Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Crime organizado, mídia e colaboracionismo

NO REINO DA BANDIDAGEM

Nelson Hoineff (*)

Faustão chama Belo ao seu programa dominical e levanta a hipótese de que o cantor esteja sendo "vítima de uma grande injustiça". Isso acontece minutos antes de o Fantástico apresentar novas provas do envolvimento de Belo com o tráfico de drogas. Poucos dias depois, o traficante que negociava com o artista, Vado, é morto pela polícia em tiroteio onde 18 outros bandidos saem ilesos. Com Vado morto, as gravações de suas conversas telefônicas com o cantor já não têm valor jurídico algum. Na mesma semana da morte de Vado, outro traficante, Paulo Sergio Savino, o "Pequeno", é preso pela polícia, durante sessão para convidados do filme Cidade de Deus, no New York City Center, Rio de Janeiro.

O personagem principal do filme chama-se Zé Pequeno. A produção diz que não sabe como o "Pequeno" da vida real foi parar ali, mas há antecedentes, entre alguns membros da equipe, do envolvimento, um ano antes, na questão das "bolsas de estudo" oferecidas ao traficante Marcinho VP durante a rodagem do ótimo documentário Notícias de uma Guerra Particular, dirigido por João Moreira Salles. O próprio Cidade de Deus também é, tecnicamente, muito competente. A belíssima fotografia do publicitário César Charlonne brinda o público com todos os recursos que os bons diretores de fotografia de comerciais costumam lançar mão para seduzir as audiências e vender os produtos: óleo nos corpos dos artistas, água no chão para as filmagens noturnas, sépia e muitas toneladas de luz. O suficiente para impressionar platéias inocentes e críticos rasteiros. Não um observador sofisticado como o pesquisador da USP Carlos Augusto Calil: "Desconfio quando vejo traficantes brilhando assim".

Calil está simplesmente vendo o óbvio ? estão querendo vender bandidos como se fossem latas de cerveja. Mas o que poderia ser a visão distorcida de um filme parece ser na verdade a ponta de um tenebroso iceberg: a relação entre alguns cineastas, jornalistas e intelectuais com o crime organizado avançou para um estágio de promiscuidade muito acima do aceitável. E este é um assunto que não se presta no momento para interpretações muito flexíveis.

"Muito doido"

Uma exposição de fotos de Helio Oiticica aberta semana passada no Rio de Janeiro serve como um bom parâmetro para se observar sutis mudanças impostas pelo tempo. Helio trabalhou com bandidos, glamourizou a bandidagem, utilizou seus códigos comportamentais para a construção de uma obra extraordinariamente impactante sobre a arte brasileira dos anos 1960.

Na sua época, crime organizado era marginalidade, não poder hegemônico. Crime organizado restringia-se na maior parte ao jogo do bicho. O tráfico ainda não perseguia a polícia, não intimidava toda a população, não atacava os quartéis e as prefeituras, não determinava os dias de abertura e fechamento do comércio e das escolas. Não esquartejava jornalistas.

Havia um certo romantismo na transgressão que possibilitava uma saudável cumplicidade com intelectuais também transgressores, que sabiam, com razão, que o perigo não estava na maconha ou na cocaína, mas na repressão, na intolerância e principalmente na mediocridade das instituições.

Os tempos mudam e vão indicando coisas com as quais não mais se brinca. O caso do editor de imagens da TV Globo é sintomático. Simulou, ao que tudo indica, um seqüestro por traficantes, pouco antes do caso Tim Lopes. Há três ou quatro meses, isso poderia ser encarado como uma atitude excêntrica de "um cara muito doido". Mas o editor fez a mesma coisa depois do assassinato do jornalista. Bastou esse pequeno lapso de tempo para que as circunstâncias fizessem com que, o que antes fosse excentricidade, passasse agora a ser loucura. A deterioração das relações sociais em vista do avanço da criminalidade é avassaladora.

Indivíduo abjeto

Pode-se fazer piadas sobre o Enéas, não sobre Hitler. Não é a qualidade do produto artístico ? ou jornalístico ? que está em jogo, mas a sua responsabilidade em meio a uma guerra civil testemunhada pelo povo mas não admitida pelas autoridades que o representam. Quando Faustão zomba de um deficiente físico, está simplesmente levando ao ar um quadro de mau gosto. Quando é conivente com um artista visivelmente envolvido com traficantes, o que pretende é que o cantor não apareça antes no Gugu; mas ao heroizá-lo nenhum apresentador estará prestando um bom serviço à audiência que tanto disputa, audiência que em grande medida é formado por reféns de quadrilhas similares.

Da mesma forma, quando um filme como, por exemplo, Orfeu, glamuriza a favela, está simplesmente lançando mão de uma liberdade poética para enfeitar uma realidade feia. Mas quando filmes como Cidade de Deus glorificam o bandido e trocam com eles enigmáticos favores de produção, está oferecendo a julgamento público a indicação de que lado está na guerra desigual que se trava hoje nas cidades brasileiras em que o crime organizado tomou o poder.

Há alguns anos era quase uma praxe, entre jornalistas em busca de fontes, ou documentaristas em busca de personagens, a tolerância à aproximação com a bandidagem. Hoje não é mais assim. O bandido já não é mais um personagem pitoresco, que rouba mas gosta de samba, a espera do reconhecimento por algum cineasta europeu. O bandido é hoje o indivíduo abjeto que está avançando cada vez mais sobre os inocentes, matando suas famílias, tornando insuportável suas vidas na cidade que eles sustentam com seus impostos. Apoiar o crime para ganhar audiência ou poder rodar cenas de um filme não é pragmatismo: é colaboracionismo.

(*) Jornalista e diretor de TV