Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Crise de paradigmose

PROGRAMA DO JÔ

Heitor Reis (*)

É inegável a capacidade do Jô Soares como humorista, comunicador, escritor, dramaturgo e entrevistador, motivo pelo qual ocupa uma posição de primeira linha na mídia nacional, auferindo rendimentos compatíveis com esta condição.

Mas, como esta mídia está a serviço do sistema, do establishment, nada mais natural que ele repercuta as contradições entre a verdade e o lucro. Não dá lucro a descrição da realidade como ela é. Muito menos hierarquizando os valores de cada fato, em função de sua relevância no contexto geral.

O telespectador-padrão quer algo mais que isto. Ele necessita da ilusão. É do tipo "me-engana-que-eu-gosto". Não deseja realmente profundidade e seriedade alguma na abordagem dos fatos. A mágica é produzir o ilusionismo de que o secundário se torne vedete, em detrimento do que é verdadeiramente essencial. Quanto mais incoerente e contraditório, melhor!

Não há Ibope elevado (e nem lucro), sem a mistura conveniente entre a diversão e a informação, mesmo que esta fique prejudicada pelo abuso daquela. O negócio é manter o clima e transmitir esperança para o público, independentemente de nosso Titanic tupiniquim ou planetário estar naufragando nas águas geladas do egoísmo humano.

Um exemplo extravagante desta crise de paradigmose midiática ou bitolamento, para os íntimos, ocorreu semana passada, quando o ilustre profissional entrevistou uma sofisticada loura quarentona (cinqüentona?), a dra. Tânia Zagury, educadora, professora de Psicologia e autora de várias obras de sucesso, a qual ministra palestras em todo o país. Pesquisando no Google, encontrei 2.170 citações de seu nome.

Ambos, Jô e a professora, foram contundentes ao afirmar que os jovens e a humanidade não estão piorando, mas trata-se de um erro comum defender-se o contrário. A ênfase, expressões faciais e olhares indignados do Gordo foram totalmente impositivos. Ela acrescentou ter realizado pesquisa comprovando tal coisa, ou seja, que nossos jovens estão se tornando pessoas de melhor qualidade que seus ancestrais. O famoso comediante usou de todos seus atributos intelectuais para reforçar a tese comum…

Como meu irmão tem por hábito gravar este e outros programas, para poder assisti-los em momento oportuno, tomei o cuidado de repetir a cena algumas vezes, para constatar e anotar seus dizeres, preparando-me para manifestar este meu parecer sobre o fato.

Trataram do caso do seqüestro do Pedrinho e do assassinato de um casal pela própria filha e por seus amigos, também jovens, explicitando que são aberrações, as quais não podem ser utilizadas para mensurar a condição atual dos demais, já que coisas assim sempre existiram, sendo que Nero assassinou a própria mãe.

Mas, nestes momentos, segundo ela, sentimos que "o homem está perdendo sua humanidade" e procuramos explicações. Podemos até focar a crise ética que abala nossa sociedade, a falta de valores de hoje em dia, sermos muito consumistas e imediatistas, preferindo nos apropriar do que queremos ao invés de lutar para adquirirmos tais necessidades de forma legal. Mas nada disto pode ser utilizado para justificar as aberrações, que estão fora de qualquer explicação possível, sentenciou a educadora.

Hedonismo, mesquinhez e egoísmo

Pelo visto, ela e o Jô consideram fatos como estes pouco relevantes no resultado final, ou seja, no caráter do ser humano, produzido sob tais princípios… Somente a crise de valores éticos de nossa sociedade é mais que suficiente para produzir os monstrinhos que queimam índios por diletantismo, matam por um par de tênis ou levam armas para a sala de aula, fuzilando colegas e professores, defendo eu.

Comentei com meu irmão que eu gostaria de ter alguma estatística que demonstrasse cabalmente a situação, de tal forma a evitar os qualitativos e enfrentar os quantitativos envolvidos, defendendo que somente isto poderia fechar a questão de forma racional. O resto é conversa mole para boi dormir!

Miraculosamente ou por algum processo além de minha razão, a doutora informou, como se estivesse confirmando tudo que defendeu tão peremptoriamente minutos antes: "No Brasil, há um incremento anual no número de jovens que praticam delitos graves, da ordem de 300%, com base em levantamentos nas delegacias de polícia". O Gordo manteve sua fleuma e consentiu por omissão.

Era tudo que eu queria! Se cresce assim, astronomicamente, o número de jovens na criminalidade, como eles podem estar melhorando? Teria que estar havendo um decréscimo, para justificar a bula papal emitida solidariamente pelo Jô e Dra. Tânia Zagury.

Até que alguém consiga demonstrar o contrário, permaneço acreditando que há uma enorme contradição nesta entrevista, por parte dos dois. Ou seria possível, simultaneamente, jovens melhores entrarem cada vez mais para a bandidagem?

Insisto: pior que os crimes horríveis que a mídia documenta diariamente são aqueles que ela própria comete, sonegando a verdade e a prática da crítica neutra e isenta de outros propósitos sobre a realidade que divulga. E, infelizmente, nossos melhores e mais capacitados profissionais estão assalariados por esta prática milenar e mercenária.

Este é mais um argumento de que nossos jovens, ao permanecerem, desde o nascimento, iluminados pelo brilho da Vênus Platinada e suas congêneres, sedentas das tetas suculentas da viúva, seguramente estão cada vez mais bestializados e menos humanos. Verdadeiros mentecaptos, eleitores de cabresto eletrônico, um enorme rebanho continental de vaquinhas-de-presépio, hipnotizadas pelos sacerdotes do deus Mercado, Mamom ou Plutão, que se materializam diariamente em nossos lares indefesos, pregando a mais explícita forma de hedonismo, mesquinhez e egoísmo.

(*) Engenheiro civil, Belo Horizonte