Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Comunique-se

MÍDIA GRATUITA

"Publicidade de utilidade pública deveria ser gratuita, diz especialista", copyright Comunque-se, 26/08/02

"Esta semana, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) anunciou campanha junto a seus associados (90% dos jornais brasileiros): desconto de 50% no preço de tabela, a partir de setembro, para os anúncios publicitários do Governo Federal considerados de ?utilidade pública?. Essa nova categoria foi criada em 29/05, quando o mercado publicitário, através do Conselho Executivo das Normas-Padrão (CENP), assinou com a Secretaria de Comunicação do governo um acordo para dar tratamento especial a esse tipo de publicidade.

A classificação da publicidade governamental passou a ser dividida em publicidade legal (em obediência à prescrição de leis, decretos etc.), mercadológica (das estatais), institucional (informações sobre atos, obras e programas dos órgãos e entidades governamentais) e de utilidade pública (informa, orienta, avisa, previne ou alerta a população para adotar comportamentos que lhe tragam benefícios sociais reais).

Para o professor da Universidade de Brasília, Luiz Martins, autor da pesquisa ?Estado, Publicidade e Sociedade? e coordenador do projeto de expansão SOS Imprensa, os veículos de comunicação não deveriam cobrar pela veiculação de anúncios de ?utilidade pública?. Martins falou a Comunique-se sobre a postura do atual governo em relação à publicidade e sobre as possíveis conseqüências dessa nova divisão.

Comunique-se – Em maio deste ano, o Governo Federal decidiu mudar as categorias mídia gratuita e mídia paga para outras quatro. Como o senhor avalia essa mudança?

Luiz Martins – Temo que com essa movimentação o atual Governo esteja acabando de vez com a mídia gratuita, que fazia parte de um antigo Acordo de Cavalheiros entre o Governo Federal e a mídia eletrônica, representada pela ABERT, pelo qual rádio, TV e serviços de alto-falantes veiculariam gratuitamente em dez minutos diários de sua programação (a soma das veiculações daria, no mínimo, dez minutos) material enviado pela Presidência da República, através de sinal da Radiobrás, ou pelo correio (fitas de áudio).

A negociação feita pelo governo FHC e comemorada solenemente pelo presidente significa a rendição do Governo Federal em exigir alguma contrapartida pelas concessões de rádio e TV. Contrapartida, entenda-se, para o Estado, porque evidentemente que existirão contrapartidas extra-oficiais, mas em favor do governo FHC ou da campanha de Serra e, se ele ganhar, pelo novo governo afora.

Não estou falando de desvio de verbas, mas de troca de simpatias e favores, de uma atmosfera de mútuo favoritismo. É triste constatar que o presidente FHC, evidentemente, orientado por uma equipe técnica que lida diretamente com o mercado publicitário, cometeu um equívoco: trocou um frágil e decadente Acordo de Cavalheiros entre o Governo Federal e a Abert por uma ação entre amigos, invisível, não transparente, um compadrio fora de qualquer controle.

Em vez de mídia gratuita para o Estado, teremos mídia com desconto, mas sempre paga. Entretanto, o cidadão brasileiro pagará a conta para ser informado e esclarecido pelo Estado, por meio das campanhas públicas que utilizam a publicidade em meios eletrônicos. Mais uma vez, um problema entre Governo e Estado, o Governo tratando de forma interesseira, subserviente e pusilânime os assuntos do Estado, para agradar, nesse caso, os grupos de TV e de publicidade, sendo que, estes últimos, cada vez mais globalizados.

Como se sabe, há uma tendência mundial de fusões, incorporaçccedil;ões e parcerias no meio das agências de publicidade. Isto é um agravante a mais nessa conjuntura de o Governo renunciar a uma cota de veiculação gratuita de campanhas públicas. Na realidade, o mercado publicitário passa por uma recessão mundial, agravada desde 11 de setembro, quando boa parte da força do capital financeiro internacional foi abalada, tendo reflexo direto no investimento publicitário. No Brasil, esse mercado tratou de se acostar junto a um amigo solícito, o governo FHC, num momento oportuno, o de campanha eleitoral.

Comunique-se – A ANJ inicia no próximo dia 01/09 campanha por desconto de 50% no preço de tabela para anúncios considerados de utilidade pública. Qual a conseqüência disso para política de comunicação do país?

LM – Temo que essa seja uma maneira de oficializar as campanhas de utilidade pública como uma forma de capitalizar as agências de publicidade e a mídia, neste momento em dificuldades financeiras. O Estado brasileiro já é um grande anunciante. É preciso visibilidade e controle para que não se esteja criando mais uma forma de sangrar os cofres públicos.

Comunique-se -Como os outros países procedem em relação a esse tipo de anúncio? Outros governos também precisam pagar por publicidade de utilidade pública?

LM – Em outros países, o Estado ou não se mete com a mídia e com as agências de publicidade ou exige contrapartidas, não necessariamente sob a forma de veiculação de campanhas. Nos Estados Unidos, sempre um grande paradigma, o Estado não tem uma rede mediática, como no Brasil existe a Radiobrás e as emissoras estatais. A Voz da América transmite para todo o mundo, menos para os Estados Unidos, pois os norte-americanos não querem saber de doutrinações governistas pagas com os seus impostos. Em compensação, os EUA têm a maior rede pública de TV, o Public Broadcasting Service (PBS), estrategicamente mantida longe dos controles da Casa Branca, da mesma forma como na Inglaterra o governo não consegue fazer da BBC um ente de relações públicas de partidos, trabalhistas ou conservadores.

Ou seja, em países que podem ser tomados como modelares, sistemas públicos são mantidos com ônus que vêm tanto do Estado quanto da Sociedade e com uma gestão mista e com assento plural de gestores representativos dos mais variados segmentos. Tem-se não a mídia veiculando, aqui e acolá, um filme de publicidade, mas todo um segmento de mídia informativa, educativa e cultural, onde não se veicula publicidade, mas, quando há o aporte de grupos privados, isto ocorre sob a forma de apoio cultural. No Brasil, a mídia que deveria ser, de fato, pública, é estatal, mas sob o uso do Governo.

A diferença básica é que, no Brasil, a Sociedade não conseguiu, ainda, exercer o chamado ?controle social da mídia?, que nada tem a ver com censura, como algumas pessoas fazem questão de insinuar para turvar a compreensão do assunto. Se houvesse um mínimo de controle sobre a programação, haveria a exigência de que parte da programação dos canais de rádio e TV cumprisse com a determinação constitucional no que se refere às funções ?culturais e educativas? da mídia eletrônica e também no que diz respeito à produção regional. O que acontece, no entanto, é que nem o Estado nem a Sociedade estão exercendo qualquer controle, qualquer cobrança de contrapartida educativa e cultural.

Resultado: temos uma ditadura da audiência, dos programas de mau gosto, das competições esdrúxulas, dos big brothers e das casas dos artistas que nada têm de arte, de programas como um em que os competidores tinham os olhos vendados e tinham de meter a mão em caixas de vidro com sapos, aranhas e cobras. Ganhava o certame quem, em meio a tanta porcaria, recolhesse fichas que valiam pontos, prêmios e sei lá mais o que. Não sou contra o besteirol, mas vejo um problema quando ele se transforma numa hipertrofia.

Comunique-se – O fato de estarmos em ano eleitoral interfere na mudança?

LM – Apenas subjetivamente podemos responder de forma afirmativa. Entendo, entretanto, que da mesma forma como o TSE limita veiculação de campanhas com ?assinaturas? que identificam governos, federal e estaduais, em períodos de eleição, deveria estar atento a manobras que, indiretamente, produzem favoritismos e tornam as condições de competição desleais.

De um lado, candidatos dispondo da máquina administrativa e do poder de tomar medidas que favoreçam a mídia e as agências de publicidade, quando muito dependem da ressonância destas. De outro, candidatos que são obrigados a retirar dos seus caixas de campanhas vultosas somas para os marqueteiros, pois, como se sabe, não existe mais campanha vitoriosa sem altos investimentos publicitários.

Basta ver uma sessão da propaganda eleitoral regulamentada pelo TSE e verificar a diferença entre o padrão de qualidade dos vídeos dos candidatos com dinheiro e a pobreza de imagens dos outros. Este quadro determina a extinção de bons candidatos, com bons programas e respaldo comunitário, mas sem caixa de campanha. Trata-se de um coronelismo eletrônico moderno, sofisticado e com uma aparência de jogo democrático.

Comunique-se – A Secretaria de Comunicação enviará ao Congresso proposta de modificação no orçamento do próximo ano sobre as quantias direcionadas à publicidade. A idéia é redirecionar a verba de acordo com a nova divisão estipulada no final de maio pelo governo. De que forma isso vai influenciar o atual cenário de anúncios produzidos?

LM – No Brasil a mídia televisiva desempenha um papel primordial. Não há maneira mais barata de atingir, de uma só vez, cem milhões de pessoas do que pela televisão, em horário nobre, seja anunciando, seja pela forma de merchandising. Se fizermos uma conta de custo por milhão, chegaremos à conclusão que cada telespectador é atingido ao preço de centavos. Isto não significa que saia barato veicular nacionalmente um comercial. Tanto, que o mais caro horário nobre da tv brasileira cobra em torno de 150 mil reais cada 30 segundos.

O problema é que quando se trata de dinheiro público esse dinheiro deveria estar sendo aplicado em políticas e serviços públicos – segurança, por exemplo – ao invés de ser aplicado em veiculação de publicidade, que deveria ser gratuita, quando reconhecidamente de utilidade pública. Ora, se é de utilidade pública e este selo é concedido pelo próprio Estado e reconhecido pela mídia, por que cobrar? Nem o Estado nem a mídia, cobrando, estão cumprindo com as suas precípuas finalidades.

Por vezes, o dinheiro gasto pelo Estado com uma campanha de publicidade para ser veiculada por dez dias dá para sustentar por meses a fio centenas de projetos de ONGs, projetos da sociedade civil, sempre carente de recursos para manter, por exemplo, casas de atendimentos a portadores do vírus HIV, entre eles, crianças e mães pobres. Quanto ao relacionamento do Governo Federal com o CENP, é lá uma nova forma de convivência entre dois vasos comunicantes. O Governo depende da publicidade porque ela é estratégica para a manutenção de uma imagem; a publicidade depende dos cofres do governo, num momento de grande recessão na Economia.

Comunique-se -Caso o próximo presidente não concorde com a mudança, seria possível revertê-la?

LM – Dificilmente isto acontecerá. Não acredito em reversão, mas em novas negociações e reacomodações. A não ser que o próximo Presidente tenha condições de fazer surgir no Brasil uma Política Pública de Comunicação Social. Acho, no entanto, que este quadro mudará se a sociedade brasileira tornar-se mais fiscalizadora e exigente.

O fato indiscutível é que, hoje, para alguém chegar ao poder terá de chegar com o suporte do marketing eleitoral e do marketing político. É este fenômeno que fez Richard Sennett, em seu livro ?O declínio do homem público?, constatar que do homem público restou a máscara, ou seja, ele é uma imagem, um produto construído, elaborado, embalado, um artefato de design, um carisma mediático. E, tal como um produto, tem de ser bem lançado, bem promovido, bem vendido, bem mantido e dar lucro.

Comunique-se – Como tem sido o comportamento do Estado brasileiro diante da questão?

LM – O Estado brasileiro é forte contra o cidadão comum e contra as instituições em fase de desprestígio, como é a Universidade. É um Estado-guarda-noturno, preocupado com o zelo dos grandes patrimônios, sem atentar para a sua própria pobreza. Veja o caso da UFRJ: um vexame, mais de 90% dos recursos são para pagamento de pessoal, não sobra nem para a conta de luz.

O Estado brasileiro, quando se volta contra um cidadão comum, é capaz de tudo, é o próprio exercício legítimo da violência. Entretanto, é covarde, bonzinho e concessionário diante dos grandes interesses, dos grandes grupos. Trata-se de um Estado-coerção e não de um Estado-ético; é um Estado-providência em favor dos que já estão providos, ou seja, é um Estado descolado da sociedade. Esta, sim, tem de se avultar e assumir a primazia, sob pena de termos perenizada uma relação de colonização da sociedade pela mídia, literalmente patrocinada pelo Estado, e não do controle da mídia pela Sociedade.

Falta no Brasil a afirmação de uma autêntica ?vontade coletiva? (nos termos de Gramsci). O que temos, por enquanto, é imaginário coletivo postiço, pré-fabricado. A TV brasileira, tecnicamente uma das melhores do mundo, senão a melhor, culturalmente é uma pobreza muito grande. A programação cultural e educativa é rarefeita. Qualquer análise de conteúdo constata essa realidade."