Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Congresso de Leitura, uma leitura

ZIRALDO CENSURADO

Samir Thomaz (*)

Salvo exceções ? e felizmente há inúmeras e alvissareiras exceções ?, o Brasil vai de mal a pior. O que equivale dizer que um certo Brasil vai muito bem, obrigado, enquanto outro está de pires na mão, uma realidade da qual, em última análise, todos têm ou deveriam ter consciência. Mas em poucas áreas a situação é tão indigente quanto na educação ? talvez apenas a saúde lhe seja uma concorrente à altura. Foi o que constatei ao participar por quatro dias do 14? Cole ? Congresso de Leitura do Brasil, que teve lugar na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, uma das mais conceituadas do país), de 22 a 25 de julho de 2003.

Não faço alusão aos números que todos, se todos, conhecemos pela imprensa. Números são entidades abstratas, sujeitas a manipulações e interpretações de toda sorte. A vantagem de um congresso dessa natureza, além da troca de idéias inerente a um evento que se propõe pluriconceitual, dialético e democrático, é que se pode conferir ao vivo e em cores o produto de tanto latim gasto pelo governo em publicidade nos últimos anos, sobretudo o governo FHC. A impressão que fica não é das melhores.

Um episódio chamou a atenção por me parecer emblemático de o quanto aquilo que deveria ser o objetivo principal da escola e da academia ? o desenvolvimento do pensamento e do senso crítico ? estar relegado a quinto plano. Numa das conferências mais concorridas do evento, o cartunista Ziraldo, na sabedoria de suas sete décadas de vida e ancorado na trajetória de resistência à ditadura militar, expôs com a proverbial lucidez e sinceridade o que pensa dos rumos da educação no Brasil nos últimos anos.

O autor de Flicts defendeu a escola de seu tempo, na qual havia a cobrança do devido aprofundamento do aluno, o respeito pelo professor, a disciplina e, principalmente, a leitura ? tema do Congresso. E atacou com a contundência que lhe é característica esse pacote fechado chamado construtivismo, cujo conceito a maioria dos professores compra muitas vezes sem questionar e sem estar preparada para levá-lo a efeito, como se fosse um remédio para todos os males da pedagogia. Não contente com sua metralhadora nostálgica, Ziraldo voltou a direção de seu pedregulho verbal contra a papisa do construtivismo: "Essa Emília Ferreiro é uma chata. Eu estive num encontro com ela outro dia e tive vontade de bater nessa nega!", afirmou Ziraldo, num arroubo de menino maluquinho. A platéia aplaudiu.

Para fundamentar sua grita, Ziraldo usou como argumento os resultados de 2003 do Programa Internacional para Avaliação do Estudante (Pisa), que avalia alunos na faixa dos 15 anos de 41 países. "O Brasil só ficou na frente da Macedônia, da Albânia, da Indonésia e do Peru", alardeou um inconformado Ziraldo (lembrando ainda que no Pisa anterior, de 32 países, o Brasil ficara em 32? lugar). Novos aplausos da platéia, incluindo o meu próprio, vibrando ao ver alguém vir a público nadar contra a corrente e dizer o que poucos têm coragem de dizer: que as teorias construtivistas, a despeito de suas qualidades, que as têm, não podem ser transformadas numa régua de apenas um formato, como deixam entender os parâmetros curriculares nacionais do MEC, sob pena de sermos coniventes com o florescimento de toda uma geração de semi-analfabetos funcionais, aqueles que sabem ler mas não sabem fazer uma análise crítica dos fatos nem dimensioná-los de uma forma articulada. (Em outra conferência luminosa, o jornalista José Arbex Jr. chamou a atenção para outro aspecto pernicioso da educação brasileira: a formação voltada mais para o mercado e para o consumo do que para a formação de cidadãos. Foi aplaudido com entusiasmo.)

Intolerância à crítica

Quando Ziraldo encerrou sua fala, ouviu-se um "ahh…" de lamento na platéia. Queríamos beber um pouco mais daquela água potável, respirar por mais alguns segundos o oxigênio que são suas palavras, nos contaminar da irreverência do humorista. Mas ele não podia ficar. E, como chegou, saiu, fazendo sobressair na barafunda de gente seus cabelos brancos como o algodão.

Na manhã seguinte, o presidente do Congresso, professor Luiz Percival Leme Brito, que estava ao lado de Ziraldo quando ele atacou a teórica argentina e ficara calado, entrou em todos os auditórios para desautorizar a fala do chargista: "Ziraldo tem o direito de ter a opinião que quiser sobre o método de educação que julga melhor para o Brasil, mas não tem o direito de atacar como atacou a pessoa de Emília Ferreiro, um ícone para a comunidade acadêmica educacional!", disse Leme Brito com energia, tirando de Ziraldo, na sua ausência, a principal arma com que o cartunista fustigara as imposturas do discurso oficial nos tristes tempos da ditadura: o deboche. O auditório desabou num caloroso aplauso, alguns não só batendo palmas, mas sacudindo a cabeça para realçar sua aprovação à reprimenda do acadêmico. Quanto a mim, permaneci de braços cruzados. Se gostara da fala de Ziraldo na tarde anterior, não faria sentido aplaudir a reprimenda agora.

Saí do auditório maquinando. Das duas, uma: ou os professores de fato abjuraram o discurso de Ziraldo, e só o aplaudiram por tratar-se de figura querida na comunidade escolar, ou deveria haver um plebiscito para saber se o ovacionaram porque de fato concordam que o construtivismo, da forma mal-ajambrada como vem sendo aplicado nas salas de aula, é um dos principais responsáveis pela situação de catástrofe em que se encontram nossos alunos. Como nem todos os que estavam no ginásio de esportes estavam também no auditório na manhã seguinte, ficou no ar um cheiro de censura velada por parte do Congresso à fala do cartunista.

Desconfio, porém, de uma terceira hipótese. Muitos professores não têm uma opinião formada sobre essas novidades no ensino (que nem são tão novidades assim) ? o que só corrobora a opinião segundo a qual a educação brasileira jaz moribunda numa sala de UTI. E por não terem essa opinião cristalizada, aplaudiram de tarde para renegar na manhã seguinte o aplauso, deixando de barato que um ato de censura fosse levado a cabo contra um dos mais combativos intelectuais do país. E pior: na sua ausência.

Não tenho dúvida de que, ainda que não fosse essa a intenção, o ato de Leme Brito foi um gesto de censura. A academia, de nítido recorte iluminista, não tolera a crítica vinda de fora e, em regra distante de seu objeto, se acha acima dos demais saberes. Está aí o nosso presidente, que não passou pelos muros da universidade e freqüentemente é motivo de zombaria por se comunicar por metáforas ? uma crítica, segundo a filósofa Marilena Chaui, vinda dos que lêem Guimarães Rosa mas não admitem que se fale na língua de Riobaldo. Uma prova irrefutável de que a academia se move por modismos. Lê, mas não processa. E por não processar, não aplica o que aprende a contento.

Paixão pelo texto escrito

O politicamente correto está corroendo a livre expressão das idéias. Não é porque estamos nos últimos patamares do Pisa que vamos entender a expressão "nega", usada por Ziraldo, como de teor racista ? nem quero entrar nesse mérito. As novas gerações fogem da discussão dialética como podem. Todos querem se adaptar para dar certo, para fazer parte do sistema. E para isso calam-se diante das imposturas.

Principalmente das grandes imposturas, que talvez sejam piores nos tempos de democracia, porque investidas de uma ética de fachada ? a mais recente, proclamada em nível mundial, está sendo agora desbaratada pela mídia internacional mais atenta, pondo em maus lençóis os dois sátrapas de plantão, Bush e Blair.

Não vou me aprofundar em outros índices que bem demonstram o quanto são lastimáveis o estágio e a práxis da educação brasileira. Basta dizer que, num congresso de leitura que envolvia temas como mídia e novas tecnologias, não havia terminais com acesso à internet suficientes no campus. Não havia sequer um cibercafé. Para se passar um e-mail, era preciso ficar sentado preciosos minutos na biblioteca central da universidade, à espera de que vagassem os dois terminais disponíveis.

No final, acabei estreitando laços com um autor que ainda não havia lido, Rubem Alves, um educador que transita a meio caminho entre a literatura e a educação. Ao ouvir sua fala, e depois de ler um de seus livros, escrito com Gilberto Dimenstein ? um livro cujo título dá o que pensar: Fomos maus alunos ?, confirmei aquilo que já intuíra da fala de Ziraldo. O que falta para o aluno (e para o professor) brasileiro não são tanto parâmetros, planos, métodos, toda essa parafernália teórica que muitos professores mal retêm e aplicam de modo improvisado. O que falta é tão-somente leitura. E mais do que leitura: a paixão pelo texto escrito, pelo exercício do pensamento, pelo intercâmbio de idéias. Em última instância, ler para descobrir a própria voz e o seu lugar no mundo. Uma prática que não dever estar circunscrita ao perímetro escolar. Uma responsabilidade, enfim, de toda a sociedade civil.

(*) Editor e escritor, 39 anos, autor de Meu caro H ? A convivência de um escritor com o vírus da Aids, Ática, 2001, e Arabescos na cozinha ? Contos e crônicas, Nova Didática, 2002