste ponto, que "antes não havia política, nem democracia. A sociedade grega, na verdade, era escravocrata, a economia tinha a ver apenas com a guerra, a idéia de polis era coisa dos filósofos. Sabemos que política tem a ver com cidadão, aquele que pode escolher. Isto só surge com a Revolução Industrial, com a estruturação dos partidos políticos, que antes também não existiam, pois a maioria das atividades humanas reportavam-se à religião. É o Estado-Nação que possibilita a presença política na estruturação do estado moderno, a partir da secularização da política, da separação entre Igreja e Estado".

Política fora do Estado-Nação

Para Renato Ortiz, é com o advento do Estado-Nação que ocorre a estruturação social. O desenvolvimento da imprensa, entre o fim do século 19 e o início do século 20, possibilita o surgimento da opinião pública, principalmente com a invenção do rádio, depois da TV. Para o sociólogo, é neste momento histórico que surge uma nova relação entre o público e o privado, na qual o cidadão é o elemento de mediação. Desenvolve-se, assim, a polêmica em torno do que é ser moderno. Acreditava-se, então, que "ser moderno, é ser nacional", por isso o Brasil só poderia ser moderno no futuro. "Mas, com a comunicação, o contexto entre contemporâneo e modernidade extravasa o território da nação, e percebemos que é possível sermos modernos sem sermos nacionais. Isto é novo. Não há mais a vinculação entre modernidade e nação", explicou o conferencista.

Depois Ortiz descreveu algumas características da comunicação moderna:

"A comunicação torna-se mais chave ainda no século 21. Agora ela é transnacional, e transformou a noção de espaço e tempo, operando com conceitos múltiplos. Ela encurta as distâncias, acelera o tempo, altera a relação entre a idéia de próximo e distante: o que está próximo pode estar distante e o que está distante pode estar próximo… Ela acelera as interconexões transnacionais, levando para o imaginário do mundo ícones como Pato Donald, Arnold Schwarzenegger etc."

Informando a professores e estudantes de comunicação presentes no auditório que gosta de cozinhar, Renato Ortiz fez parênteses nesta altura da palestra, pedindo que os ouvintes "reservassem" ? como se diz em culinária ? o que fora dito até o momento para ele retomar o debate sobre globalização:

"A política, como a conhecemos há 200 anos, identifica-se com a idéia de Estado-Nação. Porém, uma coisa é a globalização, e outra é a internacionalização. O comércio entre as nações A, B, C etc. não interfere na soberania de cada nação. É apenas um comércio internacional. Já o processo de globalização atravessa as nações de maneira desigual. Portanto, globalização não é o mesmo que internacionalização. Por outro lado, a atividade política pressupõe um poder central. Entretanto, parcelas substantivas do poder estão fora do Estado-Nação. Bobbio chega a afirmar que a validade da política expirou, ela não é mais hegemônica. Como seria, então, fazer política fora do Estado-Nação?", pergunta.

O fim da ideologia do progresso

Na verdade, diz ele, o século 20 criou um conceito novo. Trata-se da noção de "povo". E não é um povo só, são vários povos por todo o planeta. Mas, como trabalhar a política no fórum transnacional se as instituições são nacionais? Para Habermas, trata-se de dar direito à fala a todos os indivíduos, em seu conceito de esfera pública. Na verdade, é pela comunicação que se pode falar a cada segmento de público do mundo inteiro, pois é sabido que não existe a massa planetária. Mesmo no contexto transnacional, a mensagem comunicacional fala a determinados segmentos que se identificam com ela.

"Pode-se citar como exemplo a programação da MTV que fala aos jovens do mundo todo, mas não a todos os jovens, a determinado segmento de jovens, numa identificação que também leva o nome de consenso", diz. Com a comunicação é possível colocar em debate, mundialmente, causas e conseqüências de atos como os atentados de 11 de setembro nos EUA, discutindo-se, por exemplo, a legitimidade da violência no século 20. Costuma-se perguntar se, recorrendo-se à ONU, a violência não estará legitimada, como tentam fazer agora os EUA para invadir o Iraque. "O que não se pergunta é se a ONU ainda dá conta dos problemas mundiais, isto é, se não seria o caso de se redefinir a própria ONU."

Cabe perguntar, também, prossegue Ortiz, para quem serve a construção dessa nova ordem internacional em andamento. Afinal, o que se discute, agora, é o que vem primeiro: democracia ou segurança? E isso afeta o mundo todo, como vemos. "Estamos só em parte em nossa própria cidade. Na verdade, estamos no mundo, da mesma maneira que os atentados de 11 de setembro não se deram contra um país, mas contra uma província, um local do mundo. O mundo é o novo lugar de disputa. Da mesma maneira que a industrialização foi um processo inexorável nos séculos 19 e 20, hoje a globalização é igualmente um processo inexorável."

Renato Ortiz finalizou a palestra com um tom de pessimismo diante das perspectivas mundiais neste alvorecer do terceiro milênio:

"O século 20 foi menos otimista do que o anterior. Antes tínhamos a ferramenta da ideologia do progresso. A França invadia a África apontando para um futuro melhor para aqueles povos. Agora, a noção de progresso entrou em crise, e não dá mais conta dos limites", afirmou. "Os pensadores do século 19 imaginavam o progresso sem limites. Agora a natureza impõe limites. Os meios de comunicação são decisivos para se pensar o novo mundo, para compreendermos melhor a sociedade contemporânea."

(*) Jornalista, professor MS de Jornalismo Comunitário na Unesp/Bauru; site: <planeta.terra.com.br/educacao/pedrocampos>