Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Construção cultural do Brasil

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Sebastião Jorge (*)

Sérgio Buarque de Holanda (1902-82) soube com propriedade definir o perfil do brasileiro. Os traços que compõem o caráter nacional nos levam a conhecer melhor a nossa gente. Com sensibilidade cunhou a expressão "homem cordial" para revelar o que temos de mais puro: generosidade, paixão pelas coisas e alegria pela vida. Não pode ser esquecida a hospitalidade.

O brasileiro às vezes é tão bom que chega a ser bobo. A generosidade beira a burrice, daí ser enganado facilmente. Torcer por futebol não é uma circunstância, mas um ato apaixonado. Em certos momentos mata por amor ou morre levado pela ingenuidade. Ninguém trata melhor o forasteiro do que nós. Somos capazes de ceder um quarto da casa e a nossa cama. Se o hóspede insinuar, emprestamos o dinheiro do leite ou das férias das crianças, para nunca mais o recebermos. Acomodados por natureza, nem a falta de satisfação será reclamada…

Outro particular sobre o qual somos únicos é quanto o tratamento dispensado às pessoas que gostamos ou fingimos gostar. Passam a ser conhecidas não pelo nome, mas pelo diminutivo. Assim temos no futebol: Ronaldinho, Juninho, Robertinho, Liminha ou então Bebeto, Zico, Pelé etc. Os santos também são tratados com intimidade. Santa Teresa de Lisieux passou a ser conhecida por Terezinha.

Eis que surge uma nova maneira de homenagearmos os mais íntimos, chamando-os pelas primeiras letras do nome. O incentivo do que era conhecido vem da Casa dos Artistas 3, no SBT, ou do Big Brother, da Globo. Assim, Luíza é Lu, Solange é Sô, Adriana é Dri, Manuela é Manu. O Zé é coisa nossa. Os apelidos começaram com os índios, que não perdoavam o exotismo dos portugueses.

O brasileiro não é só isso. Há o lado negativo, aquele lado sabido que o transforma num malandro de carteirinha. É neste particular que se torna mais do que um mestre de primeiras letras… Chega a ser catedrático em armações. Para tanto usa não apenas o estudo, como engenho e arte.

Por essas espertezas pagamos caro pela imagem que desfrutamos lá fora. Os filmes de Hollywood se encarregaram desse péssimo marketing. Ao punir os bandidos, estes são mandados para o Brasil. O destino quase sempre é a Amazônia, onde para eles há índios que comem gente e as piranhas são dispensam um banquete de carne humana. Pensam os gringos que somos uma colônia penal, espécie de filial de Alcatraz americana, e não um país de respeito.

Sérgio Buarque de Holanda reservou crítica a muitos dos nossos homens de letras "de saber pedante", considerando-os às vezes, pretensiosos, com acentuado gosto pelas citações. O polimento mostrado é maior do que o conteúdo. Não se esqueceu da praga do bacharelismo, citando Portugal como pioneiro nesse tipo de exemplo. Na mãe pátria, um diploma de bacharel valia tanto quanto uma carta de recomendação nas repartições públicas. Entre nós não foi diferente. A origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente "ao nosso apego quase que exclusivo aos valores da personalidade" ? diz-nos. O emprego é disputado de qualquer jeito, aliás, no vale tudo. A regra é uma só: a esperteza. O ato de promoção ou brigar pelo aumento de salários leva o candidato a caminhos condenáveis, daí, citar um observador estrangeiro que acrescentou: "Ocupar cinco a seis cargos ao mesmo tempo e não exercer nenhum é coisa nada rara".

O historiador Sérgio Buarque que também foi crítico literário, sociólogo, diplomata e jornalista não se esqueceu de comentar sobre a chegada da tipografia e da universidade no Brasil. Reconhece neste fato as causas do nosso atraso cultural. Enquanto a colonização espanhola implantou nos territórios ocupados, no século XVI, as universidades de São Domingos e Salamanca, o mesmo acontecendo com a tipografia e o jornal, o Brasil amargou uma espera de mais de três séculos. Em 1671 o México conheceu o jornal Gaceta e nós só em 1808, com o Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, que nos chegava de contrabando.

Fazendo um paralelo sobre a colonização espanhola e a colonização portuguesa lembrou que a primeira queria construir nas terras dominadas um prolongamento do seu país, enquanto a segunda interessava apenas o negócio, a riqueza. Coroando a tese acrescentou: "Na América Portuguesa o que valeu foi a obra dos jesuítas, rara e milagrosa". Na cidade do México já no século XVI foram publicadas 251 obras; no século seguinte, 1838, e no século XVIII, 6890. No Brasil apareceu uma tipografia em 1747, de propriedade de Isidoro da Fonseca, para ser fechada, logo depois. Cultura, no país por essa época, era luxo.

Todas essas considerações se encontram no livro Raízes do Brasil, de autoria daquele sociólogo, que em julho de 2002 completou 100 anos de nascimento. Esse livro, o mais lido de suas obras, editado em 1936, acha-se na 9a edição. Foi traduzido para vários idiomas e há décadas vem influenciando gerações, pelo olhar atento, abordagem segura e diferente sobre a história do Brasil. A obra ao lado de outras do mesmo valor, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire e Formação do Brasil Colonial, de Caio Prado Jr. são responsáveis pela compreensão da cultura brasileira.

Estudos críticos a respeito da obra tem merecido muitas interpretações. E nela o que não se pode negar é o senso de humor, temperamento irreverente e a seriedade nos trabalhos de pesquisa realizada também no exterior. Sérgio Buarque, ex-professor da Universidade de São Paulo, no que pese a seriedade acadêmica, não desprezava o lado boêmio, a exemplo do famoso filho, o cantor, compositor e escritor Chico. Sobre os dois nomes respeitados Sérgio costumava dizer brincando, que na família o famoso era o Chico.

O historiador tinha consigo um certo particular que lhe levou a se identificar com o perfil que cunhou para definir o caráter brasileiro como "homem cordial", sendo, portanto, o seu mais legítimo representante, no bom sentido.

(*) Professor universitário, jornalista, advogado e escritor