Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Contra a liberdade indiscriminada de expressão

OFJOR CIÊNCIA 99

 

Cláudio Weber Abramo (*)

 

A

réplica do sr. Almeida Filho ao meu comentário a respeito de um seu artigo que tratava da teoria da evolução oferece oportunidade para observações adicionais. Estas são apenas em parte, e brevemente, ligadas ao tema original. Desta vez, o que interessa é examinar as condições que permitem o uso de veículos de comunicação (como é este Observatório) para a exposição de idéias como aquelas que são defendidas pelo sr. Almeida Filho.

De in&iacuiacute;cio, recordemos rapidamente do que se trata: o sr. Almeida Filho afirma que a teoria da evolução apresenta problemas; eu afirmo que, apesar dos problemas, essa explicação é a mais simples, e que nenhuma outra racionalmente aceitável se apresenta para tomar o seu lugar; por fim, o sr. Almeida Filho retruca afirmando que os problemas do neodarwinismo deveriam fazer as pessoas o abandonarem; e adianta que existiria, sim, uma concepção rival que poderia tomar o seu lugar, a “teoria” do design inteligente ? leia-se criacionismo, isto é, a idéia de que a vida existiria no Universo por desígnio de alguma mente. Considerando que o sr. Almeida Filho se apresenta como “mestre em Estudos Bíblicos”, não é difícil imaginar qual desígnio e qual mente estariam sendo propostos.

Pois bem, não é necessário recorrer a complicações da teoria do conhecimento (as quais o sr. Almeida Filho basicamente ignora, apesar da imagem que pretende projetar) para concluir qual é a mais aceitável entre duas explicações: uma, que postula a existência de um processo de alteração genética que se dá gradual ou catastroficamente ao longo da passagem do tempo; e outra, que postula a existência de uma inteligência cósmica capaz de criar a vida.

Como crente em inteligências incorpóreas, está fora do alcance do sr. Almeida Filho perceber que a postulação da existência de um ser sobrenatural (chame-se ele como se desejar, de Ra a Jeová, de Amon a Allah) ? existência essa que, por hipótese religiosa, não pode ser acompanhada de qualquer evidência que a sustente ? se situa solidamente fora do escopo de pensamento admissível no debate racional. Para exprimir de forma simples, a posição do sr. Almeida Filho não é respeitável, não merecendo, por isso, maiores considerações.

Por esse motivo, é melhor abandonar de vez o assunto e passar ao que interessa: qual a razão que faz manifestações de superstição e obscurantismo serem, hoje, tão comuns nos meios de comunicação, dividindo quase por igual o espaço com o pensamento respeitável? O que isso significa para o futuro das sociedades?

Por exemplo, a TV Congresso, que é sustentada com dinheiro público, veicula conferências de indivíduos que propagam as virtudes do aproveitamento de “energias universais” no aperfeiçoamento pessoal dos indivíduos. Volta e meia, igrejas (e “igrejas”) propugnam pelo retorno da educação religiosa às escolas públicas. O misticismo, em especial religioso, há anos é pauta obrigatória de programas de televisão como o Fantástico. Procissões, festividades, jubileus, milagres, curas místicas, são veiculados no mesmo segmento de telejornal que trata de uma sonda espacial ou de um novo chip de computador. Tudo virou “conhecimento”. Mas é verdade que se trata de conhecimento? Ou, colocado de outro modo: é verdade, mesmo, que maluquices pseudocientíficas, misticismo, religiosidade, terapias florais e todo o resto de uma lista de picaretagens que a cada dia se alonga, têm direito de receber veiculação pública?

Perfeitamente ciente das dificuldades que tal posição acarreta, proponho que não: não há motivo para se sustentar que qualquer opinião, perspectiva, ponto de vista, especulação etc. seja dotada de modo automático do direito de propagação, meramente pelo motivo de ter sido expressa por alguém. Não há nada de “democrático” nessa liberalidade indiscriminada; ao contrário, é altamente antidemocrático, porque trabalha contra o esclarecimento das pessoas e, portanto, em favor de sua dominação e submissão aos poderes que as oprimem.

De onde vem essa liberalidade? Vem de diversas direções simultaneamente. Vejamos algumas.

1. A disseminação do vale-tudo intelectual, que situa no mesmo nível de respeitabilidade terrenos tão dessemelhantes quanto a física e a psicologia, a química e a sociologia, a biologia e a religião. Se no imaginário geral a física e a psicanálise se situam num mesmo patamar cognitivo, nesse patamar abre-se também espaço para pirâmides energéticas e todo o resto. Tal vale-tudo recebe, em filosofia, o nome de relativismo. De modo simplificado, o relativismo postula que a verdade não existe, que as proposições formuladas pelo ser humano são apenas válidas no âmbito de uma comunidade que compartilhe os mesmos valores básicos. Com isso, nada é verdadeiro ? mas, também, tudo é verdadeiro, porque verdadeiro no seio de uma comunidade. Isso se traduz em um pretenso direito de expressão de qualquer um a respeito de qualquer coisa. Também se traduz pela ausência do debate, pois quando “tudo é válido”, a crítica passa a ser encarada como coisa de mau gosto.

Uma das conseqüências mais perversas de tal estado de coisas pode, por exemplo, ser sentida no papel extraordinariamente amplo que economistas exercem na vida moderna, em especial em países desgraçados como o Brasil. Pouca gente se pergunta: mas, afinal, qual é a fundamentação racional daquilo que essa gente afirma e nos impõe?

2. A disseminação do vale-tudo pragmático, fruto do liberalismo econômico. Como o liberalismo afirma a precedência do interesse individual sobre qualquer outra consideração, aquilo que fundamenta as opiniões deixou de ser a argumentação racional para se tornar mero instrumento para se atingirem fins materialmente dados. Não importa a base de uma opinião, pois isso não é mais importante. O que importa é o fim a que essa opinião serve, ou pretensamente serve. Nesse clima, o processo de debate deixou de se travar no território da racionalidade, transferido-se para o das intenções atribuídas ao interlocutor. Ou, o que é dizer o mesmo: todo discurso passou a ser encarado como mera propaganda e, portanto, algo que não se precisa levar a sério em sua literalidade: afinal, quem é que leva a sério um publicitário?

3. A grande insegurança dos veículos de comunicação, compostos por pessoas cada vez mais ignorantes, egressas de um sistema educacional que não sabe para quê existe e que perdeu o norte a respeito do quê ensinar. O indivíduo cuja base de conhecimento elementar é insegura é um indivíduo crédulo. Essa credulidade, quando afeta pessoas responsáveis pelo tratamento da informaçãao destinada à sociedade como um todo, tem um efeito multiplicador cuja importância não se pode minimizar.

4. A propagação da idéia de que a democracia é equivalente à liberdade irrestrita de expressão. A falsidade dessa idéia pode ser bem aquilatada quando se consideram alguns exemplos extremos. Um livro que fizesse propaganda da exploração sexual de crianças não seria considerado aceitável. Um artigo de jornal que advogasse o extermínio físico de uma parte da população não seria publicado. Um programa de televisão que promovesse a eugenia seria considerado impróprio. Ora, por que a sociedade coíbe formal ou informalmente esse gênero de coisa? A resposta standard é porque fere direitos fundamentais do homem.

Muito bem, acontece que um dos direitos fundamentais do homem é o direito à informação. Ora, rigorosamente, a palavra informação pressupõe complementos, como honesta e correta. E é, ou deveria ser, um direito fundamental do homem ser protegido de informação mistificadora.

É óbvio que não se conseguiria estipular de antemão qual informação é correta e qual é incorreta. Isso sequer serviria ao interesse do ser humano, uma vez que semelhante estipulação implicaria a supressão de especulações de validade duvidosa, mas que podem, com o tempo, vir a se demonstrar construtivas ou úteis. Contudo, isso não significa que seria impossível aquilatar (com a possibilidade de errar, decerto) se um tipo de informação é ou não é formulada honestamente.

Quem pode determinar isso? Não, certamente, um referendo popular, uma pesquisa de instituto de opinião ou o recurso ao “mercado”, mas consensos criados em determinados segmentos sociais dotados do poder consensual de suprimir o que não é aceitável. O exemplo que serviu de gancho para estas maltraçadas pode nos servir também agora. Se algum grupo é dotado da autoridade de decidir sobre questões relacionadas à biologia, à origem da vida etc., esse grupo é formado pela comunidade científica e filosófica. Essa comunidade, bem como aquelas que lhes são subsidiárias (como a dos editores de livros, ou a dos responsáveis por editorias jornalísticas) teria não apenas o direito, como o dever, de reprimir a veiculação de propaganda religiosa anticientífica, como é o caso do criacionismo. Essa mesma comunidade teria o direito e o dever de coibir a publicação de material relativo à astrologia, búzios, anjos e assim por diante, porque tudo isso é prejudicial ao ser humano.

A tragédia é que, cada vez menos, a sociedade reconhece as prerrogativas dos grupos de saber que a compõem. Num passado não muito distante, o programa do Ratinho não poderia ir ao ar, não seria admissível que apresentadoras de TV sugerissem práticas sadomasoquistas ao vivo e assim por diante. Resistências tanto explícitas quanto, principalmente, implícitas, garantiriam isso, seja no âmbito restrito das emissoras, seja no da comunidade mais ampla. Mesmo se a convicção interna fosse fraca e alguma emissora tentasse empurrar coisas dessa natureza, diferentes setores da sociedade se encarregariam de reprimi-la, empregando para isso desde a Justiça até pressões tributárias ou econômicas. Mas tais setores estão hoje acuados ? sem esquecer do fato de que, muitas vezes, são beneficiários do clima geral de permissividade, como é o caso, por exemplo, das corporações profissionais dos médicos, advogados, engenheiros e tantas outras.

Os efeitos que a permissividade acarreta não devem ser minimizados. Uma sociedade monta o seu futuro a partir de imagens que se formam em seu seio quanto àquilo que é factível ou desejável. Mas para que um modelo de futuro seja razoável e não fantasioso, é necessário que se fundamente em aquilatações sensatas da realidade. Não é muito difícil concluir que, se a realidade é cada vez mais encarada através de filtros informativos mistificadores, a montagem do futuro resulta correspondentemente irreal. Isso já aconteceu no Brasil: sequer somos capazes de visualizar algum futuro. Para todos efeitos práticos, a questão perdeu o sentido, como se devêssemos viver apenas uma sucessão de momentos presentes.

No plano mais geral da civilização humana, o estado do mundo não deixa dúvidas. Com a exceção de segmentos minúsculos dos países centrais, a humanidade foi lançada num obscurantismo sem precedentes históricos.

Nisso, tem sido crucial o papel desempenhado pelos organismos e indivíduos responsáveis pela veiculação da informação. Durante séculos, entendeu-se que esses organismos e indivíduos tinham determinadas responsabilidades, mesmo se ignoradas ou, alternativamente, contestadas pelo conjunto social. O “fim da história” (expressão esta que, naturalmente, é uma piada, mas que tem sido levada a sério) trouxe consigo a proposta de extinção dessa responsabilidade. Nos países periféricos, os meios de comunicação e os profissionais que neles trabalham mergulharam nisso de corpo e alma. Ao agir assim, estão contribuindo para a extinção de todos os valores civilizatórios.

(*) Bacharel em matemática, mestre em lógica e filosofia da ciência, jornalista, ex-editor de Economia da Folha de S. Paulo, ex-secretário executivo de redação da Gazeta Mercantil.