Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Criança, TV, lei e bom senso

QUALIDADE NA TV

"Criança, TV, lei e bom senso", copyright O Estado de S.Paulo, 18/11/00

"O saudoso Franco Montoro, que, além de político íntegro e competente, foi um mestre da Introdução à Ciência do Direito, gostava de contar esta ilustrativa historinha: numa estação de trem paulista havia uma placa onde estava escrito ‘é proibido viajar com cães’. Um dia, um passageiro tentou viajar com uma cabra, foi barrado pelo chefe da estação e protestou, pois não estava com nenhum cão. Outro dia, outro passageiro conseguiu viajar – com a permissão do chefe -, mesmo levando um cachorro. Tratava-se de um cego com seu guia. Nos dois casos, dizia Montoro, a norma foi desrespeitada, em sua acepção literal, mas em ambos foi integralmente obedecida, quanto a seu espírito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – diz, literalmente, em seu artigo 60: ‘É proibido qualquer trabalho a menores de 14 (quatorze) anos de idade, salvo na condição de aprendiz.’ Como não tem sentido afirmar que um bebê que participa de filmes publictários ou de novelas de televisão faz trabalho de aprendiz, pode-se dizer que, ao pé da letra da lei, essa participação é proibida. Da mesma forma, a criança seminua, descalça, no frio, que pede esmola no semáforo, não infringe o estatuto, porque não está ‘trabalhando’, nem como ‘aprendiz’ – a não ser, talvez, como aprendiz de bandido.

É claro que o promotor e o juiz que geraram toda essa celeuma ao impedirem a participação de menores nas novelas da Rede Globo leram o texto literal da lei, não entenderam seu espírito e agiram de forma oposta à do bom senso empregado pelo chefe da estação: por eles, as cabras viajariam, mas os cães-guias dos cegos jamais entrariam no trem. É claro, também, que a classe artística brasileira tem carradas de razões históricas para sentir arrepios e alergias galopantes ante o menor indício do que possa parecer censura – e a Globo é suficientemente esperta para dar a máxima divulgação às manifestações anticensórias do gênero, que tão diretamente lhe interessam. É preciso, no entanto, aproveitar esta boa oportunidade para discutir, no campo da comunicação social, certas discrepâncias entre os valores mais caros à sociedade e as normas que institucionalizamos, para defendê-los.

Por um lado, a Constituição (artigo 5º, IX) diz, literalmente, que ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’. Por outro, ressalta (artigo 5º, X) que ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’.

Por um lado a Constituição (artigo 220) diz, literalmente, que ‘a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição…’, mas, por outro, estabelece (artigo 221) que ‘a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: (IV) – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’. Indo além, o texto constitucional determina (artigo 220, @ 3º, II) ‘compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221…’ (ou seja, os ‘valores éticos e sociais da pessoa e da família’.) Na realidade, assisimos todos os dias e em muitas emissoras de televisão ao mais deslavado desespeito aos valores éticos e sociais, da pessoa e da família, assim como a abusivas violações da intimidade, da vida privada e da imagem das pessoas. E nisso se misturam enlatados, filmes de baixo nível e violência descomunal, programas do tipo mundo-cão, reportagens policiais, novelas, programas de auditório e até a generalizada moda das ‘pegadinhas’, que expõem as pessoas à ansiedade, ao pânico, ao ridículo e à humilhação, sob sádicas risadas gerais, como se a desgraça do próximo fosse a fonte máxima de alegria (numa dessas vimos moças desesperadas, trancadas num quarto, gritando por socorro, enquanto a fumaça entrava no aposento, depois de fortes explosões).

Em vista de tudo isso se torna um especial contra-senso impedir que participem de cenas de novelas crianças bem cuidadas, assistidas pelos pais, por psicólogos e tudo o mais. É evidente que uma criança não pode entrar numa cena violenta – e é pueril o argumento ‘dramatúrgico’ segundo o qual isso precisa ser feito ‘porque a realidade é assim mesmo’. Não é por aí, não se pode sacrificar a integridade da criança pelo êxito artístico – assim como em nenhum país culturalmente desenvolvido se sacrifica a ética pela estética.

Para saber o que a criança pode fazer, como artista ou figurante, ou assistir na TV, como simples telespectadora, é preciso, antes de mais nada, usar todo o bom senso – como o chefe da estação do Montoro – para conciliar a expressão, livre de censura, com o respeito aos valores da pessoa e da família. E nisso é a própria sociedade que tem de se envolver – muito mais do que o governo ou os Poderes de Estado -, pressionando os veículos e seus patrocinadores, como se faz nas melhores democracias. [Mauro Chaves é jornalista, advogado, dramaturgo e produtor cultural]"

"Laudo aponta ‘abuso psicológico’ de menina", copyright O Estado de S.Paulo, 18/11/00

"Laudo do Núcleo de Psicologia da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio constatou que a menina Larissa Honorato, que participou dos primeiros capítulos da novela Laços de Família, em junho, sofreu ‘abuso psicológico’ ao gravar uma cena em que é retratada uma discussão familiar. O parecer foi anexado à ação civil pública que o Ministério Público do Estado moveu contra a Rede Globo, propondo a retirada dos menores de 18 anos da trama. O juiz Siro Darlan revelou ao Estado, anteontem, que a substituição da criança por ‘trauma psicológico’ foi um dos motivos que levaram a 1ª Vara da Infância e da Juventude a conceder liminar ao pedido do MP.

Com 1 ano e 10 meses na época, Larissa interpretava a personagem Nina, neta de Helena (Vera Fischer). Na história, ela é filha de Fred (Luigi Baricelli) e Clara (Regianne Alves), um casal que briga a maior parte do tempo.

Logo no primeiro dia de gravação, a cena feita pela garota foi a de um atropelamento. Na hora, Regianne e a menina foram substituídas por bonecos.

Mas a cena em que a mãe carrega a filha no colo, enquanto desce lances de escada gritando com o marido, numa forte discussão, foi repetida por Larissa 19 vezes nesse dia. Até a sétima vez, a menina estava tranqüila. Depois, passou a maior parte do tempo chorando, assustada.

O laudo, de 19 de setembro, das psicólogas Patrícia Glycerio Rodrigues Pinho e Mônica Corrêa Meyer, conclui que a criança ‘foi exposta a situação de abuso psicológico, fato que coloca em risco seu desenvolvimento sadio’. O parecer foi requerido pela Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia).

‘Comecei a chorar também porque fiquei com o coração partido de vê-la naquele estado’, contou, na ocasião, a mãe de Larissa, Andréia Luísa Honorato Pereira da Silva, de 32 anos. ‘Depois disso, ela ficou ressabiada com Regianne e se sente melhor no colo do Luigi.’

Nada contra – Ontem, Andréia não quis receber a reportagem em sua casa na Tijuca, na zona norte, mas ela diz a vizinhos que ‘isso realmente aconteceu’.

‘Não quero ir contra nem a favor da Globo’, declara. Também diz que deixaria a filha voltar a trabalhar em novelas: ‘Não posso ir contra a vontade dela.’

Moradora de Angra dos Reis, no litoral sul do Estado, Andréia mudou-se para o Rio há três anos, quando casou com o produtor de rádio Flávio Pereira. Em 1998, inscreveu a filha numa agência de modelos infantis. Antes de Larissa ser substituída por outra menina na novela, a mãe recebia salário de R$ 700, mais R$ 100 de vale-alimentação, com direito a plano de saúde.

Tensão – O autor de Laços de Família, Manoel Carlos, admite que a novela já exibiu cenas fortes envolvendo atores menores de idade e diz que decidiu não escrever mais seqüências em que as crianças sejam expostas a atos de violência.

‘Não gostei quando a atriz Larissa Honorato ficou tensa durante uma discussão do casal’, contou o autor, ressaltando que a menina foi substituída no início da novela por ‘não se ter adaptado’.

‘Cometi um erro e, a partir daí, tirei as crianças de cenas de tensão.’ Ele reconheceu que algumas cenas de discussão entre adultos com participação de crianças foram gravadas de forma ‘inadequada’.

Nota – O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo de Castro, contestou ontem, por meio de uma nota, a atitude do juiz Siro Darlan, classificando-o de ‘autoritário e mal-educado’.

Segundo Castro, falta ao juiz ‘zelo para resolver a situação da juventude’. [Colaborou Sônia Apolinário]

"Procurador-geral afasta hipótese de censura à TV", copyright O Estado de S.Paulo, 18/11/00

"O procurador-geral de Justiça do Estado do Rio, José Muiños Piñeiro Filho, afirmou ontem que o Ministério Público (MP) ‘não teve receio de desagradar a um grande império da comunicação’, ao comentar o veto à participação de menores de 18 anos na novela Laços de Família. Piñeiro rechaçou a hipótese de censura e a acusação de que estaria proibindo o trabalho de crianças, afirmando que é função do MP fiscalizar o ‘abuso na liberdade de expressão’.

Piñeiro divulgou ofícios da Rede Globo, mostrando que ela pediu uma revisão da classificação etária e se comprometia a adequar a novela ao horário pretendido. ‘A própria Globo admite que precisa adequar-se nos ofícios, reconhecendo que isso não é censura’, disse, ressaltando que nenhuma das ações propuseram o corte dos textos da novela.

Em São Paulo, o pesquisador Claudenir Edson Viana, pesquisador do Laboratório de Pesquisa sobre Infância, Imaginário e Comunicação (Lapic) da Universidade de São Paulo, disse que determinar que uma novela ou programa de televisão passe somente depois de um determinado horário não é censura.

O Lapic é um dos pioneiros no Brasil no estudo da relação entre a criança e a mídia. Os pesquisadores recomendam que integrantes da sociedade civil, governo, representantes das emissoras, pesquisadores, escolas e seus profissionais se reúnam para indicar critérios em casos polêmicos. Em uma pesquisa com 700 crianças, o Lapic constatou que a criança não é passiva diante da TV e ela sabe distinguir claramente ficção e realidade. Por esse motivo, Viana classificou de ‘hipócrita’ a atitude da Justiça de impedir o trabalho dos menores de idade na novela da Globo."

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