Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Considerações sobre o óbvio surpreendente

JORNALISMO, MEDIAÇÃO, PODER

Sylvia Moretzsohn (*)

O desenvolvimento tecnológico no campo da comunicação costuma ser associado automaticamente à liberdade de expressão e de acesso à in-formação que constituem promessas fundamentais da democracia. Um mínimo de cuidado com a análise dos processos históricos permitiria perceber que tal otimismo mascara a questão decisiva do poder: nos anos 20, as potencialidades democratizadoras do rádio, saudadas por ninguém mais insuspeito do que Brecht num contexto de grande confiança no socialismo como vislumbre de emancipação da humanidade, viram-se logo submetidas aos interesses das empresas que passaram a controlar o setor. Mesmo assim, a história se repete, retornando agora com mais força com a perspectiva de interatividade apresentada pela internet e a convergência tecnológica daí decorrente, estimulando a integração das várias expressões de mídia. Estaríamos assim diante da possibilidade inédita de viabilização de redes de comunicação sem um centro definido, fazendo supor uma reconfiguração da tradicional idéia de democracia, em que o poder estaria finalmente espalhado e passível de ser exercido por todos.

Não se trata de reproduzir aqui as reservas necessárias a esse tipo de celebração, já demonstradas por vários autores . O objetivo é, mais precisa-mente, apontar as conseqüências que tal celebração traz para o papel do jornalista ? visto sob a ótica de sua representatividade, derivada do espaço que a instituição “imprensa” ocupa em nossa sociedade ?, passível de dispensa ou, o que dá no mesmo, de dissolução nesse turbilhão de vozes que “comunicam”, simultânea e contraditoriamente, num nível de importância supostamente equivalente.

A análise procurará demonstrar que esse processo se insere no contesto mais amplo de deslegitimação das instituições, a começar pelo próprio Estado, no cenário da globalização neoliberal, e prosseguirá com algumas considerações sobre o óbvio ? tornado surpreendente porque já não percebe-lo ?, como a distinção, freqüentemente esquecida, entre a particularidade do jornalismo como atividade profissional e o direito à liberdade de expressão. O objetivo final é apontar a necessidade de se recuperar a legitimidade do discurso jornalístico num momento em que a própria idéia de mediação é contestada, em nome de uma pretensa democracia direta sintonizada com a emergência do multiculturalismo e de movimentos sociais que apostam no senso comum como fonte de verdade; mas recuperar essa legitimidade num sentido crítico à sacralizada idéia de “quarto poder”, o que significa desmistificar o trabalho da imprensa e demonstrar que o processo de mediação se insere num campo de luta simbólica passível tanto de atuar na reprodução de estereótipos quanto no sentido oposto.

A pulverização do mundo

As profundas transformações por que o mundo passou na virada para a última década do século XX, e que têm na queda do muro de Berlim seu símbolo mais eloqüente, forneceram o terreno para o fortalecimento e a proliferação de uma multiplicidade de movimentos sociais refratários às formas tradicionais de organização política legitimadas nos tempos da bipolarização ideológica. O potencial contestador desses movimentos, especialmente visível em grandes manifestações como os protestos contra a Organização Mundial do Comércio e as edições do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, vem sendo problematizado por diversos autores (por exemplo, Gómez, 2001; Hardt, 2003), que sublinham a rejeição a ações unitárias como uma característica e ao mesmo tempo uma dificuldade para a realização do projeto do “outro mundo possível” ? sobre o qual, aliás, tampouco existe consenso. A propósito, Hardt (in Moraes, 2003:342) define bem as duas vertentes gerais explicitadas no último Fórum, relativas ao papel da soberania nacional: “ou trabalha-se para reforçar a soberania do Estado-nação como barreira defensiva contra o controle do capital estrangeiro e global ou luta-se por uma alternativa não nacional para a forma atual de globalização que seja igualmente global”, o que, neste segundo caso, implicaria a contestação do capital “em geral”, regulamentado ou não pelo Estado. Outros continuam a enfatizar a necessidade da luta pelo poder do Estado e desconsideram, como ilusório, o discurso “alternativo” do “público não-estatal” que prolifera entre esses movimentos (Oliveira, 2003).

Uma das justificativas para essa rejeição deliberada à ação unitária é a contestação prática às formas tradicionais de militância, em torno de sindicatos, partidos políticos e organizações semelhantes, acusadas de uma regerdes incapaz de absorver a diversidade das demandas que ora transbordam. A pertinência da crítica não evita, porém, o risco de uma atomização aparen-temente explosiva mas realmente pouco eficaz como ação política, e até mesmo passível de resultar no mais radical conservadorismo, pois, em nome de um “respeito às diferenças” que resvala para um improvável retorno à “pureza” cultural, termina-se por demarcar de maneira estanque o campo social, no caminho inverso à desejável ? e conflituosa ? integração entre dis-tintas culturas (Young, 2002).

É também nesse quadro que viceja a idéia de contestação ao saber institucionalizado, à ciência e à própria razão, de tal forma que todos os dis-cursos passam a ter a mesma validade, igualando-se justamente pelo fato de serem “diferentes”, mas jamais superiores ou inferiores em relação aos demais. Tal é o quadro da suposta “fluidez” pós-moderna, assumido mesmo por quem o critica, como Boaventura de Sousa Santos, intelectual notoriamente engajado em múltiplas militâncias contemporâneas, que vê a ciência (no “novo paradigma” da pós-modernidade) como um “conhecimento discursivo, cúmplice de outros conhecimentos discursivos, literários nomeadamente” (Santos, 1999:332) e que é capaz de afirmações como esta:


Há muitas formas de conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que as geram e as sustentam. Práticas sociais alternativas gerarão formas de conhecimento alternativas. (…) Para dar um exemplo caseiro, o conhecimento dos camponeses portugueses não é menos desenvolvido que o dos engenheiros agrônomos do Ministério da Agricultura (idem:330).


No caso que aqui nos interessa, seria evidente que, se tudo se equivale, não haveria por que conferir ao jornalismo uma autoridade especial: seria apenas um discurso entre tantos, igualmente válidos. Mas, antes de enfrentar essa questão específica, será preciso dedicar alguma atenção ao que se passa no chamado “campo da comunicação”.

A inversão de significados

O discurso da equivalência é sedutor porque representaria finalmente a valorização de culturas e reivindicações tornadas subalternas por séculos de dominação. Mas, ainda aqui, é preciso atentar para as armadilhas das aparências ? embora até mesmo aquela famosa distinção entre aparência e essência que possibilitaria a ciência seja hoje posta em dúvida, como aponta José Paulo Netto (2001) em referência de rodapé. Pois “o importante é saber quem manda”, já dizia Humpty Dumpty à perplexa Alice ? e se tratava justamente da manipulação das palavras, do poder de significar. Então é possível cunhar a expressão “Eixo do Mal” para desencadear uma nova “guerra santa” que ignora o direito internacional e arrasa (verdadeiramente) o inimigo. Mas nem seria preciso apelar a esse exemplo óbvio e radical de superioridade no exercício do poder: seriam bastantes os fatos corriqueiros e dramáticos da vida cotidiana, onde, pelo menos em tese, todos temos direito à diferença, mas raros conseguimos emprego ? e onde a palavra “enxugamento” significa o poder de definir quais e quantos enfrentarão a brutal realidade da rua.

O afloramento do discurso da equivalência corre paralelamente ao avanço da globalização neoliberal, pródiga em inverter o significado das palavras, como aponta Boron (apud Moraes, 2003:189) a propósito da idéia de reforma, “exitosamente utilizada para designar o que qualquer análise minimamente rigorosa não vacilaria em qualificar de ?contra-reforma?”, explicitada na “auto-regulação natural” dos processos econômicos que mascaram a legalização do controle oligopólico da economia e que vai de par com o corte de direitos e garantias e o estrangulamento dos investimentos sociais do Estado, cujo papel é reduzido ao mínimo. Mas não sem uma sugestiva contrapartida, essencial para o que nos interessa aqui: a substituição das políticas públicas pelas ações de voluntariado, apresentadas positivamente como o incentivo e o fortalecimento de laços de solidariedade e o estímulo à iniciativa dos cidadãos que deixariam de aguardar eterna e passivamente pelas providências do Estado e resolveriam substituí-lo, cada um “fazendo a sua parte” ? e não, como seria esperável de um efetivo exercício de cidadania, exigindo do Estado o cumprimento de suas responsabilidades.

É um dos pontos culminantes da inversão de significados, um “não-direito” (Montaño, 2002:22) como mais direito, uma vez que ações voluntárias são… voluntárias, isto é, dependem da vontade de quem as promove, de modo que não criam obrigações passíveis de serem reivindicadas.

Tem-se aí, portanto, o terreno propício à desqualificação das instituições, na mesma medida do apelo à ação direta, com conseqüências particularmente graves quando se trata da promoção da justiça ? e embora aqui não seja, evidentemente, o espaço para se tratar desta especificidade, serão inevitáveis algumas considerações a respeito, mais à frente.

Antes, porém, importa destacar o papel da mídia na produção e na busca da conformação e disseminação desse ideário, do qual comunga por ser controlada por corporações cada vez menos numerosas e mais poderosas, com duas particularidades que contam a seu favor: o fato de trabalharem com a tecnologia que realiza o projeto globalizante de interconectar o planeta ? viabilizando o fluxo ininterrupto das informações de acordo com os interesses do capital financeiro ? e de lidar diretamente com a produção do discurso em seus vários produtos, dos noticiários às diversas opções de entretenimento.

Dênis de Moraes resume o estágio atual de concentração das empresas de comunicação:


A mídia global está nas mãos de duas dezenas de conglomerados, com receitas entre US$ 5 bilhões e US$ 35 bilhões. Eles veiculam dois terços das informações e dos conteúdos culturais disponíveis no planeta. Entrelaçam a propriedade de estúdios, produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes, gravadoras de discos, editoras, parques de diversões, TVs abertas e pagas, emissoras de rádio, revistas, jornais, serviços online, portais e provedores de Internet, vídeos, videogames, jogos, softwares, CD-ROMs, DVDs, equipes esportivas, megastores, agências de publicidade e marketing, telefonia celular, telecomunicações, transmissão de dados, agências de notícias e casas de espetáculos (Moraes, 2003:198-9).


O autor observa também que há, de fato, um progressivo aumento da oferta de mercadorias nesse vasto campo da comunicação, “tanto aquelas para públicos massificados quanto as direcionadas a segmentos de consumidores”, mas a propriedade dos meios não pára de se concentrar.


“A diversificação das programações televisivas com os canais a cabo e via satélite não alterou, ao contrário reforçou o acúmulo patrimonial” (idem:206). A multiplicidade de opções, ademais de depender da capacidade aquisitiva de determinado público, esconde a questão central sobre o poder de decisão: “Os limites da variedade oferecida aos consumidores continuarão sendo definidos pelas instâncias privadas de produção e comercialização” (idem:207).


Moraes aposta nas possibilidades da internet como espaço privilegiado para a contestação desse oligopólio e a apresentação de saídas democratizantes, embora reconheça que a “cibermilitância” esbarra na evidente exclusão digital que atinge gravemente os países periféricos ? no Brasil, o abscesso à rede estaria ainda restrito a 10% da população . Mas considera que esta forma de luta não se basta a si mesma: ao contrário, precisa ser vista como complementar às tradicionais formas de mobilização coletiva, que, segundo ele, continuam insubstituíveis.


Apontar a Internet como ferramenta comunicacional de novo tipo em absoluto significa subordinar as lutas políticas ao avanço tecnológico, ou ainda aceitar impulsos voluntaristas que tendem a menosprezar as mediações sociais e os mecanismos clássicos de representação política (idem:211).


O próprio alerta estaria a sugerir a força desses impulsos voluntaristas. E não deixa de ser curioso notar que tais apelos não partem apenas de movimentos contestadores, mas são estimulados pela própria dinâmica da globalização neoliberal, com a já referida desqualificação das instituições e o incentivo ao voluntariado. É nesse quadro que surgem propostas, tanto no campo da chamada comunicação popular como no da luta pela ocupação de espaços na mídia, que confundem o exercício do jornalismo com o direito constitucional à liberdade de expressão ? questão, aliás, recorrente nas inúmeras vezes em que tem sido posta em causa a exigência do diploma para jornalista ? e apontam, de fato, para um ideal que, embora impossível, seria a tradução prática da verdadeira democracia: a possibilidade de falar e de saber das coisas por si próprio, dispensando a mediação do jornalista.

O óbvio surpreendente ? e o nem tão óbvio assim

A questão não é nova: remonta aos anos 20, quando o rádio prometia fazer de cada indivíduo um comunicador. O desenvolvimento da internet ? e, através dela, a recente proliferação dos blogs, dos quais já se considerou a hipótese de serem um substituto para o jornalismo ? é uma espécie de repetição da história. Com um elemento fundamental a mais: a valorização da informação instantânea, tornada possível com as transmissões ao vivo, via satélite, nos anos 80.

Portanto, são as próprias corporações de mídia que, trabalhando de acordo com a lógica do “tempo real” do capital financeiro, concorrem para a desqualificação do trabalho de mediação fundamental ao exercício do jornalismo, uma vez que a instantaneidade inviabiliza a tarefa de interpretação que é um dos requisitos básicos dessa profissão: como diz Ramonet (1999:14), não há distanciamento temporal possível para analisar o “instante”. Assim, é a condição promovida pelos arautos da globalização neoliberal que fornece os melhores elementos para o discurso libertário que, empenhado na mobilização popular, ignora o grau de legitimidade específico da in-formação jornalística.

É preciso, aqui, retornar às origens históricas dessa legitimidade: os valores que até hoje fundamentam a atividade da imprensa nascem dos editais então revolucionários do liberalismo, em fins do século XVIII, quando se formula o moderno conceito de cidadania. É daí que decorre a noção de “quarto poder”, através da qual a imprensa aparece como salvaguarda das instituições, guardiã do interesse público contra os abusos do Estado. Aparece, porque de fato não atua sem interesses particulares, o que fica mais evidente quando se constituem as grandes empresas de comunicação. Mas a crítica a esse caráter mistificador do “quarto poder” não invalida os princípios de serviço público em torno dos quais o jornalismo deve ser exercido, e são eles que conferem ao jornalista a representatividade junto às fontes e a credibilidade junto ao público.

No entanto, a facilidade proporcionada pelas novas tecnologias torna cada vez mais comum o discurso de que o trabalho do jornalista é dispensável, ou no mínimo equivalente ao de qualquer outra pessoa que deseje “comunicar”. E aqui ocorre provavelmente uma confusão entre o estímulo a projetos voltados para a participação comunitária ? tão freqüentemente apropriados pelas grandes empresas na famosa fórmula do “resgate da auto-estima” dos “excluídos”, que desvirtua e dilui o sentido político da cidadania ? e os requisitos necessários à tarefa de informar. O comentário de Ramonet (2003:251) é esclarecedor:


Quando refletimos sobre a comunicação dominante ou sobre a comunicação alternativa, o que as duas têm em comum é o fato de que são comunicação e de que não é possível comunicar-se bem de qualquer maneira: faz falta uma série de técnicas.


A confusão pode decorrer da generalização, para o campo profissional, de uma proposta generosa como a de Martín-Barbero (in Moraes, 2003:70-71) a respeito do alargamento do papel da comunicação:


Comunicar foi e continuará sendo algo muito mais difícil e amplo que informar, pois comunicar é tornar possível que homens reconheçam outros homens em um duplo sentido: reconheçam seu direito a viver e a pensar diferente, e reconheçam a si mesmos nessa diferença, ou seja, que estejam dispostos a lutar a todo momento pela defesa dos direitos dos outros, já que nesses mesmos direitos estão contidos os próprios.


A concepção redutora do trabalho de informar esbarra em formulações exatamente contrárias, que justamente valorizam a informação (e a densidade aí embutida, a possibilidade de fazer refletir e formar opinião) e apontam o caráter ilusionista (melhor diria, alienante) da comunicação, associada ao espetáculo do “tempo real” promovido pela grande mídia, que fetichiza a velocidade (Moretzsohn, 2002): a máquina precisa “comunicar”, e comunicar “ao vivo”, não importa o quê. Ela é o principal personagem. Por isso, diz Langlois (apud Ramonet, 1999:102), “quanto mais se comunica, menos se informa, portanto mais se desinforma”.

Há, portanto, um claro conflito entre o que diferentes autores entendem por informação e comunicação. De todo modo, a concepção de Martín-Barbero a esse respeito encontra paralelo na distinção estabelecida entre intermediário e mediador, o primeiro classificado como “aquele que se instala na divisão social e, em vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a exclusão, defende o seu ofício”, de modo que continua a ser uma elite diante de “meros receptores e espectadores resignados“, enquanto o outro estaria empenhado em “fazer possível uma comunicação que diminua o espaço das exclusões ao aumentar mais o número de emissores e criadores do que os dos meros consumidores” (Martín-Barbero, in idem:69). Os grifos são meus, para destacar que, ao falar de resignação e passividade, o autor provavelmente se refere ao poder de participação, e não à relação que se estabelece em toda situação de comunicação, na qual o público, ainda que passivo (isto é, na posição de receptor), está sempre a reelaborar significados.

Outro aspecto importante, e que resulta num relativismo que o próprio autor criticará páginas adiante, refere-se à sugestão de que a defesa de um ofício seja necessariamente autoritária, corporativista e excludente.

São exemplares, a propósito, dois artigos do professor Antônio Brasil, oportunamente publicados no Comunique-se (www.comunique-se.com.br), um site que estimula o debate entre um público formado principalmente por jornalistas, professores e estudantes de Jornalismo em torno de questões profissionais e da área da comunicação em geral. Ambos os artigos referem-se a experiências e possibilidades no campo da televisão: um, o elogio de uma iniciativa classificada como “comunitária” e contestadora do poder das grandes redes ? a TV Muro, projeto de um morador de favela em Minas; outro, a defesa de uma “TV dos telespectadores”, que sugere a ocupação de espaços nos meios de comunicação.

No primeiro caso, o professor louva a iniciativa de Dario dos Santos, o Chiquinho da TV Muro, que, “apesar de pobre, morador de uma favela em Sabará, Minas Gerais, resolveu desafiar os poderosos e as suas próprias limitações para criar a Rede Muro, a sua própria rede alternativa de TV”. Trata-se de um aparelho de televisão posto em cima do muro da casa de Chiquinho, que fica transmitindo a quem estiver passando por ali “diversos programas produzidos ? Deus sabe como ? pelo apresentador, produtor, realizador dessa TV de um homem só” (Brasil, 2003a).

No segundo caso, o autor apresenta um projeto de TV a cabo nos Estados Unidos segundo o qual os programas não seriam “produzidos por ?profissionais? de TV, mas pelos próprios telespectadores. Milhares de pessoas com as suas minicâmeras espalhadas por todo o país enviando via internet seus ensaios videográficos, matérias jornalísticas ou meras propostas pessoais ou reclamações que se transformariam na própria programação de uma rede de TV do telespectador”. Nessa mesma linha, solicita que imaginemos “um telejornal como o JN [Jornal Nacional, da TV Globo] com um bloco inteiro produzido pelos telespectadores. Matérias produzidas por quem não tem voz na TV”, como contrapartida à velha e viciada fórmula do “povo fala” (porque “o povo ?fala? na TV somente aquilo que o jornalista ou o patrão determina”). E conclui da seguinte forma:


Na proposta de uma TV do telespectador, representantes do próprio público se tornam editores ao selecionar o que vai ao ar. Trata-se de mais uma proposta de guerrilha na TV. Assim como outros guerrilheiros, lutamos com o que temos à mão. Sonhar com um tanque de guerra de última geração ou com uma rede de TVs públicas brasileiras livre, de verdade, não muda o mundo. Mas uma boa idéia em um meio poderoso de comunicação pode, ao menos, torná-lo menos “injusto”. Outros, com muito menos, mudaram o mundo! Agora, só para provocar os mais radicais. Vocês já imaginaram o poder dessa proposta para movimentos populares como o MST? Já imaginaram uma rede de TV MST? É só uma questão de tempo! (Brasil, 2003b).


Aqui começam algumas das considerações sobre o óbvio que, de tão esquecido, chega a parecer surpreendente. Em primeiro lugar, a obviedade que se esconde no elogio do trabalho voluntário, pois as pessoas precisam ganhar a vida em suas respectivas profissões ? ou, nos duros tempos que correm, talvez enfrentem a dificuldade maior de tentar conseguir algum meio de sobreviver ?, têm seus prosaicos afazeres da vida cotidiana e, subsidiariamente, ainda se dispõem a “comunicar”. Seria mesmo importante esclarecer o processo de produção que, por enquanto, “só Deus sabe” como é.

Do que decorre uma segunda surpreendente obviedade: a constatação de que o jornalismo é uma profissão, uma atividade exercida por alguém que a ela dedica seu tempo de trabalho e daí retira o seu sustento. Uma atividade que exige uma qualificação específica: o conhecimento de determinadas técnicas e uma formação capaz de dar ao profissional condições de mover-se nesse terreno conflituoso em que tantos interesses disputam o espaço midiático, além das imprescindíveis referências éticas envolvidas na tarefa de informar.

A terceira obviedade, já anotada em 1987 por Perseu Abramo em pequeno artigo na Folha de S.Paulo, mas sempre esquecida, é quanto à confusão entre o trabalho jornalístico ? o exercício de uma profissão que implica a responsabilidade na apuração e divulgação das notícias ? e o direito constitucional à liberdade de expressão e de comunicação, que é de todos, deve ser incentivado e certamente se amplia significativamente com o acesso às novas tecnologias.

“Faça você mesmo”: faça como a Globo

O convite à imaginação sobre um espaço no Jornal Nacional gerido pelo próprio público não é certamente um bom argumento. Não que se tome a sério o exemplo concreto, pois isso equivaleria a supor que as grandes redes resolveriam abrir mão do seu poder (entre outros, o de impedir que o povo “fale”) e transferi-lo, ainda que parcialmente, ao público. A questão é que o necessário incentivo à ocupação de espaços viabilizados pelos canais a cabo exigiria a consideração sobre o acesso dos espectadores à TV paga e, subsidiariamente, os problemas a serem enfrentados quando se trata de estabelecer um hábito de audiência.

Mas cabe notar que o desprezo aos “profissionais” (postos entre aspas) significa a rejeição da imprensa como instituição e referência de credibilidade no trabalho de mediação discursiva. A propósito, a resposta de Brasil a uma das críticas publicadas na seção de comentários a seu artigo revela o relativismo tão caro aos pós-modernos:


Para mim, jornalista não é o único mediador sagrado de informação com direitos exclusivos. É um dos diversos trabalhadores que trabalham com informação. Cabe ao público selecionar a melhor fonte. Mas essa não é a verdade absoluta. É somente a “minha” opinião.


Estaríamos, portanto, diante do jornalismo ? e de teorias sobre jornalismo ? as you like it. Como convém, aliás, ao reino do consumidor projetado pelo neoliberalismo. Mas a ilusão quanto à possibilidade de eliminar-se a mediação representada pela presença do jornalista indica duas questões de fundo. A primeira, mais evidente: o esquecimento de que todo discurso implica uma mediação. A outra, a falsa suposição de que, uma vez que o “povo” fale, ele falará com sua “própria” voz. Explicita-se aí o completo desconhecimento dos mecanismos através dos quais o senso comum se forma e se consolida, tendendo, no caso, a repetir as fórmulas aprendidas no convívio cotidiano com a programação televisiva, de modo que o incentivo ao “faça você mesmo” acaba resultando em “faça como a Globo”.

Portanto, o que subjaz ao elogio da ação direta é essa crença ingênua de um retorno ao senso comum como fonte de “verdade”. Rompe-se assim a perspectiva dialética de interação capaz de elevar o senso comum ao bom senso crítico, como queria Gramsci: qualquer interferência “externa” é vista como uma insuportável tentativa de dominação, de sufocação de uma expressão “naturalmente” autêntica.

Então retornamos à questão do descrédito das instituições, e podemos agora retomar o que foi apenas sugerido a propósito dos riscos dessa situação, especialmente no que diz respeito à promoção da justiça. Se o jornalista não é reconhecido como referência para a prestação de um serviço publico essencial como a informação veraz, e sim visto como um entrave à livre expressão do público, advogados e magistrados tampouco serão referencia de respeito aos princípios do Estado de direito mas, ao contrário ? e contraditoriamente ?, a evidência de um entrave para a realização da justiça. Pois garantias como o devido processo legal, a presunção de inocência, a plenitude da defesa, enfim, os procedimentos jurídicos regulamentares são postos automaticamente sob suspeita, uma vez que o benefício da dúvida é associado imediatamente à tentativa de encobrir uma verdade já previamente definida, capaz de aflorar por si só. E é importante perceber que são as grandes corporações de mídia as responsáveis pela disseminação dessa crença, tanto pela valorização do “tempo real” ? e a conseqüente condenação do tempo lento da justiça ? como pelos recursos mobilizados para “reportagens-denúncia”, com ênfase na câmera oculta como prova imediata de verdade .

A mediação contra o estereótipo

Na metade final da década de 80, um período especial da história política do país ? a intensa, embora derrotada, mobilização pelas eleições diretas em 84, a Constituinte concluída em 88 e, no ano seguinte, as primeiras eleições diretas para presidente depois de 21 anos de ditadura ?, começaram a proliferar os debates sobre “democratização da comunicação”, entendida aí como a democratização das grandes empresas de comunicação, dado o alcance obviamente superior a qualquer iniciativa comunitária. Num desses debates ficou registrada a contundente manifestação de um dos participantes, que havia trabalhado em televisão e relatava sua inconformidade com a maneira de atuar dos jornalistas:


A gente tinha a obrigação de pegar informações e depoimentos de professores das universidades, professores sérios, que estão fazendo trabalho com a população, alfabetizando adultos, e a gente não conseguia de jeito nenhum, porque os professores tinham pavor, porque os jornalistas, a equipe que estava com a gente, além de ter uma abordagem diferente, eles fazem uma abordagem esquisita, não sei como te explicar, é uma abordagem estranha, eles não respeitam ? não sei se é respeitar, é meio perigoso dizer. Enfim, os professores universitários tinham pavor disso. (…) [Queria saber] o que se faz em função disso para tentar conscientizar os próprios jornalistas, porque eles são horrorosos. A gente vê na televisão os programas, eles retiram a informação, eles cortam o que querem, a gente fica à mercê deles, a gente quer falar e não consegue. (Novaes, 1989:23).


Manipulação, reiteração de estereótipos, técnicas a serviço do silenciamento de um público tratado como figurante: horroroso é uma qualificação suave. Mas será preciso identificar nas rotinas de produção a origem de muitos desses vícios. O ritmo cada vez mais acelerado de produção não deixa mesmo muita margem a questionamentos, de modo que a tendência é o estabelecimento de um paradoxo: a reprodução do mesmo por parte de quem promete o novo ? ou, dizendo melhor, a eterna reprodução do mesmo sob aparência de novo. Paradoxo também aparente, porque este é um mecanismo essencial para a manutenção do senso comum, perfeitamente adequado aos propósitos das grandes corporações de mídia, solidárias com o projeto de globalização em curso.

É através dessas rotinas de produção que as grandes corporações de mídia naturalizam o exercício do seu poder simbólico: “Assim são as coisas”, como no famoso bordão de encerramento do telejornal da CBS. Nesses termos, o trabalho de mediação tende a ser tão previsível quanto o estereótipo que ele reproduz e banaliza, ficando as raras exceções como resultado do esforço individual do jornalista que eventualmente consiga aproveitar uma oportunidade de fuga do lugar-comum, enquanto a regra é seguida e ditada por aqueles profissionais enquadrados às necessidades do sistema, e que, como diz Champagne (1998:98), fazem “o que a instituição deseja sem que esta lhe imponha qualquer exigência, isto é, ?com toda a liberdade?”.

Recuperar o papel da mediação jornalística implica investi-lo do sentido político mascarado pela prevalência da idéia liberal de “quarto poder” e enfrentar essa lógica das rotinas de produção, o que significa enfrentar as bases sobre as quais as grandes corporações se estruturam. Implica certamente o fortalecimento dos movimentos sociais nas suas reivindicações ? e nas suas ações práticas de comunicação comunitária ? pela democratização da informação, mas, sobretudo, o fortalecimento do papel do Estado, que é a instância capaz de estabelecer obrigações e limites a essas corporações. Mesmo porque, apesar de toda euforia libertária, é na relação com o Estado que os movimentos sociais podem fazer valer suas demandas.

Sempre restará, porém, a disputa pelo sentido investido nesse processo de mediação, e que tantas vezes reproduz o preconceito utilizando simples técnicas de edição jornalística, conformando aquela angústia de que “a gente quer falar e não consegue”. A propósito, um dos exemplos mais eloqüentes ocorreu durante as eleições de 89, que, além de representarem a reconquista da escolha direta do presidente da República depois da longa ditadura, trazia como novidade o voto do analfabeto, cortado havia mais de um século. Uma pauta óbvia era sobre aquela experiência inédita: entrevistar cidadãos analfabetos que foram às urnas ? analfabetos, obviamente, que superassem a vergonha de se assumirem como tais. Uma dessas pessoas, uma mulher bonachona que saía da seção eleitoral acompanhada dos filhos, atendeu amavelmente à solicitação da repórter e, sorridente, começou a dizer que era muito importante votar porque era uma forma de contibu… con-tibru… “contribuir”, ajudou a repórter, puxando o microfone para si e logo depois o devolvendo à moça. “Iiiisso”, disse ela, sem saber (nem a repórter) que a cena seria cortada ali.

Estava falando para todo o Brasil, via satélite, sobre seu voto como forma de contribuir para a democracia, quando lhe cassaram a palavra.


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(*) Jornalista, professora da UFF, autora de Jornalismo em “tempo real”. O fetiche da velocidade (Revan, 2002); texto apresentado aos debates do 1? Encontro da Sociedade Brasileira dos Pesquisadores de Jornalismo (SBPJor )